[Hoje, o]
Artista não é artista a não ser quando decidido pela empresa. A empresa cria o
artista. Desse modo, a empresa faz obra. E o artista, objectivado, torna-se
ready-made ajustado pela empresa segundo as necessidades do poder dominante.
Laurent Cauwet, La domestication de l’art. Politique et Mécenat, 2017
Possivelmente,
toda a experiência que não seja um grito de alegria ou de dor é coletada pela
instituição. Toda a experiência que não seja deslocada ou derrotada por esse
êxtase é captada pelo ‘amor do censor’, recolhida e utilizada pelo discurso da
lei.
Michel
de Certau, L’invention du quotidien 1.
arts de faire, 1990
Agora, a Arte
nunca deveria tentar ser popular. O público é que deveria tentar tornar-se
artístico.
Oscar Wilde, The Soul of Man under Socialism, 1891
Antes de começar, será importante reconhecer
que o nosso conhecimento da obra dos Assemble
Studio era, até há muito pouco, e se assim se poderá descrever, superficial;
limitado e enquadrado pela precoce mediatização que o seu projecto para Quatro Ruas de Granby obteve enquanto
vencedor do Prémio Turner, em 2015. No entanto, a sua
recente vinda ao Porto, convocada em torno do tema da transgressividade [1], resgatou um interesse
da nossa parte em aprofundar o conhecimento da sua prática acabando por derivar em outras leituras e em outras
reflexões que agora, nestas palavras, encontram alguma persistência.
Nesse sentido, os comentários que se
seguem resultam do aprofundamento de dúvidas e (des)interesses próprios. O que
será dizer que resultam de leituras previamente subjectivadas, aqui estimuladas
pelo trabalho de um colectivo que, operando algures no cruzamento entre
domínios (pouco) específicos da arte, da arquitectura, do artesanato e, cremos
poder afirmá-lo, da própria política, levanta questões incontornáveis sobre a eficácia
e a pertinência não só do seu produto,
como do próprio processo que envolve
a sua produção. Não procuram,
portanto, configurar-se enquanto resenha crítica da sua obra arquitectónica,
mas antes esforçar-se por detectar alguns dos seus pontos de fuga.
1.Fran Edgerley, mentora
do Assemble Studio, proferiu uma
conferência sobre o trabalho desenvolvido pelo colectivo londrino, integrada no
lançamento da revista Dédalo Dois Mil e
Dezoito: Práticas em Transgressão, que decorreu na Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto a 7 de Janeiro de 2019.
Ao (re)entrar em contacto com a sua
prática, precipitou-se no umbral da nossa memória o pensamento de uma outra artista
cuja obra se desenvolveu durante o curto, mas intenso, período dos anos 60.
Alguém que, pese embora hoje consideravelmente menos mediática, não será por
isso menos relevante. Trata-se de Lee Lozano e, em particular, da peça à qual,
culminando uma retirada gradual do mundo da arte, intitulou: A Peça Desistência [The Dropout Piece]. Cerca de um ano antes, perante a primeira
audiência pública da Art Workers’
Coalition, em Abril de 1969, Lozano declarara:
“para mim, não pode haver
uma revolução da arte separada de uma revolução da ciência, uma revolução
política, uma revolução da educação, uma revolução das drogas, uma revolução do
sexo ou de uma revolução pessoal. Não posso considerar um programa de reformas
para um museu sem prestar igual atenção às reformas das galerias e às reformas
das revistas de arte, que tenham como propósito eliminar os estábulos de
artistas e escritores. Não me chamarei a mim própria uma trabalhadora da arte,
mas antes uma sonhadora da arte, e participarei apenas numa revolução total,
simultaneamente pessoal e pública.” [2]
A sua intervenção fora, na verdade, o
prenúncio de uma performance última que viria a ser praticada durante o resto
da sua vida. Um movimento que, se quisermos, teria começado meses antes com a
sua peça Sem Título (Peça da Greve
Generalizada) [Untitled (General
Strike Piece)], através da qual se havia proposto a evitar gradual, mas determinadamente, todo o tipo de
funções elitistas e encontros relacionados com o ‘mundo da arte’. E prosseguira, em 1971, com a decisão de
ignorar todas as mulheres, expondo as relações de poder e de género que regula(va)m
o patricarcado ocidental, Lozano poria finalmente em prática, já em
1972, o derradeiro estádio desse processo de recusa, “da sua violenta transformação de insider em outsider”.[3]
Profundamente descontente com o valor de
mercadoria que a (sua) obra-de-arte havia adquirido com o avançar da sociedade capitalista,
consequentemente ampliando as limitações do artista, Lee retirou-se para
Dallas, Texas, onde viviam então os seus pais. Lugar onde, longe do cir(ul)o
mediático de Nova Iorque, se poderia finalmente concentrar de forma plena na “investigação
de uma total revolução pessoal e pública”, fundindo
definitivamente a sua experiência artística com o seu modo-de-vida.
2.
Lee LOZANO, “Statement for Open Public Hearing, Art Workers Coalition”,
Open Hearing, New York, 1969-2008, secção 38.
3.
Sarah LEHRER-GRAIWER, “Lee Lozano: Dropout piece” [2014] in Friedrike SIGLER (ed.), Work,
Whitechapel Gallery | MIT press, London | Cambridge, 2017, p.128-130.
Se há algo que talvez possamos afirmar
sem grande hesitação – nem que seja pelo facto de, em si, essa afirmação não ter
grande significado – é que o trabalho do colectivo Assemble, ao contrário do que a etiqueta
de transgressivo possa querer
transparecer, se enquadra
perfeitamente no espírito dos nossos tempos.
Uma era de desigualdades vertiginosas em que, de um lado, vivendo num mundo que
acumula em si as marcas de mais uma (e recente) crise financeira, a classe
média engrossa a massa dos que pouco ou nada têm, cada vez mais entregue às
águas turbulentas do precariado, procurando
desesperadamente arranjar formas criativas de manter os privilégios que restam de
uma forma-de-vida pequeno-burguesa. Enquanto, do outro, um cada vez mais
reduzido grupo de detentores de capital encontra nesse movimento novas
oportunidades de gerar lucro, se possível, com o mínimo de risco.
Não será abusivo, portanto, e tendo em
conta o contexto espácio-temporal em que o projecto se desenrola, observar o surpreendente
reflexo entre as formas de iniciativa local e comunitária que conduziram ao
projecto dos jovens artistas-arquitectos para Granby, e o programa político dos
conservadores britânicos -que se reconhece pelo sugestivo título Big Society- propondo a transferência de
uma parte das responsabilidades de intervenção e regulação que cabem ao Estado
para o poder local e para a sociedade
civil.
Ainda que, segundo o
próprio colectivo, as bússolas ideológicas não estejam alinhadas, não será por mera
coincidência que a organização popular dos moradores de Granby – a sua
reconsideração do regime de propriedade dos imóveis da comunidade com vista a
tomar colectivamente o controlo e evitar a demolição das suas casas – coincida temporalmente com esse programa
eleitoral do Partido Conservador, ontologicamente adverso ao fim da propriedade
privada e respectiva emancipação das massas. Com intenções distintas, ambos
surgem naturalmente enquanto reacção ao progressivo desmantelamento do Estado-providência:
para os primeiros, no sentido esforçado de se adaptar para manter um certo
nível de condições de vida; para os segundos, no sentido de atenuar e escamotear
os efeitos devastadores das consecutivas vagas de liberalização de uma economia
cada vez mais global, desresponsabilizando o pouco que resta desse Estado, cada
vez menos, social.
Ambos surgem, no fundo,
como adaptação natural do mercado e dos seus consumidores a uma época de austeridade
sistémica, artisticamente validada, de forma incontestável, pelo prémio Pritzker entregue em 2016 a uma
arquitectura ‘socialmente comprometida’. [4]
4.
A este propósito, confrontar: Pierre CHABARD, “Utilitas, Firmitas, Austeritas” [2016] com a
sua leitura crítica por Pedro Levi BISMARCK, “Austeritas Interruptas” [2017].
III.
Em retrospectiva, o
resultado do prémio Turner de 2015
perde uma boa parte do seu efeito surpresa. No entanto, este texto não tem por
objectivo, esclareça-se desde já, pôr em causa todo e qualquer valor referencial
que a prática do colectivo londrino possa ter para uma redefinição da condição
disciplinar e profissional (neste caso, talvez se possa mesmo afirmar oficinal) da Arquitectura.
É, para nós, evidente que o trabalho
dos Assemble tem um papel
relativamente pertinente no que diz respeito à abertura da prática da
Arquitectura a novas formas de organização profissional, alternativas ao modelo
do arquitecto liberal. E que, por conseguinte, este levanta consigo o debate em
torno da actual (ir)relevância de entidades como a Ordem dos Arquitectos no
pensamento e no agenciamento de novas formas de intervenção da Arquitectura na
esfera pública: afinal, nenhum dos membros era, à data, um arquitecto
“registado”.
Como parece também claro que a sua
“arte” terá inegavelmente um impacto significativo na autoestima e na motivação
organizacional das comunidades com quem trabalham, integrando-os no processo
para dar corpo ao que a voz reclama: o “direito à cidade” e ao
lugar, ou melhor, a um lugar seu na
cidade. E que, nesse sentido, o carácter qualitativo dos seus designs seja operativo na sedução das
autoridades municipais face ao processo, sendo de elogiar o seu apelo relativamente
ao esforço de aproveitamento e reciclagem do que já existe na reabilitação de
um património que conserva a sua utilidade – material, como memorial.
IV.
No
entanto, para lá de todas estas qualidades ‘superficiais’, o que não nos é plenamente
revelado pela mediatização do projecto de regeneração urbana pensado para Granby é a profundidade e a
especificidade do contexto histórico em que o movimento popular cooperativo de
Liverpool se enquadra, no mínimo, desde o processo associativo SNAP (Shelter Neighbourhood Action Project)
financiado, nos anos 70, de forma pública.[5] Da mesma forma que, consequentemente,
não nos é devidamente explicada a complexidade burocrática e os movimentos de
bastidores que se tecem para fazer possível não apenas o Community Land Trust, em que
se estrutura e legitima a organização popular e respectiva apropriação
colectiva da propriedade fundiária, como toda a viabilidade financeira do projecto.[6]
Por
um lado, não nos é completamente esclarecido, a não ser de passagem, que o
projecto do colectivo assenta sobre uma vocação participativa previamente
existente, activa e consolidada, configurando-se apenas enquanto episódio recente
de um combate que já vem sido persistente. Por outro, face ao progressivo recuo
do financiamento público, que a sua
continuidade só tenha sido possível pela entrada em cena de uma empresa privada de investimento social –Steinbeck Studio ltd. – e respectiva ‘boa-vontade’ filantrópica de um milionário com uma carreira
experiente na gestão de riquezas, que se terá disposto a emprestar o capital necessário para viabilizar o
projecto e a juntar a contribuição do colectivo ao desenrolar do processo.[7]
É
nos transmitida, pelo contrário, a impressão de um conjunto de artistas-artesã(o)s-arquitect@s
descomprometid@s e chei@s de boas intenções que, por iniciativa própria e num
impasse organizativo da comunidade, foram capazes de desbloquear a situação graças
à criatividade do seu plano de desenvolvimento.
Porém, compreendida a totalidade do contexto que enquadra o processo, como a
sua entrada em cena por intermédio da empresa de investimento social, será
legítimo suspeitar que os artistas foram chamados, para além do seu evidente
saber técnico, pela capacidade essencial de acrescentar uma camada de verniz apelativa
ao investimento feito. Uma visibilidade cujo principal intuito seja – pelo
menos, da parte de quem os instrumentaliza – mediatizar, validar e assegurar o
retorno não só deste, como de futuros investimentos. Assim, sob o pretexto de
um investimento com impacto social efetivo, aliviam-se os sintomas da
progressiva privatização de um dos direitos mais básicos do cidadão a
providenciar pelo Estado Social, enquanto se arrasta para a esfera privada da
finança um ‘nicho de mercado’ que tinha, até então, ficado excluído.
5.Para
uma contextualização histórica aprofundada, cf. Matthew THOMPSON, “Why the Turner Prize isn’t enough to resolve a housing
crisis” [2016].
6.
Uma das condições que caracteriza os Community
Land Trust é a propriedade colectiva
de uma parcela de terra adquirida ou cedida pelas autoridades locais, da qual
se destaca, eventualmente, a propriedade privada
das casas propriamente ditas. Cf. http://www.communitylandtrusts.org.uk/
7. Por via da empresa social
Setinbeck Studio, John Davey terá emprestado – sem juros, mas com um retorno de
4% – os £500,000 necessários para atrair o restante capital de investimento
indispensável para concretizar o projecto. Cf. Stephen
PRITCHARD, “Complexity, uncertainty & scalability: how Assemble’s
Granby 4 streets won 2015 Turner Prize”, Colouring in Culture, 27 Novembro de 2016.
V.
Bem
vistas as coisas, existe uma forte probabilidade que essa mediatização resulte
em efeitos perversos à expectativa e à luta inicial dos seus habitantes. Funcionando,
na verdade, como primeira pedra para uma futura gentrificação do bairro. Olhe-se, por exemplo, para o desfecho que teve
aquele que é provavelmente o mais icónico dos projectos desenvolvidos no
contexto do processo S.A.A.L (Serviço de
Apoio Ambulatório Local), movimento com o qual, tomada a devida amplitude
histórica, se poderão traçar tangentes e paralelas.
Durante
um breve período pós-Revolução de Abril, decretado pelo então secretário de
Estado da Habitação e do Urbanismo Nuno Portas, o serviço S.A.A.L (devindo processo) permitiu às populações das
classes desprivilegiadas organizarem-se na luta pelo direito a uma habitação
digna, nos seus lugares, apoiadas
financeiramente – através do ‘Fundo de Fomento da Habitação’– e tecnicamente –através
de brigadas compostas de arquitectos e estudantes – pelo aparelho estatal. Contudo,
após uma brusca viragem na bússola que orientava as convicções do processo
revolucionário e as iniciativas populares em curso, isto é, reposta a ‘normalidade’
legal de um Estado de direito burguês, o SAAL viu a sua existência precocemente
extinta em 1976 (pelo menos, sublinha Portas, nos seus moldes originais
enquanto “serviço técnico” autónomo e capaz de estabelecer um diálogo directo
com as populações organizadas). Consigo foram suspensos a maioria dos projectos
em curso, que acabariam por perdurar, durante anos, no papel, inacabados ou em
decadência.
Nesse
momento, o bairro da bouça não havia sido excepção.[8] Mas, como bem resume
Alves Costa, “[c]erca de 35 anos volvidos a Câmara Municipal do Porto, aliás
com uma gestão de direita, dado o prestígio internacional que Siza entretanto
ganhara, decidiu concluir as obras com o apoio daquele, tendo como
interlocutor, já não a Associação de Moradores dos tempos da Revolução, mas uma
cooperativa de habitação em que aquela se tinha travestido. E o magnífico
projecto foi concluído, não tendo chegado a prefigurar uma vitória do movimento
popular”[9]. Alguns dos antigos moradores, esclarece, “permaneceram ou tomaram posse
de algumas casas novas, mas a maioria foi vendida em hasta pública, a baixo
custo, mas ainda assim muito elevado para quem continuava a viver com tão
poucos recursos.” Assim, deu-se início a um fenómeno de gentrificação que
atingiu recentemente o seu zénite, seguindo a tendência da restante cidade, ao
ver algumas das casas do bairro disponibilizadas em plataformas digitais como o
Airbnb.[10]
8.Para uma compreensão global, mas sintética, do
contexto vivido, cf.: Alexandre ALVES COSTA, “Intervenção participada na
cidade/ o SAAL A experiência no Porto” [1977] in Profissão Poética, Gustavo Gilli, Barcelona, 1988, p.72-76; Manuel
MENDES, “Despertadores de Projecto e conhecimento. Intersecções de
perspectivas” [2012], vídeo da conferência disponível in; Nuno PORTAS, “O Processo SAAL: Entre o
Estado e o Poder Local” [1986] in Arquitectura(s).
Teoria e Desenho, Investigação e e Projecto, FAUP publicações, Porto, 2005,
p.254-263.
9. Alexandre
ALVES COSTA, “O Bairro da Bouça de
Álvaro Siza”, Vizinhança – Onde Álvaro
encontra Aldo, DGArtes, Lisboa, 2016, p.126-127.
10. Para os conformados
optimistas, um modelo referencial de cidade e co-abitação interclassista; para
os inconformados realistas, uma re-apropriação oportunista de valor por parte
das classes dominantes.
Tendo
em conta o quanto palavras como business
e investment – ainda que acompanhadas
pelos qualificativos community e social – preenchem o discurso e a visão
do colectivo para a área, e que um dos principais propósitos seja assumidamente
o de devolver ao bairro o espírito comercial que outrora lhe daria vida, este é
um futuro antecipável para Granby. Por um lado, as competências e habilidades, que são
investidas na formação dos habitantes, servem para potenciá-los enquanto
capital humano, prontificando-os a retomar o fado de regressar ao mercado de
trabalho. Por outro, o Workshop [11] de cerâmica
feita-à-mão, assim como o Jardim de Inverno
onde se acolherão, à vez, “residências artísticas e hóspedes pagantes” [12], impulsionam esse estímulo enquanto
modelos de produção – material e cultural – particularmente atractivos para as
classes gentrificadoras.
Na verdade, mesmo do
ponto de vista de uma eventual crítica ao regime dominante de propriedade
privada em detrimento de uma forma mais ou menos embrionária de propriedade colectiva,
algumas dúvidas podem (e devem) ser levantadas sobre se o projecto se configura
efectivamente enquanto real perspectiva de emancipação à exploração
experenciada no mercado de trabalho, ou apenas enquanto adaptação das classes
desprivilegiadas às novas condições de uma economia substancialmente neoliberalizada.
Afinal de contas, embora detido e gerido colectivamente, a CLT continua a ser movida por lógicas que derivam das categorias mercantis
do trabalho abstracto, da troca e da mais-valia. Ainda que
essa mais-valia tenha, obrigatoriamente, de ser reinvestida em proveito próprio
daquela comunidade em específico. Nesse sentido, e tomando de empréstimo
palavras de Robert Kurz, será “perfeitamente irrelevante se o portador
institucional desta relação se chama António Silva, Sociedade por Quotas,
Sociedade Anónima, Comité de Salvação Pública, Estado Operário Socialista” ou,
neste caso, Community Land Trust. Enquanto
o sentido de urbanidade for desenvolvido de um ponto de vista economicista e,
nesse sentido, “a relação social permanecer determinada pelo fim-em-si
tautológico do trabalho abstracto, também permanece caracterizada pela
propriedade privada, e todos os seus protagonistas se encontram no estado da
privacidade abstracta.” [13]
11.Lugar onde os locais podem
investir a sua mão-de-obra na produção de peças autênticas –comercialmente apelativas porque únicas e
irrepetíveis. Para mais informações, cf. https://granbyworkshop.co.uk
13.
Robert KURZ, A Honra Perdida do Trabalho:
o socialismo dos produtores como impossibilidade lógica [1991], Antígona,
Lisboa, 2018, p.72.
VII.
Contas feitas, paira a
dúvida se o projecto de Granby é, com efeito, um processo de emancipação social, ou apenas uma adaptação
precária e conformista a uma economia
clássica. Se este poderá realmente inventar um novo modelo de
(so)ci(e)dade, ou se representa apenas uma regeneração
precária e localista das mesmas idiossincrasias. Dito de outra forma, se alguma
vez a arquitectura dos Assemble terá
capacidade para se alargar a outras escalas e a outros contextos, ou se permanecerá
para sempre uma acupuntura de ‘pequenos momentos diletantes’ [14]. Certo é, se aprendemos algo com Lee Lozano e com
Álvaro Siza, que embora carregados de ‘boas intenções’, haverá uma forte
possibilidade que a sua fama seja precisamente a condenação ao falhanço de um
movimento tomado pela sua rentabilização.
Retomando a questão inicial,
perguntamo-nos: Assemble Studio é, no final do dia, o
nome de quê? Pois da sua inevitável mediatização, da celebrização enquanto face
mais ‘humana’ do mesmo sistema que, supostamente, pretendem combater. O nome de
um conjunto de artistas cuja celebridade se vai multiplicando em retratos de
grupo a fazer lembrar o de estrelas de música, vistos como messias que, armados
com a sua criatividade, se limitam a ensinar os habitantes a manobrar as
dificuldades impostas pela economia política.[15] É aqui que se torna evidente a relação entre o trabalho de
Lee Lozano e a prática multidisciplinar dos Assemble
Studio. Ainda que, para compreendermos a relevância da artista seja
necessário interpretá-la “como um conjunto de refrações, rememorações,
meias-verdades embelezadas – de facto, como um mito” [16],
isto é, reconhecendo-lhe algumas qualidades que, talvez, nunca tenha tido. Será
fundamental reconhecer o destino suicidário da sua recusa sem, no entanto,
descartar a potencial emancipação, no que ao processo artístico diz respeito,
da sua fidelidade a uma Ideia.
14.Devo
esta observação ao professor Manuel Mendes.
15.Levantando
sérias dúvidas sobre se o foco de interesse se ilumina sobre as suas obras, ou sobre
os seus membros.
16.Melissa
CONSTANTINE, “The story of Lee Lozano”.
O colectivo parece orgulhar-se não
estar unido por um manifesto. Segundo palavras de Fran Edgerley, proferidas na
conferência do Porto, este não tem uma abordagem determinada a priori para fazer arquitectura, do
mesmo modo que a sua prática não pode ser sintetizada no discurso de aceitação
de um prémio, por resultar da pluralidade de interesses de cada um dos seus membros.
No entanto, se isto parece querer convocar valores democráticos de
colectividade e de pluralidade, desvela também a sua dependência do improviso,
augurando um prenúncio de naufrágio ao qual terão de permanecer sempre atentos.
Nós, pelo contrário, argumentamos que é
precisamente a necessidade de manifestos
que urge, cada vez mais. O que não será o mesmo que argumentar um qualquer
regresso à cegueira ideológica de um qualquer dogma do passado, mas à busca de
manifestações claras, legíveis, e capazes de enquadrar princípios e linhas de
orientação comuns para a organização do espaço. Antes de partir ingenuamente
para o campo do activismo, será importante encontrar tempo para reflectir a
linguagem de novos discursos por e para inventar, animando-os em plataformas
capazes de fazer circular e fortalecer alternativas lúcidas, que fomentem a
ultrapassagem da ordem actual das coisas. Necessitamos, como escreveu um outro
colectivo artístico, “de um fora, mesmo que seja mínimo, para apoiar as mãos
enquanto nos tentamos levantar, juntos e sós, cada um por si.” [17]
Isto não significará não poder praticar, em simultâneo, formas múltiplas
de acção que sirvam para testar e consolidar esse mesmo pensamento. Team X, Internacionale Situationniste, Art Worker’s Coalition: as escalas e as
motivações ideológicas, tal como a sua resistência ao tempo, foram diversas,
mas todas poderão servir de exemplo no que diz respeito à intersecção entre
teoria e prática, entre individualismo artístico e inteligência colectiva,
entre fazer-pensar e pensar-fazer. Pelo que esse manifestar-se não poderá servir para
suprimir a individualidade de cada um, ou para constituir uma imagem e uma
significação fixas, mas apenas enquanto construção de um fundo capaz de
enquadrar esse exterior e a inevitável pluralidade dos seus procedimentos.
17. CLAIRE FONTAINE, “Sem título (carta a A.)”, Paris, 2008.
IX.
Reconhecemos razão ao colectivo Assemble no que toca à necessidade de
uma ética afirmativa. Por um lado, porque uma negatividade Bartlebiana absoluta,
como a de Lee Lozano, não poderá passar de um gesto suicidário que nos mudará a
nós, mas nunca o mundo; e por outro, antecipando que a instrumentalização
mediática do sistema correrá sérios riscos – para
não dizer inevitáveis – de conduzir ao seu inverso. Por esse
motivo, a construção dessa afirmação terá de ser silenciosa e absolutamente des-interessada
– “rigorosa como uma demonstração matemática, surpreendente como uma emboscada
na noite, e tão elevada quanto uma estrela”.[18]
Quando se apresentaram ao mundo com o
projecto do Cineroleum, por exemplo,
o colectivo não tinha ainda um nome ou
uma estrutura organizacional clara, tendo ainda assim sido capaz de se associar
livremente para dar inicio ao seu projecto [19]. Eram, então, um espectro
difícil de capturar, um corpo-sem-orgãos
com plasticidade suficiente para se evadir do sistema e estabelecer inovadoras
relações orgânicas entre os seus técnicos e artistas, entre estes e as
respectivas populações. Em sentido contrário, institucionalizado-se, perde-se
parte dessa capacidade e, no sentido de um atelier convencional, vemos precipitar-se
o circuito de operações cosméticas a galerias de arte ou a museus. Com a
escolha de um nome, os Assemble
perderam a potência do anonimato, a força de se condensarem enquanto singularidade qualquer que resulta da fricção
de um sem-número-fixo de indivíduos. Isso, recorrendo a palavras de Deleuze
& Guattari, ‘não se trata de atingir o ponto em que já não se diz eu, mas o
ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não dizer eu’. Aquele em
que ‘já não somos nós mesmos’ e em que ‘cada um conhecerá os seus’, ‘em que
fomos ajudados, aspirados, multiplicados.’ [20]
Finalmente, o que pretendemos argumentar é que, para aqueles
que pretenderem fazer da Arquitectura uma forma de resistência, a primeira
tarefa passará pela reflexão e reformulação do que já Walter Benjamin evidenciara
há quase um século [21] : o seu papel
enquanto peça de um circuito de produção contemporâneo – hoje, cada vez mais aprisionado ao espaço-tempo
do “espectáculo”. No fundo, passando pela recusa perentória do circ(ul)o
de mediatização do seu pensamento,
em simultâneo com o esforço de construir circuitos alternativos, des-interessados, onde se possam fazer
criticar e avançar as ideias. Com vista a construir novas subjectividades,
desvelando as verdades que as animam, conscientes que o sujeito dessas verdades será o conjunto de obras que lhes dá forma, e não os seus artistas.
18.Alain BADIOU, “Fifteen
Theses on Contemporary Art”, Lacanian
Ink 22, New York, 2003.
19.Rowan MOORE, “Assemble: the unfashionable art of making a difference”,
The Guardian, 29 de Novembro de 2015.
20.
Gilles DELEUZE, Felix GUATTARI, Rizoma
[1980], Sistema Solar, Crl (Documenta), Lisboa, 2016, p.10.
21.
Walter BENJAMIN, “O Autor enquanto Produtor” [1934], Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Relógio d’Água, Lisboa,
2012, p.115-130.
Nesse quadro, também o próprio conceito
de arquitectura participada terá de ser reinventado. Como escreveu Álvaro Siza
a propósito do SAAL, os arquitectos não poderão limitar-se a “adopta[r]
posições simplistas do tipo ‘aprender com o povo’ ou ‘ensinar o povo’”, mas
intervir “com a sua capacidade técnica, aceitando e criticando as
circunstâncias da sua própria formação”, e acreditando que a urgência dos
problemas não possa “constituir um limite à qualidade ou à poesia. (Poesia
entendida como adesão total à expressão do processo político em curso, em toda
a sua riqueza e complexidade – riqueza e complexidade cujas raízes se encontram
num movimento popular, colectivo e irreversível).”[22]
Nesse sentido, talvez possamos, por exemplo, considerar o que de virtual existe ainda no processo, para o que o bairro de
S.Vítor, do qual a celebrização de Álvaro Siza ainda não tomou posse, poderá
servir de metáfora. O importante será salvaguardar que o pensamento não se
limite a uma tautologia catedrática de vanguardas elitistas, mas se construa igualmente
para e pelas pessoas comuns, não especializadas, de tal forma que no
âmbito da sua inter-disciplinaridade este se possa revelar pedagógico em várias
direcções e sentidos.[23] Tendo por única certeza que, por vezes, talvez
seja preferível não fazer nada no imediato, do que contribuir para o eterno
retorno das estruturas políticas, económicas e ecológicas que se pretendem
criticar, para substituir.
O papel do arquitecto não passará então
por limitar-se a (cor)responder enquanto técnico às necessidades e aos desejos
imediatos reclamados pelos populares. Pelo contrário, tornar-se-á relevante se,
e apenas quando, for capaz de inventar os signos
de um povo que esteja ainda e sempre por-vir. Permitindo que este, aderindo
ao sujeito constituído pela obra, possa dar continuidade à
construção permanente e múltipla dos seus sentidos. Esbatendo, como procurou
fazer Lee Lozano, as fronteiras entre forma-de-vida e expressão artística.
Acreditemos, seguindo o optimismo de
Nuno Portas, que o capitalismo não será eterno.
Que embora não saibamos o futuro, tudo o que pudermos ajudar a estudar e a
fazer nesse sentido valerá a pena. [24] Pois só então,
quando o grito de dor se tornar um
grito de alegria, o nosso papel se poderá
elevar acima daquele a que nos limitamos hoje; a saber: acertar as bainhas das girafas
mais altas.
22.
Álvaro SIZA, “Linha de Acção dos Técnicos enquanto Técnicos” [1976], Jornal dos Arquitectos n.204, Lisboa,
2002, p.17
23.
Alusão à comunicação de Nuno Teotónio Pereira no Encontro Nacional de Arquitectos (ENA), realizado em Lisboa, em
Dezembro de 1969, “Participação popular e trabalho do arquitecto”
e publicado em 2018 pela Stones Against
Diamonds.
24. Nuno PORTAS em entrevista ao
Jornal I, publicada a 19 de Novembro de 2013.
•
Nota do autor
“Um
rato arruma as calças de uma girafa”. Evocação de um apontamento de Aldo van
Eyck num esboço da disposição de esculturas no pavilhão Sonsbeek, c.1965.
Imagens
1. “Barraca decorada”, Granby Workshop (crédito: Gary Calton,
para o The Observer).
2. “Gesto Transgressivo”, Práticas em Transgressão, Revista Dédalo,
2019.
3. “Art Workers won't kiss ass”, 1969 (Art
Workers' Coalition).
4. Produtos ‘autênticos’,
Granby Workshop (créditos:
Assemble).
5. Álvaro Siza, Bairro da Bouça (créditos: António Barreto, 1979).
6. Assemble studio, 2016 (créditos: Annie Collinge)
7. Festa na ocupação, Rua do Melo, Bairro da
Bouça, 1975 (Créditos: Alexandre Alves Costa)
João
Paupério & Maria Rebelo
Arquitectos pela FAUP, estudam, escrevem e
projectam em conjunto desde 2014.
Ficha Técnica
Data de publicação: 17.03.2019