A Insurreição Francesa • Toni Negri






Vamos reflectir sobre o que aconteceu em França nestas últimas semanas. Poderemos chamar-lhe insurreição? A resposta — claro — depende do que queremos dizer com a palavra insurreição, mas seja qual for a nossa opinião, algo dessa natureza aconteceu. E, provavelmente, continuará a acontecer. Não são os confrontos violentos ocorridos em Paris nos últimos dois sábados que nos mostram isso. Nem são as barricadas ou os carros que ardem nas ruas do centro da cidade, nem mesmo as Jacqueries esporádicas ou os bloqueios de estradas que se estendem por todo o país. O que nos mostra isso é a aprovação por dois terços da população do movimento provocado pelo aumento dos preços da gasolina. E esta aprovação tem um alcance muito maior do que qualquer condenação à desordem. É interessante que possamos observar, a este respeito, indícios de insubordinação no comportamento do corpo de bombeiros e da polícia.
Há, sem dúvida, em França, uma multidão que se insurge violentamente contra a nova miséria provocada pelas reformas neoliberais. Uma multidão que protesta contra a redução da força de trabalho, a precariedade e os constrangimentos impostos à vida civil por serviços públicos insuficientes; a tributação selvagem dos serviços sociais, os cortes colossais nas finanças da administração municipal, e agora, cada vez mais, os efeitos (que começam a ser mensurados) da Loi Travail [Lei do Trabalho]. Uma multidão que neste momento está preocupada com os próximos ataques às pensões e aos gastos nacionais com a educação (universidades e escolas secundárias). Há, portanto, em França, algo que emerge violentamente contra esta miséria e que é sucedido pelo grito “Macron, démission!” — é um ataque contra as escolhas feitas pelo banqueiro Macron a favor das classes dominantes. Os objectivos da insurreição são Macron e os impostos. Assim sendo, o movimento que surgiu a partir destas exigências não é um movimento social tradicional — ou, pelo menos, não assume a forma tradicional do século XX, em que apresenta os seus objectivos de maneira a que as instituições do Estado aceitem ou recusem seguir um processo de mediação via órgãos sociais intermediários. É um movimento de grande multitude, expressão do enorme sofrimento social acumulado até agora, que não quer intermediação.
Existe algo particularmente marcante neste movimento, que o distingue das revoltas mais intensas dos últimos anos — a revolta de 2005 dos habitantes das periferias, por exemplo. Se essa revolta trouxe marcas de libertação, esta tem uma face desesperada. Sem mencionar o [Maio de] 68. Em 1968, o movimento estudantil estabeleceu-se nos alicerces de um continuum de luta operária. O Maio de 68 foi de 10 milhões de trabalhadores industriais em greve, uma tempestade que atingiu o ponto mais alto da reconstrução e do desenvolvimento pós-guerra. A situação de hoje está encerrada. Para mim, humilde intérprete de grandes movimentos, isto relembra-me mais as revoltas das prisões do que a alegria da sabotagem em massa dos trabalhadores. Em todo o caso, o que temos aqui é um movimento artificial, contraditório e dividido internamente ao longo de linhas territoriais, geracionais e de classe, entre muitas outras; o que o unifica é a recusa de negociar, a recusa de dar uma oportunidade às estruturas políticas existentes. É sem dúvida uma insurreição e, por enquanto, o seu desenvolvimento é indecifrável.
Este movimento é encarado por um governo que não está disposto a ceder. Do que podemos ter como certo é que Macron está a manobrar-se a si próprio dentro de uma situação complicada. Diante de uma crise económica incapaz de conter, procurou forjar uma aliança europeia hegemónica com Merkel, baseada num acordo comum quanto à direcção “bicéfala” que o processo de unificação europeia deveria tomar, ponderando transferir para esta aliança os custos de reestruturação e da saída definitiva da França de uma “minoria” económica — um status dificilmente enquadrável com o seu orgulho nacional e colonial. Mas esta hipótese foi abortada ou, no mínimo, substancialmente minada. Significa isto que estamos a entrar numa recessão? Macron e aqueles que o rodeiam sabem que é uma possibilidade. Sabem, pelo menos, que Merkel terminou o seu ciclo e que a hipótese que fundamentou a base para uma reorganização da forma estatal em França foi impedida. As regras da União Europeia serão cada vez mais definidas pelos banqueiros do norte da Europa e o centro de equilíbrio está a deslocar-se para essas regiões. Havia — e ainda há — duas opções para Macron sair do impasse em que se encontra. Existem soluções que implicam uma mudança de rumo: a reintrodução do imposto solidário sobre a riqueza (ISF), a reintrodução de uma tributação progressiva dos rendimentos dos títulos e a abolição da contribuição de previdência do CSG (a “contribuição social generalizada”), que incide um corte mesmo nos salários mais baixos… supostamente para ajudar os pobres! (são necessários, por exemplo, 50 euros de uma pensão de 500 euros por mês!); e, claro, a abolição dos aumentos actuais e futuros do preço da gasolina (na verdade, aumentos no início do próximo ano nos preços de todos os serviços básicos – electricidade, gás, comunicações e, provavelmente, propinas). Estas são escolhas que Macron não pode implementar sem romper com o bloco de poder que o apoia. E depois há soluções drásticas, impondo um estado de emergência ou dissolvendo a assembleia nacional. E, efectivamente, rumores deste tipo estão a começar a difundir-se...
Mas o verdadeiro obstáculo à acção reside noutro ponto. Macron desmantelou todos os órgãos intermediários e todas as relações directas com os cidadãos, e não pode restabelecê-los. De facto, não seria preciso muito para bloquear o movimento com qualquer proposta demagógica, oportunista, pelo menos para mitigar a sua indignação (cuja força não deveria ser subestimada): bastaria, como dissemos, um retorno à tributação de “super-fortunas” e uma recuperação para a redistribuição desses quatro biliões de euros entregues aos patrões dos patrões, em vez do imposto sobre a gasolina. Mas não nos compete aconselhar Macron. Fontes de renome preferem insistir, como já afirmámos, em medidas legais: em estado de emergência para pôr fim às lutas, acompanhados por uma "assembleia para tributação". Portanto, existe o consentimento de que apenas a força pode acabar com as revoltas e de que apenas uma abertura para reformas fiscais que favoreçam a multidão pode bloquear o seu reaparecimento. Porém, é precisamente esta solução a impossível.
Já falámos sobre a falta de intermediação social criada (intencionalmente) pelo governo de Macron. A isto corresponde — in vitro, como se fosse uma imagem espelhada — o comportamento dos Coletes Amarelos: eles também recusam a representação e a intermediação da direita e da esquerda como terrenos para o avanço de uma mediação do conflito. Prova disto é a dificuldade com que depararam os partidos da oposição que tentaram entrar no jogo. A direita, como já foi dito, afirma ter uma forte presença no movimento. Mas enquanto isso pode ser verdade para algumas facções mais extremistas, é muito menos certo para a Front National. A esquerda também tentou aproximar-se do movimento, usando lamentavelmente os velhos e cansados métodos de instrumentalização. A ideia absurda de que é possível “usar” movimentos deste tipo, utilizando-os na luta contra um governo de direita, também está patente em França. É o sonho eterno de pôr o padre Gapon a trabalhar! Mas isto nunca sucedeu na história do movimento dos trabalhadores. Ou melhor, aconteceu quando a organização militante da classe trabalhadora investiu na espontaneidade do movimento e o transformou em organização. Será isto o que está a acontecer agora? Quando são pequenos grupos de esquerda a organizar-se dentro de surtos de violência metropolitana e quando a CGT, completamente alheia a esses movimentos, pateticamente insiste em aumentar os salários? Acrescento aqui uma última reflexão sobre este ponto: é possível que esta situação dê origem a um movimento como o 5 Estrelas (M5S)? É possível, e é até provável, que as tentativas tenham sido feitas desde o início — isso não significa que elas serão bem-sucedidas. Mas teremos tempo para discuti-lo no futuro. As soluções tornam-se difíceis quando (como vemos no caso-teste italiano) esquerda e direita se desintegram em torno de um “centro extremista” velado em termos mais ou menos tecnocráticos ou “benevolentes”.
E agora? Temos de esperar e ver o que acontece. Se haverá um quarto sábado de mobilizações convocadas pelos gilets jaunes. Mas é claro que devemos continuar a desenvolver as nossas reflexões. Permitam-me, então, esta pergunta ingénua: como pode uma multidão, caracterizada dentro de movimentos insurreccionais, ser desviada de se mover para a direita para se transformar numa classe, numa força com o poder de transformar as relações sociais? A minha primeira reflexão é a seguinte: se não for transformada numa organização, uma multidão desta índole é neutralizada pelo sistema político, tornando-se impotente. O mesmo vale para a sua redução à direita, mas também para a esquerda: é apenas na sua independência que esta multidão pode funcionar. E, então, uma segunda reflexão: quando dizemos organização, não pretendemos a forma de partido — como se apenas o partido-estado fosse capaz de dar organização à multidão. Uma multidão autónoma pode funcionar como um contrapoder, isto é, como uma visão capaz de intervir no “governo do capital” para forçá-lo a conceder novos espaços e fundos para o bem-estar da sociedade. A estrutura organizacional fornecida pela “constituição dos partidos” democrata-americana está a lutar para lidar com a sua integração na política neoliberal. Além disso, se não houver mais possibilidade de a multidão chegar ao poder, existe a possibilidade de manter sistematicamente aberto um movimento insurrecto. Esta situação costumava ser designada com o termo “dual power” [poder duplo]: poder contra poder. Os eventos em França dizem-nos apenas uma coisa: não é mais possível desligar esta relação. A situação do “poder duplo” permanecerá e perdurará por muito tempo, seja de forma latente ou, como é o caso agora, na sua forma expressa e manifesta. A tarefa dos militantes será, portanto, construir novas formas de solidariedade em torno de novos objectivos capazes de sustentar o “contra-poder”. Este é o único meio pelo qual a multidão se pode tornar classe.

Nota da edição
Texto publicado no blog da Verso em inglês e no site euronomade em italiano. Tradução realizada para português por Marta Marques, que gentilmente nos propôs a publicação deste artigo.

Toni Negri
Antonio Negri é um filósofo político marxista italiano, com um longa participação política e percurso intelectual. Autor com Michael Hardt de “Império”, “Multidão” e “Commonwealth”.

Ficha Técnica
Data de publicação: 30.01.2019
Etiqueta: Pensamento \ Crítica