• As virtudes do inexplicável: a propósito dos coletes amarelos • Jacques Rancière




Explicar os “coletes amarelos”? O que se entende por explicar? Fornecer as razões pelas quais aconteceu aquilo que não era esperado? De facto, essas razões raramente se esgotam. E para explicar o movimento dos “coletes amarelos”, elas surgiram com abundância: a vida nas áreas periféricas abandonadas pelos transportes, pelos serviços públicos e pelos comércios de proximidade, o cansaço causado pelos longos trajectos quotidianos, os empregos precários, os salários insuficientes ou as pensões indecentes, a existência a crédito, os finais de meses difíceis…

Há seguramente muitas razões para sofrer. Mas sofrer é uma coisa, não sofrer mais é outra. É mesmo o contrário. Mas as razões do sofrimento enumeradas para explicar a revolta são exactamente iguais àquelas através das quais se explica a sua ausência: os indivíduos submetidos a tais condições de existência não costumam ter tempo nem energia para se revoltar.

A explicação das razões pelas quais as pessoas se mobilizam é idêntica à das razões pelas quais elas não se mobilizam. Isto não é uma simples inconsistência. Trata-se da própria lógica da razão explicativa. O seu papel é provar que um movimento que superou todas as expectativas não tem razões para além daquelas que sustentam a ordem normal das coisas, que ele se explica pelas mesmas razões da imobilidade. Ela serve para provar que não se passou nada que não fosse já conhecido, do que se tira, à direita, a conclusão de que esse movimento não tem razão de ser, ou, à esquerda, de que ele é totalmente justificável, mas que, infelizmente, foi conduzido num mau momento ou de maneira errada por pessoas que não eram as melhores. O essencial é que o mundo permaneça dividido em dois: há as pessoas que não sabem porque se mobilizam, e as pessoas que sabem disso por elas.

Às vezes, é necessário considerar as coisas do modo inverso: começar precisamente pelo facto de aqueles que se revoltam não terem mais razões para fazê-lo do que para não o fazer — e muitas vezes até um pouco menos. E a partir daí, interrogar-se, não sobre as razões que permitem ordenar essa desordem, mas antes sobre o que essa desordem nos diz sobre a ordem dominante das coisas, e sobre a ordem de explicações que normalmente a acompanha.

Mais do que qualquer outro nos anos recentes, o movimento dos coletes amarelos é constituído por pessoas que normalmente não se mobilizam: não são os representantes de classes ou de categorias sociais definidas, conhecidas pelas suas tradições de luta. Os homens e as mulheres de meia-idade, idênticos àqueles com que nos cruzamos todos os dias nas ruas e nas estradas, nos estaleiros e nos parques de estacionamento, tendo como único distintivo um acessório que todo o automobilista é obrigado a possuir. Eles começaram por se manifestar pela mais prática das preocupações, o preço da gasolina: símbolo dessa massa votada ao consumo que suscita os corações dos intelectuais consagrados; símbolo também dessa normalidade sobre a qual repousa o sono tranquilo dos nossos governantes: essa maioria silenciosa, feita de indivíduos puros, dispersos, sem forma de expressão colectiva, sem outra “voz” que não aquela periodicamente pesquisada pelas sondagens de opinião e pelos resultados eleitorais.

As revoltas não têm razões. Em contrapartida, elas têm uma lógica. E esta consiste precisamente em romper com os quadros dentro dos quais normalmente são percebidas as razões da ordem e da desordem e as pessoas aptas a avaliá-las. Esses quadros correspondem principalmente a usos do espaço e do tempo. Significativamente, esses “apolíticos”, dos quais sublinhamos a diversidade ideológica, retomaram a forma de acção dos jovens indignados dos movimentos das praças, uma forma que os estudantes em revolta tinham, eles próprios, emprestado aos operários em greve: a ocupação.

Ocupar é escolher, para se manifestar como colectividade em luta, um lugar ordinário do qual rejeitamos a conotação normal: produção, circulação ou outra. Os coletes amarelos escolheram as rotundas, esses não-lugares em torno dos quais os automobilistas anónimos circulam todos os dias. Eles instalaram material de propaganda e barracas improvisadas tal como o tinham feito, nos últimos dez anos, os anónimos reunidos nas praças ocupadas.

Ocupar é também criar um tempo específico: um tempo delongado face à actividade habitual, e, portanto, um tempo de distanciamento face à ordem habitual das coisas; um tempo acelerado, pelo contrário, pela dinâmica de uma actividade que nos obriga a responder incessantemente a prazos para os quais não estamos preparados. Essa dupla alteração do tempo perturba as velocidades normais do pensamento e da acção. Ao mesmo tempo, ela altera a visibilidade das coisas e o sentido do possível. Aquilo que era objecto de sofrimento adquire uma outra visibilidade, a da injustiça — a rejeição de um imposto torna-se o sentimento de injustiça fiscal, e depois no sentimento de injustiça global face a uma ordem do mundo. Quando um colectivo de iguais interrompe o curso normal do tempo e começa a explorar um tópico particular — imposto sobre a gasolina, hoje, acesso à universidade, reforma das pensões ou código do trabalho, ontem — é todo o tecido intrincado das desigualdades que estruturam a ordem global de um mundo governado pela lei do lucro que se começa a desdobrar. 

Já não se trata de uma reivindicação que exige satisfação. São dois mundos que se opõem. Mas essa oposição de mundos amplia a distância entre aquilo que é exigido e a própria lógica do movimento. O negociável torna-se não negociável. Para negociar, enviam-se representantes. Mas os “coletes amarelos”, provenientes desse país profundo que muitas vezes se diz ser vulnerável às sirenes autoritárias do “populismo”, retomaram aquela reivindicação de horizontalidade radical que se crê própria dos jovens anarquistas românticos dos movimentos Occupy ou dos ZAD. Entre iguais reunidos e gestores do poder oligárquico não há negociação. Isto significa que a reivindicação triunfa pelo mero receio dos segundos, mas também que a sua vitória evidencia a sua insignificância face ao que a revolta “deseja” segundo o seu desenvolvimento imanente: o fim do poder dos “representantes”, daqueles que pensam e agem pelos outros.

É verdade que essa “vontade” pode tomar a forma de uma reivindicação: o famoso referendo de iniciativa cidadã. Mas, na verdade, a fórmula da reivindicação razoável esconde a oposição radical entre duas ideias de democracia: de um lado, a concepção oligárquica dominante: a contagem de votos a favor e de votos contra em resposta a uma questão colocada. Do outro lado, a sua concepção democrática: a acção colectiva que declara e verifica a capacidade de qualquer um na formulação das próprias questões. Porque a democracia não é a escolha maioritária dos indivíduos. É a acção que integra a capacidade de qualquer um [de n’importe qui], a capacidade daqueles que não têm “competência” para legislar e governar.

Entre o poder dos iguais e o das pessoas “competentes” para governar, pode sempre haver confrontos, negociações e compromissos. Mas, por detrás disso, resta o abismo da relação não negociável entre a lógica da igualdade e a da desigualdade. É por isso que as revoltas ficam sempre a meio caminho, para grande desagrado e grande satisfação dos sábios que as declaram condenadas ao fracasso por serem desprovidas de “estratégia”. Mas uma estratégia não é senão uma maneira de regular os golpes no interior de um determinado mundo. Nenhuma ensina a preencher a lacuna entre dois mundos. “Nós iremos até ao fim”, dizem eles a cada vez. Mas esse fim do caminho não é identificável para nenhum propósito determinado, sobretudo desde que os Estados ditos comunistas se afogaram no sangue e sufocaram a esperança revolucionária. Pode ser este o caminho para compreender o slogan de 1968: “Este não é senão um começo, continuemos o combate.” Os começos não atingem o seu fim. Eles permanecem em curso. Isso também significa que eles nunca cessam de recomeçar, mesmo que isso signifique mudar de actores. É o realismo — inexplicável — da revolta, aquele que exige o impossível. Porque o possível já foi feito. Essa é a fórmula do poder: não há alternativa.

Nota de edição
Este texto foi publicado originariamente no site AOC [Analyse Opinion Critique]. Tradução realizada por Paulo Ávila para Jornal Punkto. Imagem: Jean-Pierre Sageot (Fonte: Lundi Matin)

Jacques Rancière
Nasceu em 1940 na Argélia. Em 1965, escreveu com Louis Althusser e Étienne Balibar, o livro “Lire le Capital”. Foi Professor emérito da Universidade de paris VIII, onde leccionou estética e política. Entre as suas obras destaca-se A Noite dos Proletários (1981 - publicado pela Antígona, 2012), O Mestre Ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual (1987 – publicado em português pela Pedago, 2010), Nas Margens do Político (1990 – publicado pela Imago, 2014), Estética e Política. A Partilha do Sensível (2000 – publicado pela editora Dafne, 2010), O espectador emancipado (2008 – publicado pela Orfeu Negro, 2010).

Ficha Técnica
Data de publicação: 18.01.2019
Caderno: Os Coletes Amarelos e Nós