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Caderno
\ Claire Fontaine
Paris, 22/3/2008
Caro A.
Prometi a mim
própria várias vezes começar este exercício, mas havia algo que sempre me
interrompia. E, no entanto, o que me interrompe está na origem da necessidade
do exercício. Perdoarás então este texto cheio de fracturas, de obstáculos,
pobre em soluções.
Estou de novo
presa, desta vez intelectualmente, perante o mesmo rochedo que nos bloqueia a
acção: precisamos de estruturas para transportar e para não desperdiçar forças,
mas para as construir necessitaríamos da energia que as lutas desorganizadas do
quotidiano nos roubam.
Necessitamos
urgentemente de um fora, mesmo que seja mínimo, para apoiar as mãos enquanto
nos tentamos levantar, juntos e sós, cada um por si.
Este fora é
chamado, é invocado.
Como se numa
sessão de espiritismo estudássemos as insurreições do passado para as trazer
para perto do nosso vocabulário e dos nossos corpos, ainda que continuem na
verdade distantes dos olhos e do coração.
Para escrever um
texto que fala das relações entre arte e luta necessitaria de uma língua
estrangeira dentro da própria linguagem, uma língua de saltimbancos que
materialize a possibilidade de dançar numa corda bamba e de combater. Ao invés,
tenho apenas os trapos de palavras gastas que tento coser à volta dos
problemas.
Por exemplo, o
problema de nem sequer conseguir pensar em atravessar a ponte que liga a arte e
a vida, se ela alguma vez existiu, sem cair nos braços da lei.
E de não
conseguir admitir este estado de coisas sem me deixar cair em cobardia ou
depressão
Quando se
nomeava os inimigos (capitalismo, imperialismo, patriarcado, globalização) uma
alteridade binária e confortável era inventada.
Participámos
para não participar. (Nas lutas e não no trabalho, nas dinâmicas militantes e
não na sociedade de classes.) Queríamos ser um outro para que aquilo que
odiávamos fosse algo externo a nos próprios.
A
dessubjectivação foi um processo de distanciamento performativo e lógico.
Se não
conseguíamos mudar os aspectos da realidade que mais nos magoavam, então
iríamos transformar-nos em algo de inassimilável, escalando os moralismos,
revelando o aspecto político da ilegalidade.
Tornámo-nos
fora-da-lei, junkies, prostitutos,
pervertidos, violentos – e inevitavelmente ladrões porque a propriedade privada
e os afectos que ela conserva são a justificação de todas as outras opressões.
A prisão foi uma etapa necessária porque foi sempre imposta e porque, de certo
modo, também ela é uma separação do mundo clerical e medíocre do bem-estar do
século XX.
E um problema
surgia no decorrer deste devir.
O modo como os
outros/excluídos se misturavam connosco, aqueles que politicamente não tinham
escolhido a sua exclusão, mas a sofriam – porque eram privados até da escolha
inicial de posicionamento. Este modo deixava muito a desejar.
Na verdade, não
é que fosse pouco satisfatório; era na verdade intolerável, tanto para nós como
para eles.
Totalmente
insuficiente.
Porque os
outros-excluídos continuavam a sentir-se os
outros de alguém, mesmo se tinham o direito de o fazer pesar, sempre com a
obrigação de carregar o peso do que nos dividia, que em vez de se tornar o
motor da revolta se tornou um facto de atraso cinético. Quem sofre é menos
produtivo, mesmo na subversão social, assim o diziam os movimentos, assim dizia
a psiquiatria e os professores. Ámen.
Aí tocávamos o
limite das nossas capacidades, do nosso livre-arbítrio alimentado por dogmas
secretamente democráticos, que era o de não nos podermos mudar a nós próprios
sem uma ruptura social que pudesse varrer o veneno do juízo e do cálculo, a
doença da comparação idiota e brutal, esta polícia dos comportamentos.
Recusar tomar
parte num processo revolucionário enquanto dever foi algo adquirido nos anos
setenta. E, no entanto, o adiamento permanente da satisfação, num mundo que já
permitia bem poucas ocasiões de prazer, tinha transformando os “militantes” em
figuras ascéticas, incapazes de contaminar.
A escolha da
margem enquanto local de onde prodigar empenho acabou por se tornar um dever
simétrico ao que recusávamos, e talvez ainda mais insidioso. Por vezes a única
reacção aos nossos gestos que atestava a sua natureza política era a repressão.
Era como se a
sociedade fosse plastificada, e não só era infiltrável, mas mudava-nos mais do
que mudávamos a ela.
Quem recusa a
luta armada parte logo de uma posição derrotada no braço de ferro militar
contra a sociedade. Quem quer que aceite a luta armada aceita estar só nesta
luta, porque sabe que os seus camaradas não só não gostam do braço armado, mas
têm-lhe horror.
E éramos,
afastados do rio tumultuoso dos movimentos, nada senão presenças isoladas,
prisioneiros da nossa identidade de náufragos, um episódio que se faz por
esquecer.
Se não havia
qualquer prazer a ter no local que escolhemos a culpa era sempre de um ou de
outro, mas nunca do inimigo que nos perseguiu até estes túneis sociais
asfixiante e nos condenou à endogamia.
Sobreviventes de
um acidente não-declarado, veteranos de um Vietnam imaginário, cheios de
histórias que não interessam a ninguém, oprimidos pela necessidade de nos
adaptarmos ao presente para melhor o destruir, em coexistência forçada.
(perdoa-me por
todas estas metáforas, e também pelas que não vou conseguir evitar mesmo mais
tarde: Sei que fazer metáforas serve para expor a insuficiência da linguagem
reconstruindo lendas quando há uma necessidade de lógicas. Fazer metáforas é
estar em falta de exemplos concretos e de sentir um desconforto com a história.
Ou talvez só um pudor burguês em dizer as coisas tal como elas são, nem sempre
literárias, nem sempre linguísticas.)
A conclusão a
que fomos forçados a chegar é que os privilégios não podem ser destruídos
renunciando-os. A separação permanece e permanece ligada à própria decisão
dessa renúncia, uma decisão nobre que é dada a poucos e em virtude dessa
nobreza é reversível. Os privilegiados que se expõem ao perigo de lutar contra
a sociedade, de viver nos seus interstícios, capitalizam esta experiência de
estranhamento e podem, mais fortes e mais capazes, regressar ao local social de
onde vieram.
Este facto, mais
do que reforçar a crença num determinismo de classe (Ex: um burguês nunca
lutará tão sinceramente quanto um proletário), fá-lo vacilar perigosamente.
Porque se é
verdade que, na ausência de um processo revolucionário, ninguém pode mudar quer
a si próprio quer à sociedade dessubjectivando-se à margem, então também é
verdade que a alegria e os privilégios que se saboreia num mundo que continua
capitalista são prazeres baseados na submissão e na pilhagem dos outros,
prazeres separatórios e insociáveis. Prazeres bestiais em última análise,
porquanto se possam pretender refinados.
A margem das
lutas, com todos os seus defeitos, permanece um local melhor, uma fonte de
criatividade, uma forma de luxo, um Eldorado perdido para quem regressou a casa
mas não pode recuar no caminho sem se recusar.
Mas o problema é
que se o objectivo é livrar-nos do burguês dentro de nós próprios, ou do
pequeno-burguês para ser mais preciso, isto não pode ser feito mimetizando o
contrário ou gesticulando a automutilação social. Não pode ser feito pensando
na pequeno-burguesia enquanto uma audiência de espectadores distraídos, a
converter ou escandalizar.
Em 1968
encerrou-se um ciclo de lutas juntamente com uma tempestade de subjectivações,
que não apenas se tornaram argumentos para a venda de perfumes, roupa e mais,
mas que nos deixaram, do ponto de vista de um ser humano e não apenas de um ser
social, numa situação semelhante àquela em que se viu a abstracção emergir na
paisagem da história da arte.
O carácter
prescritivo de cada teoria revolucionária – e nota que aqui economizo citações
no sentido de manter o afinamento com a pobreza que descrevo – soa hoje
patético e irrealizável porque está sempre atrasado em relação à miríade de
outras necessidades efectivas imediatamente impostas na subjectividade pelas
instruções comerciais. As empresas são as primeiras produtoras de mundos já
possíveis, e depois das instruções para o seu uso agradável.
A ideia de uma
política de meios sem fins que pudesse apontar à reabilitação da humanidade e à
desqualificação da máquina política que digere a vida é ainda auroral. Talvez
porque uma política que sugira um terreno de imanência pura de modo a elevar-se
oculte o facto de este terreno estar colonizado por uma mercadoria sempre nova,
que ocupa cada espaço onde as mãos possam pousar, continuamente varrendo o
possível que lhe poderá servir de alavanca, rapidamente o deixando infestado de
fetichismo e de desejos errados.
A doença
económica e social já não é este exterior; já não é, por agora, uma zona
energética que possa gerar lutas de modo a transformar os habitantes do planeta
e a assegurar que o próprio planeta possa mudar. Saber isto dá-nos dor mas não
força.
E nem os
constrangimentos nem a dor fazem ainda mundos. Nas democracia liberais, como já
o era nos regimes totalitários, saímos do registo lírico e trágico, saímos do
expressionismo, estamos na abstracção económica. Qualquer imagem de extermínio
é para o poder, e cedo será para nós, tão figurativa quanto um croma.
O Realismo
sempre foi uma questão de tradução, uma construção feita de códigos, mas agora
para acreditar na realidade necessitamos de imagens e palavras mais libertas do
presente, porque o presente é feito de mercadorias e dos afectos que delas
derivam.
Outros problemas
bloqueiam-me e paralisam-me, e estes são ainda mais perigosos porque habitam a
relação entre subversão e conhecimento. Se é fácil criticar o conceito de
cultura acumulativa e mnemónica que informava a boa velha burguesa e a sua
escola, é difícil compreender porque é que os movimentos políticos radicais não
podem ir mais frequentemente pescar na margem da informação fragmentada e
preciosa das vanguardas.
A vanguarda (requiescant in pace), o com seu cortejo
habitual de museificações e encapsulações em jarros de vidro, é desde há 40
anos apenas sinónimo de mais-valia sofisticada.
Recordo ainda a
grande desconfiança com que os autónomos olhavam para os pós-punks nos anos 90.
“todos filhos da burguesia” diziam, como se a revolta desfuncionalizada,
emancipada do activismo e colocada num espaço existencial, fosse um luxo
inaceitável. Como se a rejeição do trabalho devesse sempre ser convertida em formas
de luta produtiva de subversão e socialização, como se trabalhar para as
condições de uma revolução fosse uma actividade tão linear e progressiva como a
do trabalho assalariado, só que apontada em outra direcção...
A vanguarda
permanece de facto carta morta, permanece um luxo não desejável porque o seu
valor de uso é desconhecido. Como dizer que o único paradigma de transmissão de
saber que nos é familiar é o da universidade, com o seu sistema fechado de
poder e de compromissos, mas sobretudo com o seu acordo tácito de nunca fazer
uma utilização efectiva dos conhecimentos transmitidos, criados e acumulados.
Grandes
barricadas colocadas entre a arte e a vida, entre o saber e o viver, catedrais
erigidas à glória da masturbação mental, as universidades ainda desajustadas do
mercado que deveriam oferecer refúgio do inferno da mercadoria pelo menos por
alguns anos aos jovens à procura de pesquisa, já não hospedam qualquer conflito
entre os seus muros e aniquilam quem faz demasiadas perguntas.
As universidades
após 68 revelaram-se aquilo que são: vectores de humilhação e reprodução
social, casernas de polícia para os desejos de empenho político, tumbas de
intelectuais militantes.
A transmissão, a
discussão e o estudo deixaram assim, a partir de um certo ponto, de poder ser
momentos socializantes, de reforço e não comerciais. Se estes sobreviveram nas
faculdades conservaram pouco valor de troca e perderam qualquer valor de uso.
O saber resiste,
estendido morto entre as páginas, mas não há ninguém para o animar e que lhe
permita alcançar e transformar os corpos.
E dito isto
caímos uma outra vez nas escadarias da história para regressar ao ponto de
partida. É deste ponto que te escrevo ou tento escrever.
A certo ponto,
no meio dos anos 80, recordo que se perdeu a noção de cultura. Não que se tenha
perdido o sentido, mas perderam-se as suas instruções de uso. Foi esquecido
então que a cultura não se produz nem se assimila com cada um fechado na sua
própria fortaleza contemplativa, mas só animando relações sociais compatíveis
com as verdades políticas que a animam. As culturas existem apenas no plural e
activam-se não tanto estudando mas fazendo filhos, tendo amizades, cultivando
amores que nos tornam capazes de compreender e agir. São os nossos
comportamentos quotidianos recíprocos que já não nos colocam em condições de
passar uma tarde a ler Lenine ou Foucault e permitem fazer algo de realmente e
imediatamente subversivo. Se a cultura é a crítica permanente ao conceito de
“património”, então porque regressa sempre a filiação, o estado, a imposição de
cada vez que dela se fala? Mais do que uma pistola, desta vez é um arsenal
nuclear que nos afronta.
Podes responder
que vivemos um momento violento. E que a violência baixa o nível dos debates
porque usurpa o posto da palavra, traz os corpos ao primeiro plano, com a sua
fragilidade e desadequação, recorda quanto e como somos governados. Mas
recorda-nos também que a abstracção não deveria mascarar nem a urgência dos
desejos nem a abjecção do racismo, do machismo e da contínua ofensa à infância
que cada dia se perpetua sobre todos nós.
A abstracção
deveria permitir pensar mais longe, levando connosco todo o peso das nossas
insuficiências mas sem qualquer vergonha, deveria lutar contra a força da
gravidade e não fazer-nos escorregar. Isto talvez seja jogado – como os
malabaristas sem experiência lançam as tochas, segundo uma lógica de
sobrevivência mas sem rigor coreográfico – na arte contemporânea, sem nos
queimarmos. Mas a arte não é um refúgio, não é uma posição, não é uma postura,
é apenas um trabalho. Isto deve ser recordado e quando se diz “os artistas”
deveríamos dizê-lo como dizemos “os médicos” ou “os construtores”.
Um amigo meu
dizia: o problema nunca é a repressão, o problema é o medo. O problema não é
receber o golpe, porque quando somos atingidos somos suficientemente fortes
para o suportar, o problema é viver toda a vida evitando o golpe, procurando
fugir-lhe, mas frequentemente apanhando-o em cheio e perdendo não apenas a
saúde mas também a dignidade.
Claire
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Claire Fontaine
Claire
Fontaine é um colectivo artístico sediado em Paris, fundado em 2004 por Fulvia
Carnevale e James Thornhill. Trabalhando em néon, vídeo, escultura, pintura e
texto, o seu trabalho pode ser descrito como uma interrogação contínua da
incapacidade política e da crise da singularidade que parece definir a
sociedade contemporânea.
Notas da edição
Este
texto é parte integrante do Dossier Claire Fontaine,
coordenado por Luhuna Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Tradução de
Luhuna Carvalho. Revisão de Pedro Levi Bismarck.
Imagem
Claire Fontaine, They Hate Us For Our Freedom, 2013.
Ficha técnica
Data
de publicação: 29 de Janeiro 2016
Etiqueta:
Pensamento crítico \ Politica; Artes \ Escritas
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