Arquitectura, Feitiço e Território • Godofredo Pereira




1. Lina Bo Bardi
A transformação do Solar do Unhão em Museu de Arte Popular (1959) representa, na obra de Lina Bo Bardi, o encontro de dois elementos centrais: por um lado, o interesse pela arte popular que traz já desde Itália, por outro, uma preocupação com a realidade política do Brasil, e em particular do seu Nordeste. O programa original propunha-se articular a ideia de “Civilização Brasileira” através de um encontro cultural entre “O Índio”, “África-Bahia” e “Europa e Península Ibérica”. Seria uma espécie de viagem à história do país através da sua arte quotidiana. Para Lina, a palavra “civilização” indicava “o aspecto prático da cultura, a vida do homem em todos os instantes”, e a exposição devia tornar visível a “procura desesperada e raivosamente positiva de homens que não querem ser ‘demitidos’, que reclamam o seu direito à vida. Uma luta de cada instante para não afundar no desespero, uma afirmação de beleza conseguida com o rigor que somente a presença constante de uma realidade pode dar. Matéria-prima: o lixo”. [1]

1. Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa Oficial, 2008, 158.

Partindo de Lina Bo Bardi, este texto aborda um problema central para a arquitectura, nomeadamente, o do seu estatuto enquanto objecto, assim como as relações que estabelece com os objectos pelos quais é ocupada e habitada. Não é, contudo, a natureza filosófica do problema que aqui interessa, mas sim a ligação entre o objecto e um território que lhe dá sentido. Identificando uma certa continuidade entre objectos e territórios, explora-se aqui o modo como o debate em torno da natureza dos objectos não se resume a estes, mas reflecte uma constante disputa relativamente a diferentes concepções de território. Desde território entendido como espaço sob a jurisdição do estado nação, parte de uma organização social produtiva baseada no privilégio da propriedade privada sobre todos os demais direitos, até ao território entendido na sua dimensão existencial, agenciamento de elementos heterogéneos que dão consistência aos modos de vida. Em ambos os casos, quer por revelarem as condições de produção que os constituíram, quer por revelarem os afectos, hábitos ou práticas que os materializaram, os objectos funcionam como um arquivo de conflitos e debates territoriais. Ora, precisamente, esta capacidade de ver nos objectos as lutas e circunstâncias daqueles que os produziram, marca toda a obra de Lina, desde o seu interesse por máscaras, talismãs e ex-votos até ao desenho da “Cachoeira do Pai Xangô” para o centro da Bahia (1986), às exposições sobre a cultura do Nordeste. Estes objectos “carregados” são centrais na arquitectura de Lina, pois participam de um modo de projectar que privilegia a concepção de territórios a que chamarei de existenciais, por tratarem, como indica Olívia de Oliveira, matérias subtis, ao mesmo tempo naturais e míticas. [2]

2. Olivia de Oliveira, Subtle Substances: The Architecture of Lina Bo Bardi, Barcelona: Gustavo Gili, 2006.

Este mesmo termo, "territórios existenciais”, é também usado pelo filósofo/psicanalista Félix Guattari, em Les Trois Écologies, para se referir aos espaços afectivos criados por contextos e experiências de pertença. Mas a sua diversidade encontra-se em perigo de desaparecimento face à homogeneização das subjectividades promovida pelo capitalismo neoliberal. Pode dizer-se que da mesma forma que os países “desenvolvidos” são os principais poluidores ambientais, são também os principais poluidores existenciais, o que se manifesta na crescente “ossificação” de comportamentos, imaginários e formas de “territorialização” que os caracteriza [3]. Olhando para Lina através de Guattari, podemos sugerir que o recurso a “objectos carregados” se insere na tentativa de capturar a expressão de diferentes modos de viver e habitar o mundo.

3. Cf. Félix Guattari, Les Trois Écologies, Paris, Galilée, 1989.

Claro que o seu interesse por objectos advém também de privilegiar a questão do habitar, afinal a grande preocupação da arquitectura moderna. Desde cedo preocupada com os problemas do quotidiano – vejam-se os textos escritos ainda em Itália, sobre a “Disposição dos Ambientes Internos” [4] e sobre “O aquário na Casa” [5] – Lina não reduz o habitar apenas a um problema funcional, mas entende-o enquanto prática existencial. Podemos ver, por exemplo, como as casas Valéria Cirell (1958) e Chame-Chame (1958), valorizam a expressão dos materiais acima da pureza da forma e da organização espacial. Mas não se trata aqui de qualquer romantismo da expressão ou da natureza, mas de uma busca da simplicidade que se conquista na relação da obra com as práticas de vida e os seus rituais. De qualquer forma, se numa fase inicial este discurso emerge ainda preso aos estudos decorativos da casa, ganha toda outra radicalidade nos seus escritos sobre o Nordeste entre 1959-63. É aí, em proximidade com uma “estética da fome” de Glauber Rocha, que Lina aborda as profundas relações entre emancipação social e produção artística popular: “Em Pernambuco, no Triângulo Mineiro, no Ceará, no polígono da Seca, se encontrava um fermento, uma violência, uma coisa cultural no sentido histórico verdadeiro de um País, que era o conhecer da sua própria personalidade” [6]. Recorde-se que nos anos 60 no interior nordestino, a maioria da população vivia abaixo do limiar da pobreza, devido não só à escassez de recursos ditada por um clima de semiaridez, mas sobretudo pela exploração social operacionalizada pelas oligarquias agrárias. É esta violência e miséria que anima o ressurgimento em 1955 das Ligas Camponesas, associações de camponeses em luta por uma reforma agrária, ou no cinema o surgimento de um novo movimento, a “estética da fome” de Glauber Rocha, a partir da qual se reposiciona a importância das práticas quotidianas dessa população esquecida. E é devido a este contacto com o sertão e as suas transformações político-culturais, que para Lina Bo Bardi a arte popular deixa de ser simplesmente algo que confere profundidade e realidade à arquitectura, e se refere cada vez mais concretamente às condições brutas da existência. E progressivamente também a arquitectura de Lina começa a participar activamente na emancipação desse território quotidiano e não-erudito, como forma de resistência à hegemonia cultural colonial.  

4. Lina Bo Bardi, “Sistemazione degli interni, Domus 198, 1944.
5. Lina Bo Bardi, “L’Acquario In Casa”, Lo Stile, 10, 1941, 24-25.
6. Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo: Imprensa Oficial, 2008, 153.

2. Feiticismo e Colonialismo
De acordo com o antropólogo William Pietz na sua série de ensaios sobre “The Problem of the Fetish”, o termo “fetiche” tem origem nos territórios interculturais da África Ocidental nos séculos XVI e XVII como resultado do encontro entre mundos culturais radicalmente heterogéneos. Segundo Pietz, “esta situação nova começou com a formação de espaços habitados interculturais ao longo da costa da África Ocidental (especialmente ao longo da Costa da Mina) cuja função era traduzir e valorizar objectos entre sistemas sociais radicalmente diferentes (...) estes espaços, que existiram durante vários séculos, existiam num triângulo de sistemas sociais composto por feudalismo Cristão, linhagens Africanas e capitalismo mercante” [7]. Emergindo da descrição das falsas crenças do outro, o termo migra posteriormente para a Europa com os escritos de Charles de Brosses, lentamente adquirindo o seu uso mais familiar com as obras de Feuerbach, Marx e Freud. Mas para Pietz a relevância do termo fetiche ou mais adequadamente feitiço não reside na sua capacidade de descrever mecanismos culturais reais (a natureza de uma crença específica), mas sim na capacidade de evidenciar a natureza de certos encontros, na medida em que se refere a uma história de conflitos relacionada com uma correcta valorização (afectiva, cultural, comercial) de determinados objectos. Referindo-se ao entendimento dos Europeus, Pietz dirá que “no discurso sobre feitiços, esta impressão da propensão do primitivo para personificar objectos técnicos – ou para os considerar veículos de causalidade sobrenatural – é conjugada com a percepção mercantil que os não-Europeus atribuem valores falsos aos objectos materiais” [8]. Uma posição semelhante é desenvolvida por Bruno Latour em “The Cult of the Factish Gods”, argumentando que a declaração de feiticismo surge sempre enquanto acusação sobre as falsas crenças do outro. Acresce que tal acusação sobre a crença dos outros servirá para fundamentar uma acção “pedagógica” de correcta valorização, tornando evidente como os princípios argumentativos que subentendem designações de primitivismo ou superstição, substanciam também um processo de apropriação de um território material. Surgindo sempre em relação a empreendimentos coloniais, a história do feitiço é por isso a história da constituição de culturas de fronteira, por relação com o desenvolvimento de sistemas mercantes, ou do nascimento do projecto capitalista.

7. William Pietz, "The Problem of the Fetish. I," Res, no. 9 (1985): 6.
8. William Pietz, "The Problem of the Fetish. II, The Origin of the Fetish" Res, no. 13 (1987): 42.
9. Cf. Michael Taussig, Defacement: Public Secrecy and the Labor of the Negative. Stanford, Calif: Stanford University Press, 1999.

Assim, reconhecer o “feitiço” como um local de conflito, implica que se entenda o objecto como uma questão material, que atrai na mesma medida em que divide. E é precisamente neste ponto onde o “feitiço” se torna político, já que o seu real poder deriva do facto de revelar uma disputa e por conseguinte uma diferença. Além disso, o “feitiço” – tal como os “objectos carregados” de Lina Bo Bardi – revelando diferenças, torna-se por isso mesmo um objecto de fronteira a partir do qual, ou sobre o qual, essas diferenças serão supostamente resolvidas (gestos iconoclastas, vandalismo, etc.) [9]


[1]. Lina Bo Bardi, Centro Histórico da Bahia, 1986. Cachoeira na Praça. Esboço Instituto Lina Bo e P.M Bardi. Desenho

3. Territórios de Fronteira
Digamos que Lina desenha os seus edifícios de uma forma feiticista, devido não só ao seu interesse pelas práticas populares, mas também devido ao estatuto instável dos vários objectos com que ocupava os seus edifícios, assim como pela relação pessoal que estabelecia com eles. Em Lina vemos o redescobrir de todos estes objectos “outros”, carregados de vidas e de costumes, de histórias. Neste sentido um dos debates que para a arquitecta se tornou central foi precisamente a questão do folclore, contra o qual lutava pela ideia de arte popular. Para Lina a arte popular e artesanato designam formas de produção directamente ligadas às condições de produção (económicas, geográficas, climáticas e culturais) e não poderiam ser entendidas como formas inferiores, isso sim fazia o folclore, designação reservada às “artes menores”. Além disso, se através do processo pedagógico colonial/capitalista os objectos são por um lado forçados a categorias discretas do saber, e por outro transformados em mercadoria de formato turístico – em ambos os casos desconectados das forças territoriais que os modelam -, uma outra pedagogia era necessária, mais próxima de Gilberto Freyre, para libertar as forças que “carregam” esses mesmos objectos e mobilizá-las enquanto forças políticas. Assim, como afirmava Lina: “O balanço da civilização brasileira 'popular' é necessário, mesmo se pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do Folclore, sempre paternalistamente amparado pela cultura elevada, é o balanço 'visto do outro lado', o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, é o habitante das 'Vilas', é o negro e o índio, é uma massa que inventa, que traz uma contribuição indigesta, seca, dura de digerir.” [10]

10. Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, Lina Bo Bardi, São Paulo, Imprensa Oficial, 2008, 210.

Claramente aqui se vê o quanto foi importante a influência de António Gramsci e a sua defesa da importância de uma força colectiva nacional-popular como prática contra-hegemónica. De facto, para Lina a aprendizagem com a arte popular seria o elemento chave que deveria informar o processo de industrialização e modernização brasileiro, ou seja, uma aprendizagem desprovida de romantismo mas entendida como oportunidade para a constituição de um novo território, construído a partir da cultura existente. Assim, longe de se reduzir a um discurso da pequena escala, Lina aproveitava as energias de um Brasil em construção que na altura re-imaginava os limites do possível. Neste sentido a afirmação de Lina que Brasília era “um belo começo para uma nação” é paradigmática.
Os seus projectos para a Bahia são testemunho de como para Lina foi importante a influência do Candomblé, das tradições afro-americanas, e em particular desses objectos que os portugueses, através do comércio de escravos, trouxeram de um continente ao outro. Não por acaso, a Costa da Mina onde o antropólogo William Pietz localiza o início da história desses objectos-feitiço, é contígua à costa dos Escravos, onde se encontra hoje o Benim, e de onde veio a maioria da população Afrodescendente para a Bahia. Procurando valorizar a história local, um dos mais notórios projectos que Lina desenha na Bahia é a recuperação de um antigo edifício colonial para ser transformado na Casa do Benin, onde estaria em exposição o arquivo do antropólogo Pierre Verger sobre as relações culturais entre Brasil e África. Deste modo, promover uma concepção existencial do território tal como o faz Lina, implica portanto, a possibilidade de praticar a coexistência de “mundivisões” heterogéneas. A luta pelo reconhecimento de alternativas às práticas epistemológicas da modernidade, contra o “eliminativismo” da tecnociência sobre outras formas de conhecimento [11], é central para poder defender o direito a diferentes visões do mundo e outras formas de produção [12]. Convém notar, apesar de tudo, que não se trata aqui da defesa das culturas indígenas ou tradicionais como que constituíssem uma alternativa, mas reconhecer com Arturo Escobar, que as soluções devem ser procuradas a partir do meio: “a noção de colonialidade assinala dois processos paralelos: a supressão sistemática pela modernidade dominante de culturas e conhecimentos subordinados (o encobrimento do outro); e a necessária emergência, a partir desse próprio encontro, de conhecimentos particulares formatados por essa experiência e que têm pelo menos o potencial de se tornarem lugares para a articulação de projectos alternativos” [13].

11. No que respeita à coexistência entre as práticas científicas e outras formas de  produção de conhecimento, convém referir o importante trabalho que Isabelle Stengers tem vindo a desenvolver. Isabelle Stengers, Cosmopolitics II, Minneapolis, University of Minnesota Press, 2011.
12. Cf. Boaventura Sousa Santos, Another Production Is Possible. Reinventing Social Emancipation, London, Verso, 2006.
13. Arturo Escobar, Territories of Difference: Place, Movements, Live, Redes, Duke University Press, London, 2008. 12.

4. Devir-território
O fazer do território não pode ser objecto de conhecimento especializado, pois não há como especializar o direito à expressão e à existência. A territorialização é um processo colectivo que agencia pessoas, mas também espaços, artefactos, instituições, materiais, narrativas, modos de estar, etc. E por isso mesmo a luta por diferentes concepções de território é, por isso, também a luta pelo direito a existir e por diferentes visões do mundo. Recordando o projecto para a recuperação do centro histórico da Bahia (1986), em que o objecto de recuperação não foram as arquitecturas consideradas historicamente relevantes mas sim a “alma” da cidade, vemos como esta concepção territorializante é central para Lina. Quando Lina recupera não só as praças, ruas e miradouros, mas também a economia informal, que tem lugar nas ladeiras, nas associações recreativas e nas lojas ilegais, ou quando desenha bancos de rua, uma fonte e até um comboio de recreio, percebe-se que a Bahia que tinha em mente não era a de um museu histórico, mas a da sua vida local. Tentando dinamizar as formas de comércio e expressão popular, torna-se evidente que orientando a prática da arquitectura para uma atenção aos modos de vida dos seus habitantes, se abre a possibilidade para que outras subjectividades e formas de praticar o espaço possam também ter lugar. Se a arquitectura e as práticas espaciais intervêm num território que é existencial, então este tem de necessariamente ser também entendido enquanto colectivo.
Devir-menor não é mais que um processo de territorialização que opera a partir das margens dos discursos dominantes, que se alimenta das condições geradas, forçosamente, pelo habitar de zonas de fronteira. Daí a sua proximidade ao feitiço, a esses objectos naturalmente fronteiriços, em si mesmos arquivos de constantes encontros. Mas é também o assinalar de uma possibilidade, constitutiva de imaginar vidas possíveis. E aqui a obra de Lina é exemplo maior de uma imaginação constante e lutadora. Exemplo de que é possível fazer arquitectura com as pessoas, com os seus mitos, as suas práticas e as suas lutas. Sempre atenta ao quotidiano na sua dimensão mais alargada, Lina defendia uma arquitectura enquanto processo, não abdicando das conquistas da modernidade, mas retirando daí ilações que lhe são menos reconhecidas: que viver e habitar são demasiadamente importantes para serem de exclusiva responsabilidade dos arquitectos, promovendo o realizar da arquitectura, enquanto construção colectiva do território, como uma luta por direitos e por justiça.


Nota de edição
Este artigo faz parte do Dossier «Devir menor» coordenado por Susana Caló e publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista Lugar Comum, 41, Brasil, Universidade Nômade.

Imagem
Lina Bo Bardi, Cartaz Exposição Nordeste, 1963. Xilogravura em impressão tipográfica. Instituto Lina Bo e P.M Bardi.

Godofredo Pereira
Arquitecto pela FAUP. Está actualmente a desenvolver Tese de Doutoramento no Centre for Research Architecture, Goldsmiths University of London. Pertence ao projecto Forensic Architecture. É coordenador de História e Teoria no MArch Urban Design na Bartlett. Editor e co-fundador da Detritos e editor do livro Objectos Selvagens. Escreve regularmente sobre arquitectura, urbanização e território.

Ficha Técnica
Data de publicação: 09.03.2015
Edição #6 • Primavera 2015 •