• Sur une ligne de crête. Notas sobre o movimento dos coletes amarelos • Plateforme d'Enquêtes Militantes





Um campo de batalha: assim se pode qualificar o movimento que assombra a França nas últimas semanas, na medida em que é atravessado por uma composição social e por temas políticos – impostos e poder de compra – que cortam as nossas grelhas de leitura clássicas. Uma coisa é clara: o movimento dos “coletes amarelos” obriga-nos a por de parte as nossas rotinas políticas, para que nele possamos participar com a prudência daqueles que sabem como avançar num ambiente estranho e parcialmente desconhecido. Assim, devemos, desde logo, evitar as rígidas dicotomias entre puro mimetismo ou hostilidade total. Neste sentido, é imperativo não perder de vista as nossas convicções políticas.
Além dos dois grandes dias de mobilização, em dois sábados consecutivos, 17 e 24 de Novembro, a primeira fase de mobilização prolongou a sequência das lutas de 2016-2018, marcando simultaneamente um salto significativo. Se as formas de acção praticadas pelos coletes amarelos nos são familiares – bloqueios de trânsito e confrontos com a polícia – outros elementos de destaque emergiram durante as últimas três semanas [1].
1. Um exemplo, entre outros: a posição do movimento dos coletes amarelos relativamente aos imigrantes; posição que cobre as divisões que atravessam os partidos de esquerda, desde a France Insoumise ao Die Linke.

Primeiro, a composição social do movimento. Do ponto de vista social, são os estratos médios empobrecidos e as camadas da sociedade em processo de proletarização que caracterizam esta insurreição. Certamente que os funcionários da função pública, os empregados dos serviços, os operários das zonas industriais e os estudantes estão presentes. Mas todo um conjunto alargado de outros segmentos sociais, lutando por sobreviver, parecem estar na frente desta dinâmica: empregados de pequenas e médias empresas, comerciantes, artesãos e a toda a pletora de novas formas de trabalho e de precariedade. A unidade desta diversidade social, para além da rejeição de Macron e da sua política centrista (direita ou esquerda, pouco importa), é um sentimento generalizado de “já chega”, ancorado na materialidade das condições de vida. A violência do empobrecimento para uns e a dureza do trabalho para outros; aqueles que viram os seus direitos sociais desaparecer ou aqueles que nunca tiveram esses direitos; aqueles para quem o futuro subitamente passou a ser muito mais sombrio do que aquilo que imaginavam, e, por último, aqueles que cresceram com um horizonte de expectativas cada vez mais curto [2]. Esta dimensão social do protesto, feito de dificuldades salariais e de insegurança económica, alimentou o dégagisme [3] político. E se há muitas mulheres entre os coletes amarelos, é certamente porque elas experienciaram desde logo a dupla violência de suportarem a degradação da realidade e de verem todos os aspectos práticos dessa degradação tornarem-se invisíveis [4]. Ver a sua vida, dos seus familiares, dos seus amigos e vizinhos, tornar-se cada vez mais insuportável – isto é o que leva as pessoas não apenas a tomarem distância face aos representantes do «interesse de todos», mas a comprometerem-se activamente. E eles fizeram isso frontalmente, embora sejam muitos aqueles que, entre os coletes amarelos, apenas agora chegaram à política.
2. Deste ponto de vista, é a pressão fiscal que catalisa a cólera, determinando um discurso anti-élite e a focalização em Macron e no seu governo. O carácter político desse sentimento advém do facto do imposto ter sido até agora o objecto quase exclusivo da política económica dos estados membros. Este facto torna possível não apenas quebrar com as concepções economicistas do capitalismo, mas também levantar a hipótese que a taxação representa uma forma de extracção rentista da mais-valia.
3. Dégagisme, expressão que refere o descontentamento popular com os lideres eleitos e com o actual establishment político [Nota do tradutor].
4. Não é por acaso que em algumas cidades – Montpellier, Nantes – a manifestação feminista das “Nous Aussi” convergiu com os protestos dos coletes amarelos.

Esta composição social explica em parte a composição geográfica geracional e política do movimento. Do ponto de vista territorial, não são nem os centros metropolitanos nem os bairros mais pobres que estão no centro da mobilização, mas antes as zonas periurbanas, os subúrbios, a periferia difusa. Nem cidade nem campo, esses espaços semi-rurais e semiurbanos constituem um limbo tanto de um ponto de vista socioeconómicos como político. Se, por um lado, a habitação é menos cara do que em outros locais, por outro lado é aqui que os transportes públicos estão praticamente ausentes. O uso do carro, longe de ser a escolha de um estilo de vida confortável, advém da pura necessidade: para ir para o trabalho de manhã, deixar os filhos na escola, ir às aulas e voltar para casa no final do dia, é-se forçado a meter-se no carro e percorrer dúzias de quilómetros todos os dias, na maior parte das vezes entre engarrafamentos. Para além disso, é preciso gastar milhares de euros para comprar e manter um automóvel e quando já é difícil chegar ao final do mês…bem se pode compreender como é que um aumento iníquo do preço da gasolina pode ser a gota que transborda o copo. Especialmente se esta medida é apresentada como um passo necessário para financiar a transição ecológica – o que adiciona às apostas económicas uma sensação de puro cinismo [5]. Como já foi dito muitas vezes: o aumento dos preços é ecologicamente insuficiente e socialmente injusto!
5.Ver o artigo publicado no Le Nouvel Observateur

Neste sentido, o movimento representa, de facto, uma politização da ecologia. As classes dominantes parecem, elas próprias, ter renunciado a fazer desta questão uma injunção moral assente no consumo individual, atribuindo-lhe uma determinação política: por um lado, fazendo as classes médias e populares pagar o custo de uma transição ecológica fantasma e, por outro lado, utilizando as suas exigências para deslegitimar o movimento. Mas esta politização da questão ecológica é um campo de batalha no qual as lutas anticapitalistas podem e devem encontrar o seu lugar. Neste contexto, a recusa em aceitar esta mentira de estado é uma recusa em apoiar o estatuto de responsável pela crise ecológica e assim abrir a possibilidade de desenhar uma linha de classe mais clara separando quem são os responsáveis e os não responsáveis. Evidentemente, não se trata de afirmar que “a consciência ecológica” dos manifestantes se desenvolveu; mas é precisamente nestas fases de aceleração da subjectivação política que um tal discurso se pode consolidar.
O facto de o movimento começar com a exigência de uma diminuição dos impostos é, por vezes, invocado para sustentar a ideia de que nada disto tem que ver com uma dinâmica clássica de luta anticapitalista. Este argumento pressupõe que as condições de fiscalidade, e assim a questão do Estado, são externas à reprodução das relações capitalistas de produção. Ora, fundamentalmente desiguais, os impostos podem constituir um elemento importante – mas não exaustivo – para a crítica dos sistemas de exploração [6]. Criticar os coletes amarelos, neste aspecto em particular, como sendo uma exigência que deriva da esfera privada, arrisca-se a ser no mínimo míope. [7]
6. Neste tópico, assim como na questão ecológica, os grandes grupos industriais estão demasiado ausentes da critica dos coletes amarelos.
7. Isto não serve para desvalorizar a presença, mesmo durante os motins, de grupos organizados da direita e neofascistas. Deste ponto de vista, as duas principais formas de expressão política e simbólica do movimento foram justamente a exigência de pertencer ao “povo” e à bandeira tricolor. E, no entanto, se relacionarmos estes símbolos com a composição social acima descrita – que nos parece um pré-requisito material mínimo – podemos ver como prova do facto que as classes dominadas, em toda a sua diversidade, não são externas ao estado, nem que seja no sentido que elas experienciam a sua situação através dos símbolos e das categorias através dos quais o estado estabelece e reproduz a sua hegemonia. E na medida em que estamos a falar de um estado racista, não é surpreendente que a reivindicação de pertencer ao “povo” significa tanto uma oposição às “elites” e à classe dominante, como a segmentos do proletariado que não são “verdadeiramente franceses” – isto é, o proletariado não-branco. Em suma: “classe” nunca designa, simplesmente, a posição nas relações de produção, mas também a posição de inclusão diferencial no estado, de onde se retira privilégios materiais e simbólicos. Esta relação com o estado explica, em parte, a porosidade do movimento da extrema-direita

Saindo de uma temporalidade curta, tentemos alargar o quadro de referência. Uma vez mais, a França parece seguir, com algum atraso, dinâmicas sociais que já se manifestaram em outros contextos, depois da crise de 2008. Em tudo iguais – como as reformas laborais e o ciclo de mobilização que as acompanharam – estes fenómenos políticos «impuros» e «confusos», «ambíguos» e «contraditórios», até mesmo «sujos», aconteceram no Sul e no Leste da Europa. Seguindo uma sequência tecnocrática dura – que impôs reformas de “sangue e lágrimas” em estilo puramente neoliberal, isto é, sem qualquer gesto de consenso – uma reacção popular difícil de compreender surgiu espontaneamente fora dos quadros partidários e sindicais. Contrariamente aos movimentos das praças de 2011, estes avanços, difíceis de antecipar e determinar politicamente, não se inscrevem na galáxia variada dos movimentos sociais «pós-68». [8]
8. Estas erupções de facto não constituem meramente uma critica da esquerda institucional – partido e sindicato; mas distanciam-se da forma outros movimentos autónomos, sejam movimentos de trabalhadores, de estudantes, de feministas ou anti-racistas.

O movimento italiano dos «forconi» (2012-2013), por exemplo, apresentou características semelhantes ao dos coletes amarelos: depois das purgas do «governo técnico» de Mário Monti, uma composição social e politicamente transversal (e muito diferente de região para região) emergiu reivindicando impostos mais baixos. Numa estranha mistura de exigências sociais carregadas de actos de sexismo e de racismo, os «forconi» – como os coletes amarelos – bloquearam nós estratégicos do económico e manifestaram-se nas ruas, de formas muito mais conflituais do que aquelas da esquerda institucional. A analogia, contudo, termina aqui. O movimento dos «forconi» aparece agora como um dos precedentes do pacto entre a Liga Norte e o movimento Cinco Estrelas e ocorreu num contexto completamente diferente. Brevemente: a França de 2018, não é a Itália de 2013. Há cinco anos, a extrema-direita ainda não tinha chegado ao governo em vários países, tanto na Europa como na América, enquanto que a crise económica durava há “apenas” cinco anos... Segundo, a Itália não tinha emergido de um ciclo de mobilização intenso (mas derrotado) e a esquerda institucional, assim como os movimentos autónomos, não tinham demonstrado uma capacidade mobilizadora comparável aquela que podemos ver em França.
A este propósito, deve ser tido em conta o eco transnacional que os coletes amarelos estão a experienciar, ao contrário dos movimentos da última Primavera ou os de 2016. Com os coletes amarelos estamos a lidar com algo mais “complicado”. De facto, Macron, desde a sua proclamação, encarnou, mais e mais, a alternativa à governança ordoliberal de Merkel no seio do bloco do «extremismo do centro» que comanda a União Europeia: uma tal deslegitimação popular, vasta e interclassista, nas vésperas das eleições europeias de 2019, inquieta fortemente os guardiões do status quo. E isto, ainda mais, porque a extrema direita chegou ao poder na Europa de Leste e em Itália, e o crescimento das forças e dos partidos reaccionários está a tornar-se cada vez mais grave no Centro e no Norte do continente europeu.
Dito isto, as apostas ainda não estão decididas e o jogo permanece em aberto, mesmo se estamos a operar num ambiente hostil. Mas voltemos aos factos.
No dia seguinte ao Sábado, 17 de Novembro, o ministro do interior, Christophe Castaner foi impelido, apesar da intenção do governo em desvalorizar a primeira mobilização, a dar um balanço dos bloqueios digno de um verdadeiro boletim de guerra. A totalidade do território francês está em ebulição: deste o túnel do Monte Branco ao porto de St. Nazaire, passando pelas refinarias do Nord-ouest e por vários armazéns de logística, até aos dois mil bloqueios de rotundas em frente às estações de serviço ou dos centros comerciais. Vários feridos e dois mortos completam o quadro.
No dia seguinte ao Sábado, 24 de Novembro, os humores tanto dos partidários da ordem como dos “profissionais da desordem” estavam de acordo, ainda que por razões opostas, sobre a escala do evento: a Avenida dos Campos Elísios, esse ponto alto do poder político e económico, em chamas por um dia, enquanto que as cenas de guerrilha urbana se sucediam nos beaux quartiers circundantes. Pouco importa que apenas algumas vitrines tenham sido partidas, que poucos bens de consumo tenham sido saqueados ou que os polícias (apesar do número de feridos e do uso massivo de equipamento táctico não letal) não tenham saído em todo o seu esplendor. Aquilo que conta, tanto para uns como para outros, é que as manifestações estavam em contínua decomposição e recomposição, sem, no entanto, fazerem precipitar a situação, como foi o caso na Ilha Reunião, onde o Estado recorreu ao Exército. No entanto, quase ninguém, entre aqueles, que vieram aos Campos Elísios para destituir o soberano manifestou o mais pequeno sinal de dissociação relativamente aos actos de violência (um facto significativo em termos de subjectivação) … aplaudindo, simultaneamente, os bombeiros que tentavam apagar os fogos. E, de novo, as nossas grelhas de análise foram submetidas mais uma vez a uma dura prova. [9]
9. Para permanecer nesses «detalhes», nos quais o diabo gosta de se esconder, as pessoas não paravam de discutir, de se confrontarem, de trocarem argumentos, etc., sinal evidente de que algo se passava... ao lado das cinzas

Neste momento, estamos a entrar na terceira semana de mobilização e a situação continua em desenvolvimento. Depois das lutas dos estudantes e das manifestações dos trabalhadores ferroviários na última Primavera, os movimentos sindicais pareciam estar-se a preparar para a próxima fornada de reformas anti-sociais do governo Macron, em particular as das pensões e do desemprego, previstas para o final do Inverno / início da Primavera, de 2019. Discurso semelhante para os estudantes, confrontados com o aumento significativo das taxas de inscrição para os extra-europeus e, pelo menos em Paris, sempre à procura de uma forma permanente de coordenação. Enquanto isso, a cidade de Marselha foi abalada por uma dupla mobilização que afectou significativamente o centro histórico: primeiro, os protestos contra o reordenamento urbano do quarteirão La Plaine, depois, as três marchas depois da morte de oito pessoas no desmoronamento de um prédio em Noailles. Por sua vez, os grupos feministas, reunidos sobretudo à volta do lema «Nous aussi», tomaram as ruas a 24 de Novembro “contra a violência sexista e sexual sobre as mulheres”, apontando sobretudo, ao contrário do «Nous toutes», para as dimensões raciais e de classe deste tipo de violência. Quanto a sábado, 1 de Dezembro, terceira ofensiva dos coletes amarelos, estão previstas, há muito tempo, três outras manifestações: a da GGT, sobre as clássicas questões redistributivas; a da Act Up, pelo dia mundial contra a sida; e a do Collectif Rosa Parks, que combina questões sociais com o anti-racismo.
Para parodiar Mao, poderíamos dizer: grande é o caos sob o céu – mas não é certo que a situação seja excelente. O que sabemos, porém, é que a esfera da reprodução social está no centro de todas estas lutas: pensões, subsídio de desemprego, formação, habitação, saúde, etc. Além disso, é precisamente no trabalho reprodutivo que as dimensões de género e de raça determinam e recodificam a exploração. E são também estas dimensões que configuram um ponto de incompatibilidade estrutural com as tendências sexistas e xenófobas tão presentes entre os coletes amarelos. No entanto, a esfera da reprodução social será central não apenas para determinar uma linha de clivagem no seio do movimento, mas também para definir os horizontes da luta e, ao mesmo tempo, uma possível – e desejável – desmultiplicação dos focos de luta. O território da reprodução social é um outro campo de batalha que nos permite ir além do tríptico preço dos combustíveis / poder de compra / revolta fiscal. Um tríptico que, na actual conjectura – devemos reconhecê-lo realisticamente , não escapará aos processos em curso de renacionalização do espaço político europeu. Em última análise, a centralidade da “reprodução social” remete-nos para a necessidade de uma subjectivação política do actual movimento, que não será alcançada senão através de uma multiplicação dos lugares e dos temas da luta. Em suma, a médio prazo, não haverá subjectivação política deste movimento sem uma expansão das frentes de luta e uma articulação entre si.
Finalmente: se este movimento – apesar do seu carácter altamente contraditório – se empenha para tornar o mal-estar social irrecuperável para o centro; se a crise económica e política traz consigo cada vez mais caos e uma gestão desse caos cada vez mais autoritária; e se este conjunto perigosamente caótico implica uma mudança das formas de luta e uma reconfiguração das práticas militantes, então cabe-nos a nós não permanecer desalinhados em relação a estes novos movimentos. É por isso que – em conjunto com o “Comité Vérité et Justice pour Adama”, o Action Antifasciste Paris Banlieue, o Collectif de Libération et d'Autonomie Queer e os trabalhadores em luta – apelamos à participação na manifestação de sábado, 1 de Dezembro, às 13:30, na estação de St. Lazaire, ao lado dos coletes amarelos. Fazemo-lo sem saber o que resultará dessa jornada, mas com a certeza de que é impossível permanecer à margem e não tomar posição, no seio deste movimento, com base nas nossas lutas.
Nota de edição
Este texto foi publicado originariamente no site da Plateforme d'Enquêtes Militantes, a 30 de Novembro de 2018. Optou-se por não traduzir a primeira parte do título “Sur une ligne de crête”. Embora signifique, literalmente, “linha de cume”, ela dá conta de uma linha de fronteira/fractura, instável e em potencial desequilíbrio, em que se pode cair tanto para um lado como para o outro. Traduções possíveis para português poderiam ser: “no fio da navalha” ou “na corda bamba”. O texto foi traduzido para Português por Pedro Levi Bismarck e Paulo A M Monteiro, a partir da versão original e da versão inglesa publicada na Viewpoint Magazine, aconselhando-se a leitura da nota introdutória aqui publicada.

Plateforme d'Enquêtes Militantes
É um colectivo militante de pesquisa estabelecido em Paris

Ficha Técnica
Data de publicação: 07.12.2018