Os cientistas do clima começam a soar como radicais. O relatório de 2018 do IPCC [Intergovernmental Panel on Climate Change] concluiu que “mudanças sem precedente transversais a todos os aspectos da sociedade” seriam necessárias para limitar o aquecimento a 1.5 graus celsius. No seu relatório devastador sobre o estado desastroso do ecossistema planetário, o painel das Nações Unidas sobre a Biodiversidade e Serviços dos Ecossistemas apelou do mesmo modo, nas palavras do seu presidente, para uma “reorganização fundamental e sistémica transversal a aspectos tecnológicos, económicos e sociais, incluindo paradigmas, objectivos e valores.”
A primeira e até agora única iniciativa da
política norte-americana que considera a gravidade da crise que enfrentamos é o
Green New Deal, apresentado como
resolução conjunta do congresso, no passado mês Fevereiro. A resolução propõe,
entre outros objectivos, descarbonizar a economia, investir em infraestruturas
e criar empregos dignos para milhões de pessoas. E embora esta resolução, de um
ponto de vista planetário, seja obviamente limitada pela sua escala doméstica,
transformar os E.U.A. neste sentido teria seguramente reverberações globais,
pelo menos por duas razões: os E.U.A. são o maior obstáculo à cooperação global
em torno do clima e os partidos políticos por outras partes do mundo (ex. Labour Party no
Reino Unido e Partido Socialista em Espanha) já começaram a adoptar o Green New Deal como armação para as suas próprias políticas domésticas.
Depois de alguns meses de discurso circular,
podemos começar a identificar um conjunto emergente de posições no debate em
torno do Green New Deal. A direita
recorreu ao clássico red-baiting,
denunciando a resolução não-vinculativa como um “monstro socialista”, uma via
para a servidão ao planeamento estatal, ao racionamento e ao veganismo
compulsório. O centro, em dissolução, agarra-se firmemente à sua fixação
confortável pelas políticas de triangulação: o Green New Deal é um sonho infantil; os adultos sérios sabem que a
única opção é a conformação face à via do bipartidarismo e do reformismo. A
esquerda, claro, sabe que no contexto do actual desenvolvimento da crise
climática, da xenofobia ressurgente, da debilitação da legitimidade do consenso
neoliberal, as verdadeiras ilusões são as soluções dirigidas ao/pelo mercado e
os louvores nostálgicos das “normas e instituições” americanas.
No entanto, também à esquerda há críticas e rejeições
firmes face ao Green New Deal (ver aqui, aqui, aqui e aqui). Há a acusação de que o Green New Deal, tal como o velho New Deal, equivale ao resgate do
capitalismo pelo estado, enquanto comité executivo da burguesia, face à crise
planetária gerada por aquele. Segundo esta interpretação, em vez de emancipar
as comunidades “vulneráveis e frontline”*, como reclama a resolução, o quadro político resultará na proliferação de
oportunidades de investimento para uma assistência social privada, facilitadas
por incentivos fiscais e subsídios; parcerias público-privadas; despesas
infraestruturais que virão estimular o desenvolvimento do mercado imobiliário;
e uma garantia de emprego que estimulará o consumo — um ganho mútuo para o
estado e o capital, mas deixando intacto o modelo subjacente de acumulação e de
crescimento vicioso, uma perda para o planeta e para as comunidades mais
vulneráveis à crise climática e ao eco-apartheid.
Há outra reviravolta. Como por vezes a mesma análise aponta, este cenário win-win-lose-lose é ele mesmo baseado
numa falsa compreensão do capitalismo contemporâneo. Num mundo de estagnação
secular — taxas de lucro em declínio, bolhas especulativas, financeirização,
especulação e acumulação através da redistribuição ascendente — a qualidade vampiresca
do capital nunca foi tão aparente. A ideia de que o capital poderia, com um
pequeno incentivo, superar subitamente essas tendências e investir em
actividades produtivas é a sua própria fantasia nostálgica.
*front-line communities refere-se às comunidades
mais vulneráveis aos efeitos das alterações climáticas, englobando habitantes
de zonas de risco ou de áreas com carência infraestrutural, minorias étnicas,
comunidades indígenas, etc.
Para os cépticos em relação ao GND
posicionados à esquerda, este keynesianismo verde anacrónico tem a sua
contrapartida ideológica no nacionalismo económico. Este último manifesta-se na
linguagem da resolução que posiciona os Estados Unidos como um “líder
internacional” e, em geral, uma contabilização do carbono que se detém nas
nossas fronteiras, invisibilizando as vastas redes globais de extracção,
produção e distribuição que uma transição massiva para energias renováveis
pressuporia. Como Max Ajl o
colocou, a visão política resume-se à “social democracia verde em casa e
fronteiras marítimas e terrestres militarizadas, e para além destas, extracção
de recursos para uma tecnologia doméstica limpa”. Isto poderia ocorrer, por
exemplo, através de açambarcamentos neocoloniais de territórios para a produção de energias renováveis.
Relacionadas com isto, temos as fronteiras
extractivas do Green New Deal,
obscurecidas pelo foco míope numa contabilização do carbono que começa e acaba
na rede doméstica de eletricidade. Uma perspectiva global e holística revela
que a energia renovável intensificará a mineração que fornece a matéria-prima para
reestruturar o nosso ambiente construído de modo a funcionar exclusivamente com electricidade. E um
mundo de mineração intensiva é, por sua vez, um mundo de acumulação pela expropriação
e contaminação. Uma destas fronteiras é o lítio: minerado a partir da salmoura
ou da rocha dura, é um componente necessário das baterias que alimentam os
veículos elétricos ou desempenham funções de armazenamento de energia nas redes
renováveis. Na América do Sul, o lítio é extraído em quantidades alarmantes da
salmoura existente debaixo das imponentes salinas que salpicam um planalto a
elevada altitude, rodeado pela cordilheira dos Andes. As salinas são sistemas
hidrológicos vulneráveis (dos quais a salmoura é uma parte integral), uma
espécie de deserto húmido que coincide com o território, as terras agrícolas e
as pastagens de comunidades camponesas indígenas e mestiças. No cenário de uma
transição renovável a 100% até 2050 sem alteração dos padrões correntes de
consumo energético, a demanda de lítio excederia em 280% as reservas conhecidas de lítio (i.e. o subconjunto de depósitos cuja extracção
é actualmente viável a nível económico).
Finalmente, há a questão da total evasão da resolução
face ao elefante na sala: a indústria dos combustíveis fósseis, responsável pela vasta maioria das emissões globais. Este sector é um enorme obstáculo político a nível
doméstico: devido ao fracking boom *,
os EUA estão em vias de se tornar os principais produtores de petróleo e gás
natural (de facto, o mundo está tão inundado pelo petróleo dos EUA que as
principais disrupções no fornecimento — “sanções, conflito e guerra civil” — já quase não influenciam o preço do petróleo bruto. É
difícil imaginar este monstro a abdicar voluntariamente dos seus investimentos
massivos. Na eventualidade de restrições rigorosas de emissões e de uma
transição renovável forçada, despesas sem retorno em plataformas de perfuração,
canais, e centrais elétricas converter-se-iam em triliões de dólares de ativos
improdutivos (e provocariam uma crise financeira global) da noite para o dia.
* fracking boom
refere-se ao sucesso da técnica inovadora do fracturamento hidráulico para
obtenção de petróleo e gás natural.
Comecemos pelo empirismo básico. Ninguém
discute que sistemas de energia descarbonizantes, à escala nacional e global,
sejam desejáveis. Os complexos mecanismos de interferência que configuram a
relação entre aquecimento atmosférico e outras formas de devastação ambiental,
da seca à subida do nível do mar, aos fenómenos meteorológicos extremos, são de
tal modo que cada grau — ou até cada décimo de grau — de aquecimento evitado
corresponde a um mundo que é significativamente mais seguro para os habitantes
humanos e não humanos, especialmente para aqueles que estão a enfrentar as
deslocações do desastre em curso (enquanto eu escrevo, no espaço de dois meses,
a costa oriental africana foi atingida por dois ciclones de intensidade
recorde; o primeiro, Ciclone Idai,
matou mais de um milhar de pessoas e afectou milhões de outras.)
E ninguém discute que a descarbonização é
tecnológica e até economicamente viável. Os entusiastas e os investidores do sector das energias renováveis exaltam as dramáticas reduções de custo da energia renovável e do armazenamento em baterias. Há a questão sensível, claro, de quanto terreno um
sistema, principalmente de energia eólica ou solar, exigiria. Não há dúvida de
que as renováveis requerem um uso intensivo do solo, tanto em termos de geração
(turbinas e painéis) como em novas linhas de transmissão. Mas as estimativas
variam consideravelmente. No extremo optimista, a geração de energia solar e
eólica poderia ocupar menos de 1% do
total do território continental dos E.U.A. No extremo pessimista, como afirma Jasper Bernes, elas
poderiam ocupar tanto quanto 25-50% — uma extensão bem mais abrangente.
Contudo, até estas percentagens simplificam demasiado a complexidade do
problema. Diferindo do que acontece com a biomassa e a agricultura, uma turbina
eólica e uma exploração agrícola não são usos do solo mutuamente exclusivos. Os
painéis solares podem ocupar coberturas de edifícios, levando a que nem toda a
energia solar entre em competição directa com o solo para produção alimentar ou
para restauração de ecossistemas. Enquanto isto, há uma multiplicidade de usos
do solo que são ecocidas e anti-sociais, que poderiam ser substituídos pela
geração de energias renováveis, ou re-naturalizados para captação
natural de carbono: relvados cuidados, campos de golfe, parques de
estacionamento, e milhares de milhas de território estatal concessionado a
empresas de petróleo e gás natural. E as possibilidades para a descarbonização
podem (e devem) ir além do sector energético, incluindo
a própria infraestrutura do comércio global: por exemplo, reduzir 10% a velocidade dos navios
cargueiros reduz quase 20% das suas emissões.
Como o leitor poderá já ter pressentido,
“tecnologicamente viável” é um termo genérico que esconde um mundo de cenários
distintos. Num extremo do espectro, há a transição energética que já está a
decorrer, organizada segundo a lógica do capitalismo verde e da enorme indústria da “tecnologia limpa”. Esta situa as suas expectativas em ajustamentos técnicos
como a gestão da radiação solar, com o objectivo de alterar o mínimo possível o modelo
prevalecente de acumulação, deixando inalterados a quantidade de energia
utilizada (aquilo para que é utilizada) e o modo de controlo do sistema de
energia. No outro extremo do espectro, estaria a descarbonização alcançada
através de uma composição de 100% de energia renovável, projectos de redes que
maximizassem a resiliência com geração distribuída, estabilização de ecossistemas, eficiência energética, redução da exigência energética
(assegurando, claro, que as reduções tivessem antes de mais como alvo o sobre-consumo
esbanjador das elites) e a mudança de um paradigma de consumo privatizado para
um que valorizasse o consumo colectivo governado através de um uso dos recursos
social e economicamente sustentável. Esta última perspectiva reconhece que a
raiz do problema da crise climática — a competição pelo lucro, o crescimento contínuo,
a exploração dos humanos e da natureza e a expansão imperial — não pode ser, simultaneamente, a sua solução.
Decidir entre a via do capitalismo verde e a
do eco-socialismo para a descarbonização — assim como as gradações infinitas
entre elas — é política. Política não apenas nos E.U.A., mas em toda a cadeia
territorialmente dispersa que abastece a transição renovável, da fronteira
extractiva à fábrica, ao navio cargueiro, ao armazém, à rede, à casa. No Chile,
que fornece 40% das exportações mundiais de lítio e onde eu tenho conduzido
investigação, comunidades indígenas e ambientalistas começam a organizar-se contra
novos projectos de exploração de lítio, em parte através de alianças
emergentes que atravessam o planalto
dos Andes até comunidades na Argentina e na Bolívia. Em cada nó desta cadeia
global, o técnico e o político estão intimamente emaranhados. Declarar por
decreto que a descarbonização é improvável ou impossível significa evitar as
complexas e históricas tarefas de fazer-mundo,
que temos por diante.
Demasiado
ou insuficientemente radical?
A ambivalência fundamental que atravessa as
críticas de esquerda ao Green New Deal diz respeito ao facto de este ser
demasiado radical ou, pelo contrário, de não o ser suficientemente (“reformas
moderadas propostas por socialistas democráticos”, nas palavras de Joshua Clover).
Por um lado, de modo a alcançar a
descarbonização da economia que propõe, este desencadaria uma reacção
implacável da classe dominante (como avisa Bernes, “será expectável que os detentores dessa riqueza a
combatam com tudo o que têm, o que será dizer, com praticamente tudo o que
existe”). Por outro, o Green New Deal salva o capitalismo de si próprio,
mantendo “o crescimento intacto”, assim como as “empresas regidas pelo lucro”
(Clover). As implicações políticas são igualmente ambivalentes. Na primeira
leitura, o Estado, capturado como se encontra pelo Capital, asseguraria que a
legislação nunca passasse das comissões, ou fosse vetada ou diluída pelas
instituições encarregues da sua implementação, sofrendo uma morte lenta e
burocrática. Na segunda leitura, é difícil imaginar as razões pelas quais o
sistema político contestaria tal reformismo moderado, especialmente tendo em
conta os efeitos de tremenda legitimação que surtiriam de, aparentemente, tomar
medidas sérias em relação ao clima.
Será o Green New Deal estritamente uma
questão de luta de classes, ou um crescimento verde em que ambas as partes saem
vitoriosas? Será este demasiado radical para ser sequer imaginado, quanto mais
realizado, na actual conjuntura, ou demasiado reformista para corresponder à
escala da catástrofe climática? Poderíamos com certeza argumentar, como penso
que Bernes em particular o faz, que esta ambivalência não é inerente à sua
crítica do Green New Deal, mas ao próprio posicionamento das políticas, numa
perspectiva que contém algo para todos, um espelho em que tanto o
anticapitalista como o capitalista empreendedor conseguem ver o seu futuro
reflectido.
Existe, no entanto, uma outra leitura desta
indeterminação. O Estado não é um monólito unitário; nem tampouco o Capital. E
estes dois factos estão relacionados. O Capital é constituído não só de
capitalistas, mas de sectores inteiros em competição uns com os outros, sendo a
competição umas das principais leis do movimento do capitalismo. Para além de
quotas de mercado e investimento, os capitalistas competem pelo controlo do
Estado: pelas suas políticas, pela sua generosidade, pelo seu poder
legitimador. Podemos facilmente imaginar alguns sectores favorecendo certo
aspectos do Green New Deal (“tecnologia limpa”), enquanto outros trabalham em
sincronia contra ele (a indústria dos combustíveis fósseis). Poderíamos
decompor ainda mais a questão: algumas empresas da indústria fóssil estão a investir
milhares de milhões em combustíveis de baixo teor ou sem carbono; o sector do
imobiliário poderá resistir ao dispendioso reajuste da eficiência energética
dos edifícios, mas interessar-se-ia pelos benefícios resultantes do
investimento público na infraestrutura dos transportes, que valoriza as
propriedades adjacentes. Compreender as posições de empresas específicas e fracções
distintas do Capital é um pré-requisito fundamental para desenvolver uma
orientação estratégica que constitua uma ameaça credível à sua actividade
lucrativa. E, mesmo tendo em conta o tremendo poder dos investidores privados para definir os parâmetros dos processos de decisão
política – um poder particularmente severo no nosso sistema federal, onde
cidades e estados competem pelo investimento –, isto não exclui a possibilidade
de que a legislação altere substancialmente as regras do jogo. Recentemente, em
parte devido à pressão em curso de uma aliança de movimentos populares pelo
direito à habitação, a câmara da Cidade de Nova Iorque aprovou um plano
notavelmente ambicioso para limitar as emissões dos edifícios – apesar da
audível contestação do lobby do imobiliário.
Se Estado e Capital são heterogéneos, com a
competição entre facções da classe dominante a providenciar, por vezes,
aberturas estratégicas para o exercício do poder popular, a classe trabalhadora
é também dilacerada por diferenças e fragmentação. Não é um agente
pré-constituído, nem podemos esperar que se unifique espontaneamente num
momento de ruptura revolucionária. Não existe um substituto para o lento e, por
vezes, acelerado trabalho de composição dos interesses da classe trabalhadora.
No entanto, sob o pretexto de uma “transição justa”, o Green New Deal levanta a
possibilidade de participação, nessa mesma aliança, daqueles que trabalham nos
sectores que destroem o clima e os ecossistemas. Entretanto, a renovada
actividade grevista entre os professores – cujo vital trabalho de reprodução
social seria uma parte fulcral de uma sociedade baixa em carbono – convida-nos a
expandir e redefinir o que conta como “emprego verde” para abranger o trabalho,
frequentemente desvalorizado e invisibilizado, de cuidar do planeta e dos
outros.
De um modo mais geral, é precisamente a
indeterminação do Green New Deal que proporciona uma abertura histórica para a
esquerda. Talvez inadvertidamente, Bernes alude ao seu potencial: segundo
escreve, para os apoiantes do Green New Deal, “o seu valor é fundamentalmente
retórico; é sobre reorientar a discussão, angariar vontade política e sublinhar
a urgência da crise climática. É mais uma declaração de boas intenções do que
propriamente um grande plano.” Terei algo mais a dizer adiante sobre o
contraste entre “intenção” e “plano”, mas para já pretendo fazer uma pausa e
reiterar: “reorientar a discussão, angariar vontade política e sublinhar a
urgência da crise climática.” Se, à boleia do amorfo Green New Deal, as forças
de esquerda conseguirem concretizar essas três tarefas, isso parece-me um
avanço extremamente importante; não um fim em si mesmo, obviamente, mas não é
claro para mim como é que um caminho para a transformação radical possa evitar
estes três testes cruciais de capacidade política.
Exigências
ou ilusões?
Acompanhando a acusação de ambivalência está
a acusação de indefinição (Bernes: “O Green New Deal propõe descarbonizar a
maioria da economia em dez anos – mas ninguém fala sobre como fazê-lo.”). Ao
que parece, isto não é verdade. Actualmente, existe uma eflorescência de
propostas sobre como descarbonizar a economia, não só dos habituais entusiastas das
políticas do capitalismo verde, mas também dos entusiastas da agroecologia, dos
proponentes da banca pública e da habitação social, até
aos que se comprometem em combater a lógica da obsolescência programada e
reivindicar a abolição de desperdícios na produção e no consumo. Nunca antes tive tantas conversas sobre a arquitectura
das nossas redes eléctricas, a contribuição relativa dos distintos sectores
para o total de emissões ou sobre os dilemas das taxas sobre o carbono como
nestes últimos meses. Com isto, não pretendo sugerir que esta miríade de
propostas resolverá o problema, nem menosprezar as diferenças consideráveis
entre propor uma expropriação da industria dos combustíveis fósseis e uma
regulação do preço do carbono baseada numa alta taxa de desconto, mas antes
afirmar que muitas pessoas estão, de facto, empenhadas na discussão sobre
formas de descarbonizar. As batalhas em torno destes caminhos distintos revelar-se-ão
como lutas políticas e de classes fulcrais do nosso tempo.
A acusação de indefinição levantada por
Bernes, no entanto, transforma-se rapidamente numa acusação mais perentória: a
de ilusão. Os socialistas, como eu, que se mobilizam em torno do Green New Deal
sabem perfeitamente que “a mitigação das transformações climáticas dentro de um
sistema de produção orientado pelo lucro é impossível, mas consideram que o
Green New Deal é o que Leon Trotsky chamava um ‘Programa de Transição’,
articulando ‘tarefas de transição’”. Para tais socialistas, prossegue, é
precisamente a combinação entre a viabilidade tecnológica e a impossibilidade
sistémica que torna o Green New Deal uma exigência radical: se o capitalismo
poderia (mas não o fará) salvar a humanidade e o planeta, então as massas
insurgir-se-ão contra o verdadeiro obstáculo do progresso. Não só esta
estratégia é, portanto, fundamentalmente paternalista e ilusória, como
contraproducente: “o programa de transição encoraja a que se construam
instituições e organizações em torno de certos objectivos” para depois
transformá-los noutros. Neste caso, as organizações são concebidas para
“[resolver] as alterações climáticas no interior do capitalismo” e, quando isso
falhar, espera-se que tenham a capacidade de “expropriar a classe capitalista e
reorganizar o Estado de acordo com princípios socialistas.” As instituições, no
entanto, “são estruturas com uma tremenda inércia” – uma vez concebidas para um
propósito, não podem ser transformadas.
Isto parece-me uma afirmação bastante
estranha. Nas ciências sociais, a “path
dependency” é mais ou menos o mantra de teoria institucional convencional e
funciona ideologicamente como forma de encorajar a resignação ao status quo. Uma visão crítica e
historicamente fundada das instituições considera-as sempre enquanto resoluções
ou cristalizações vivas, provisórias, do conflito de classes, que necessitam de
uma reprodução e legitimação contínua. Pactos sociais através dos quais a
dominação violenta se metamorfoseia em hegemonia.
Esta é uma lição bem conhecida pelo Direito,
demonstrada em cada recanto e fissura da vida institucional: em conselhos
escolares, governos, tribunais locais, comissões de serviços públicos. Noutros
lados, desde o Partido Comunista em Kerala ao municipalismo radical em Espanha,
partidos e movimentos de esquerda experimentaram transformações institucionais.
Através de uma combinação de políticas inovadoras, tentativa e erro, e
organização social, atacaram a exclusão e a dominação. A esse propósito,
mobilizaram-se em Kerala instituições locais e redes de solidariedade numa resposta
impressionante às inundações massivas no verão de 2018 – um exemplo com
implicações claras para as condições intempestivas que se avizinham num futuro
próximo.
Para
lá do desespero dominante e do optimismo cruel.
Ao que parece, no entanto, os apologistas do
Green New Deal não são apenas enganosos, como estão, eles próprios, enganados.
Nos seus sonhos de um futuro radiante, “o mundo do GND é este mundo, mas
melhorado – este mundo sem emissões de carbono, com sistema de saúde universal
e universidades gratuitas.” Para estes sonhadores verdes, a realidade será uma
revelação violenta: “o apelo é óbvio, mas a combinação é impossível. Não
podemos permanecer neste mundo.” Nada menos do que uma “completa reorganização
da sociedade” será suficiente.
Não são apenas os defensores do Green New
Deal que têm sonhos. O próprio Bernes conjura “uma sociedade emancipada, na
qual ninguém pode forçar outro a trabalhar por motivos de propriedade, poderia
oferecer alegria, sentido, liberdade, satisfação e até uma outra forma de
abundância.” Este é bastante próximo do meu horizonte radical. Mas como
chegamos até aí? “É preciso uma revolução”. A seriedade, no entanto, regressa
rapidamente: “uma revolução não está no horizonte.” Esta constatação sóbria vai
de encontro ao tom geral do ensaio. Limita-se a constatar factos; a dizer a
verdade, em vez de mentir (“Digamos antes aquilo que sabemos ser verdade”; “Mas
não mintamos uns aos outros”; ou, para Clover, “Agora, trata-se de assuntos
sérios”). Estas exortações colocam o autor acima da confusão, tranquilo e
objectivo, enquanto os seus alvos permanecem confusos, iludidos, enganados e,
para recuperar a citação anterior, seduzidos pelas boas intenções do sonho
verde. Mas não será também este “desespero dominante”, que Bernes descreve como
sendo o inevitável registo afectivo da sua verificação da realidade, também um
pessimismo por organizar?
Curiosamente, algumas das contestações do
Green New Deal vindas da esquerda ecoam os argumentos de rejeição dos inimigos conservadores
de direita que temos em comum: ambos adoptam o registo de seriedade
constrangida, pintando as suas políticas como fantasia ou, pior ainda, como
plano malicioso mascarado de mundo melhor. Enquanto que a Direita tende a
fixar-se na viabilidade financeira dos investimentos públicos necessários,
Bernes argumenta a sua inviabilidade objectiva (“A sua implementação é onde as
coisas começam a falhar”). Paradoxalmente, ao fazer afirmações baseadas num
apelo à viabilidade objectiva, os cépticos de esquerda perdem a oportunidade
para montar um argumento mais convincente. Ao contrário do que diz Bernes, o
maior obstáculo ao Green New Deal não é a sua “implementação”, mas a política.
Uma crítica propriamente política defenderia que o Green New Deal sustém a
fantasia de um Estado iluminado que nos pode salvar da catástrofe climática,
uma fantasia que nos desencoraja a tomar medidas radicais que são, na verdade,
um pré-requisito para que o Estado tome a mínima iniciativa. E a tentação de
desmobilização, de projectar de forma alienada as nossas capacidades colectivas
no Estado, poderá ser ainda mais sedutora no caso eventual de uma vitória do
Democratas em 2020. O Green New Deal tornar-se-ia, neste caso, um exemplo
ilustrativo de optimismo cruel: sendo precisamente o sentido de esperança que
inspira, o principal sabotador da sua actualização.
O pessimismo protege-nos, certamente, da dor
psicológica da desilusão. No entanto, o risco do pessimismo é que tende a
deslizar para o fatalismo, acabando por sofrer da mesma dinâmica
desmobilizadora que acompanha a fantasia de sermos salvos pelo Estado. Existe,
no entanto, uma outra opção. O oposto do pessimismo não é necessariamente o
optimismo seguro de si mesmo, mas antes um compromisso militante com acções
colectivas, face à incerteza e ao perigo. Podemos seguir os passos de
movimentos sociais que adoptem um posicionamento de suporte crítico,
aproveitando a abertura política proporcionada pelo Green New Deal enquanto se
contestam alguns dos seus aspectos específicos, introduzindo atrito e
expandindo o horizonte de possibilidade política. Movimentos pelos direitos ambientais e indígenas
que apoiam alguns aspectos da proposta e não
outros (especialmente a linguagem que refere energia “limpa” e “consumo líquido
zero”, abrindo as portas a tecnologias de geoengenharia não testadas, assim
como a esquemas de manipulação e compensação do carbono emitido), dando
consistentemente prioridade às exigências dos excluídos, explorados e
desapossados, contra as abordagens tecnocráticas da decisão política. O grupo
de trabalho Ecosocialista dos DSA (aviso: de cujo comité directivo faço parte)
desenvolveu um conjunto de princípios que
suportam a proposta, excedendo substancialmente o seu conteúdo, enquadrando “a
batalha pelo clima como uma luta contra o próprio capitalismo e a miríade de
formas de dominação que o sustentam”. No mesmo sentido, Kali Akuno, da
Cooperation Jackson, criticou o produtivismo e o nacionalismo do Green New
Deal, defendendo que o desenvolvimento de alternativas populares locais (tais
como cooperativas, agricultura urbana, reabilitação dos ecossistemas) e uma
desobediência civil em massa capaz de lutar por uma transição justa, radical, em direcção ao ecosocialismo.
Ao invés de se refugiar na negação, estes
movimentos confrontam-se com um complexo dilema estratégico: o desafio de
confrontar simultaneamente as facções do capital e os seus diversos aliados no
Estado, que lutarão ferozmente para preservar o capital fóssil, e radicalizar
as políticas do Green New Deal para lá das suas actuais limitações.
Como dar à luz um novo mundo a partir do
velho é, obviamente, o ponto problemático de qualquer projecto de transformação
radical. Que tipo de exigências programáticas, formas de organização e esquemas
institucionais podem ser propostos, mobilizados e constituídos nas condições
actuais, mas que, uma vez em marcha, serão capazes de violar a sacralidade do
crescimento, da propriedade e do lucro? Quais as tácticas de interferência e
interrupção que temos à nossa disposição? Que alianças latentes poderão urdir
solidariedades dispersas ao longo das redes de fornecimento da transição
energética? Que crises financeiras poderão estar no horizonte? Que sectores do
capital estão em crescimento e quais os que estão em decadência? Onde estão as
vulnerabilidades da ordem hegemónica?
Vivemos actualmente num momento de profunda
turbulência; prever ou hipotecar o futuro parece ser menos rigoroso, do ponto
de vista analítico, do que intervir activamente para o modelar. Ainda não sabemos
o resultado das políticas do Green New Deal. Podemos estar certos, no entanto,
que a resignação mascarada de realismo é o modo mais eficaz de garantir o
resultado menos transformativo. Esperar pelo momento constantemente adiado da
ruptura revolucionária equivale a estar paralisado. Num conflito extremamente
assimétrico contra a indústria dos combustíveis fósseis, os serviços privados,
os senhorios, os patrões e os políticos que estão ao seu serviço, precisamos de
acções conflituosas de base, extra-parlamentares –inspirando-se nos protestos
de Standing Rock, a vaga de greves dos professores, o movimento Extinction
Rebellion, as greves climáticas da juventude – assim como de experimentação
criativa com políticas e instituições. As batalhas por vir terão o potencial de
despertar desejos e transformar identidades. Aprenderemos, falharemos, e
aprenderemos com esses erros. O Green New Deal não oferece uma solução
preparada, mas abre um novo terreno para a política. Aproveitemos a
oportunidade.
•
Nota da edição
O texto foi publicado em inglês na Viewpoint Magazine em Maio de 2019 e traduzido por João Paupério e Paulo
Ávila para o Jornal Punkto.
Thea Riofrancos
Professora Assistente em Ciência Política no Providence College. A sua investigação
foca-se no extractivismo, democracia radical, movimentos sociais e a Esquerda
na América Latina. Estes temas são explorados no seu próximo livro Resource
Radicals: From Petro-Nationalism to Post-Extractivism in Ecuador (Duke
University Press), assim como em ensaios publicados no The Guardian, The Los Angeles
Review of Books, Dissent, Jacobin, e In These Times. É membro da organização Democratic Socialists of America, e parte do Comité Directivo do respectivo
Grupo de Trabalho Ecosocialista.
Ficha Técnica
Data de publicação: 16.09.2019
Edição #24 • Verão 2019 •