O novo Matadouro Municipal do
Porto, projecto de arquitectura do gabinete de arquitectos do Porto OODA com o
arquitecto japonês Kengo Kuma, foi apresentado esta semana com a presença, ao
mais alto nível, de Marcelo Rebelo de Sousa, para quem a reconversão do
Matadouro é, nem mais nem menos, do que «fazer urbanismo de futuro». Uma
afirmação inquietante, mas nem por isso excêntrica.
Se o projecto inicial (do
gabinete de arquitectura Garcia & Albuquerque), ainda com a marca de Paulo
Cunha e Silva, ambicionava ser o pólo fundamental de uma «cultura para os
cidadãos e não para os agentes culturais», assumindo a intervenção pública do
Município numa zona marginalizada da cidade, o projecto final é um regresso a
um passado recente, seguindo o modelo SRU-Porto Vivo/Rui Rio (à imagem do Quarteirão
das Cardosas, da Praça de Lisboa ou do Mercado do Bom Sucesso). E se é verdade
que o primeiro projecto implicava já uma forte componente multifuncional com
uma "Área de Empresas Criativas e Tecnológicas" e afins, tínhamos, no
entanto, uma intervenção que aceitava em escala e dimensão a estrutura
arquitectónica do edifício original.
Há aqui dois aspectos fundamentais.
Primeiro, a renúncia da Câmara em assumir uma intervenção pública ao
concessionar o edifício à Mota-Engil. Um modelo totalitário de concurso que
junta concepção, projecto, construção, manutenção e exploração numa mesma
entidade, deixando de fora uma discussão efectiva sobre o programa, mas também
sobre o próprio edifício. Se, no primeiro caso, já teríamos notado a ausência
de um concurso público de arquitectura, aqui os termos/condições do concurso
são ainda mais preocupantes. Não se trata apenas da privatização de um
edifício, mas da privatização do próprio processo de produção e discussão da
cidade e da sua arquitectura. Por outro lado, desfazem-se todas as expectativas
em torno de um equipamento colectivo capaz de servir uma zona segregada da
cidade, com a hipótese de convocar projectos culturais, sociais e empresariais
de pequena escala, numa cidade consumida violentamente pela especulação imobiliária.
E não é pelo projecto simplesmente permitir a ligação à estação de metro do
Estádio de Dragão (do outro lado da VCI) que se acabaria com a marginalização de
Campanhã. A necessidade de uma política pública
capaz de responder aos efeitos das transformações urbanas provocadas pelo
turismo e pela gentrificação, é trocada por uma política privada que abandona iniciativas mínimas de coesão social e
territorial e aposta na mercantilização dos seus equipamentos, deixando a cargo
do mercado aquilo que deveriam ser funções essenciais do município. Não deixa
de ser curioso notar que ninguém refere que aqui o «Estado falhou» e, no fundo,
é, precisamente, aqui que ele falha.
A estrutura arquitectónica do novo
Matadouro é reflexo e instrumento desse modelo – e este é o segundo aspecto. O
gigantismo kitsch do projecto
demonstra o regresso a um formato pré-crise 2007, de grandes projectos urbanos:
o modelo do edifício-ícone. Embora com uma alteração fundamental, tratam-se de
iniciativas de capital privado. Estes são edifícios de formas geralmente
apelidadas como “arrojadas”, que recorrem ostensivamente ao arsenal compositivo
e criativo do arquitecto para produzir um efeito
público de legitimação da operação imobiliária em curso. Tal como noutros
processos de “regeneração urbana” – como são subtilmente identificados – aquilo
que temos são, principalmente, modelos de gentrificação para responder às
necessidades imediatas de valorização de solo urbano. Nesse sentido, o
Matadouro é um verdadeiro acelerador de gentrificações. Não é um equipamento
colectivo, não é uma ferramenta de política social. É o sinal de uma política
que deixa de operar para a cidade e visa apenas a reprodução sem fim do
mercado.
A membrana-cobertura ondulada e maleável
que cobre o edifício original e os “espaços
públicos” adjacentes, criando ainda uma passagem pedonal por cima da VCI, é a chave
de leitura deste projecto. A sua função arquitectónica imediata é a de unificar
a totalidade de um conjunto edificado bastante heterogéneo, procurando interligar
edifícios e a passagem pedonal. Por um lado, contribui para uma forte
legibilidade do projecto, dentro das necessidades próprias do modelo do edifício-ícone,
por outro lado, tem a “virtude” de provocar a ilusão de que é uma estrutura bastante
maior do que aquilo que é na realidade. O ar kitsch da membrana-cobertura é o sintoma de uma operação
arquitectónica cujo apetite de cosmopolitismo provém, precisamente, do seu
profundo provincianismo. Algo que se comprova no penoso exercício que é
observar as imagens tridimensionais do projecto, na repetição até à exaustão de
modelos de representação de uso do espaço há muito banalizados pelas
estratégias comerciais do imobiliário.
Mas a membrana-cobertura tem ainda
uma função ideológica que é absolutamente decisiva, porque esta é o meio através
do qual se oculta o edifício original do Matadouro e a pequena escala das
estruturas adjacentes, absorvendo-as totalmente na nova estrutura. É uma
espécie de efeito trompe-l'oeil barroco
que procura dissimular ou maquilhar os limites reais de um espaço, estendendo-o
indefinidamente. É como se o novo Matadouro só fosse possível à custa da
ocultação do edifício existente e do seu contexto, ou melhor, é como se a
operação urbanística só fosse possível dissimulando (e mascarando) as condições
sociais e económicas onde o edifício está implantado, só fosse possível dissimulando
as reais condições de miséria e desigualdade de um território como Campanhã,
atravessado por «Ilhas» e Bairros Sociais isolados e segregados entre si.
O efeito retórico da membrana-cobertura
é assim duplo. Ao ser o elemento ícone da
operação arquitectónica, assume que está em vez de qualquer coisa que permanece
ausente, isto é, neste caso: oferece a ilusão que pertence a uma política
urbana pública integrada e articulada quando, na verdade, é uma pura operação
imobiliária. Por outro lado, a cobertura é também um manifesto ou a
manifestação de um efeito de
interiorização, demonstrando que, por mais permeabilidade sugerida ou
insinuada, aquilo que está em jogo nestas operações são sempre processos de
segregação e exclusão, de privatização de espaço. A dificuldade em reconhecer o
limite da membrana-cobertura é, assim, o prenúncio de um projecto e de uma operação
imobiliária cujo desejo é estender indefinidamente a lógica interior(izada) e
privada do mercado à cidade no seu todo. Talvez tivesse razão Marcelo Rebelo de
Sousa: estamos mesmo perante um «urbanismo
de futuro».
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Imagem
Via archdaily
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal
Punkto, investigador no CEAU e assistente convidado na FAUP.
Ficha Técnica
Data de publicação: 23.01.2019
Etiqueta:
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Cidades