Requiem para um Matadouro • Pedro Levi Bismarck




O novo Matadouro Municipal do Porto, projecto de arquitectura do gabinete de arquitectos do Porto OODA com o arquitecto japonês Kengo Kuma, foi apresentado esta semana com a presença, ao mais alto nível, de Marcelo Rebelo de Sousa, para quem a reconversão do Matadouro é, nem mais nem menos, do que «fazer urbanismo de futuro». Uma afirmação inquietante, mas nem por isso excêntrica.

Se o projecto inicial (do gabinete de arquitectura Garcia & Albuquerque), ainda com a marca de Paulo Cunha e Silva, ambicionava ser o pólo fundamental de uma «cultura para os cidadãos e não para os agentes culturais», assumindo a intervenção pública do Município numa zona marginalizada da cidade, o projecto final é um regresso a um passado recente, seguindo o modelo SRU-Porto Vivo/Rui Rio (à imagem do Quarteirão das Cardosas, da Praça de Lisboa ou do Mercado do Bom Sucesso). E se é verdade que o primeiro projecto implicava já uma forte componente multifuncional com uma "Área de Empresas Criativas e Tecnológicas" e afins, tínhamos, no entanto, uma intervenção que aceitava em escala e dimensão a estrutura arquitectónica do edifício original.

Há aqui dois aspectos fundamentais. Primeiro, a renúncia da Câmara em assumir uma intervenção pública ao concessionar o edifício à Mota-Engil. Um modelo totalitário de concurso que junta concepção, projecto, construção, manutenção e exploração numa mesma entidade, deixando de fora uma discussão efectiva sobre o programa, mas também sobre o próprio edifício. Se, no primeiro caso, já teríamos notado a ausência de um concurso público de arquitectura, aqui os termos/condições do concurso são ainda mais preocupantes. Não se trata apenas da privatização de um edifício, mas da privatização do próprio processo de produção e discussão da cidade e da sua arquitectura. Por outro lado, desfazem-se todas as expectativas em torno de um equipamento colectivo capaz de servir uma zona segregada da cidade, com a hipótese de convocar projectos culturais, sociais e empresariais de pequena escala, numa cidade consumida violentamente pela especulação imobiliária. E não é pelo projecto simplesmente permitir a ligação à estação de metro do Estádio de Dragão (do outro lado da VCI) que se acabaria com a marginalização de Campanhã. A necessidade de uma política pública capaz de responder aos efeitos das transformações urbanas provocadas pelo turismo e pela gentrificação, é trocada por uma política privada que abandona iniciativas mínimas de coesão social e territorial e aposta na mercantilização dos seus equipamentos, deixando a cargo do mercado aquilo que deveriam ser funções essenciais do município. Não deixa de ser curioso notar que ninguém refere que aqui o «Estado falhou» e, no fundo, é, precisamente, aqui que ele falha.

A estrutura arquitectónica do novo Matadouro é reflexo e instrumento desse modelo – e este é o segundo aspecto. O gigantismo kitsch do projecto demonstra o regresso a um formato pré-crise 2007, de grandes projectos urbanos: o modelo do edifício-ícone. Embora com uma alteração fundamental, tratam-se de iniciativas de capital privado. Estes são edifícios de formas geralmente apelidadas como “arrojadas”, que recorrem ostensivamente ao arsenal compositivo e criativo do arquitecto para produzir um efeito público de legitimação da operação imobiliária em curso. Tal como noutros processos de “regeneração urbana” – como são subtilmente identificados – aquilo que temos são, principalmente, modelos de gentrificação para responder às necessidades imediatas de valorização de solo urbano. Nesse sentido, o Matadouro é um verdadeiro acelerador de gentrificações. Não é um equipamento colectivo, não é uma ferramenta de política social. É o sinal de uma política que deixa de operar para a cidade e visa apenas a reprodução sem fim do mercado.

A membrana-cobertura ondulada e maleável que cobre o edifício original e os “espaços públicos” adjacentes, criando ainda uma passagem pedonal por cima da VCI, é a chave de leitura deste projecto. A sua função arquitectónica imediata é a de unificar a totalidade de um conjunto edificado bastante heterogéneo, procurando interligar edifícios e a passagem pedonal. Por um lado, contribui para uma forte legibilidade do projecto, dentro das necessidades próprias do modelo do edifício-ícone, por outro lado, tem a “virtude” de provocar a ilusão de que é uma estrutura bastante maior do que aquilo que é na realidade. O ar kitsch da membrana-cobertura é o sintoma de uma operação arquitectónica cujo apetite de cosmopolitismo provém, precisamente, do seu profundo provincianismo. Algo que se comprova no penoso exercício que é observar as imagens tridimensionais do projecto, na repetição até à exaustão de modelos de representação de uso do espaço há muito banalizados pelas estratégias comerciais do imobiliário.

Mas a membrana-cobertura tem ainda uma função ideológica que é absolutamente decisiva, porque esta é o meio através do qual se oculta o edifício original do Matadouro e a pequena escala das estruturas adjacentes, absorvendo-as totalmente na nova estrutura. É uma espécie de efeito trompe-l'oeil barroco que procura dissimular ou maquilhar os limites reais de um espaço, estendendo-o indefinidamente. É como se o novo Matadouro só fosse possível à custa da ocultação do edifício existente e do seu contexto, ou melhor, é como se a operação urbanística só fosse possível dissimulando (e mascarando) as condições sociais e económicas onde o edifício está implantado, só fosse possível dissimulando as reais condições de miséria e desigualdade de um território como Campanhã, atravessado por «Ilhas» e Bairros Sociais isolados e segregados entre si.

O efeito retórico da membrana-cobertura é assim duplo. Ao ser o elemento ícone da operação arquitectónica, assume que está em vez de qualquer coisa que permanece ausente, isto é, neste caso: oferece a ilusão que pertence a uma política urbana pública integrada e articulada quando, na verdade, é uma pura operação imobiliária. Por outro lado, a cobertura é também um manifesto ou a manifestação de um efeito de interiorização, demonstrando que, por mais permeabilidade sugerida ou insinuada, aquilo que está em jogo nestas operações são sempre processos de segregação e exclusão, de privatização de espaço. A dificuldade em reconhecer o limite da membrana-cobertura é, assim, o prenúncio de um projecto e de uma operação imobiliária cujo desejo é estender indefinidamente a lógica interior(izada) e privada do mercado à cidade no seu todo. Talvez tivesse razão Marcelo Rebelo de Sousa: estamos mesmo perante um «urbanismo de futuro».
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Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, investigador no CEAU e assistente convidado na FAUP.

Ficha Técnica
Data de publicação: 23.01.2019