Entre 1979 até o ano de sua morte em
1992, Félix Guattari viajou sete vezes ao Brasil. Também esteve na Palestina,
Polônia, México, Japão. “Talvez seja isso que estou buscando com tanta viagem
nos últimos tempos” – disse durante uma de suas visitas ao país –, “será que existe um povo desterritorializado que atravessa esses sistemas de re-territorialização capitalística?” [1].
O Brasil passava por uma transformação radical nos anos 80. Deixava para trás
vinte anos de ditadura militar em direção à abertura política. 1979 foi o ano
da anistia e o início do retorno ao multipartidarismo. Em 1982 ocorrem as
primeiras eleições diretas para governos regionais. Dois anos depois uma ampla
campanha pelas eleições diretas à presidência da república mobilizaria o país
inteiro. Mas apenas em 1989, meses depois da promulgação da nova Constituição
de 1988, é que a população iria às urnas para eleger o presidente pela primeira
vez desde o Golpe Militar de 31 de Março de 1964.
1.Felix Guattari e Suely Rolnik, Micropolíticas: cartografias do desejo,
Editora Vozes: São Paulo, p. 375
Além das transformações
macro-políticas no aparelho estatal que sustentava o regime, o Brasil dos anos
80 foi marcado por um intenso processo de formação de agenciamentos
micro-políticos e abertura de novos espaços de contestação nos mais diversos
setores da sociedade. Uma vez que os canais tradicionais da esquerda como
sindicatos, diretórios estudantis, ligas camponesas, associações profissionais
etc. haviam sido suprimidos ou esvaziados pela brutal repressão imposta pelo
governo militar, durante a década de 70 houve um refluxo da dissidência em
direção à espaços menos formais de representação e organização popular. Grupos
“minoritários” e diferentes movimentos sociais, com distintas agendas e formas
de atuação, começam paulatinamente aparecer na cena pública, engendrando a
formação de novos sujeitos políticos e a articulação de subjetividades
resistentes à lógica autoritária que era cultivada pelo regime. Na década de
80, estes espaços e sujeitos e subjetividades vieram à tona como uma potência transformadora
que então parecia incontornável. Foi justamente esta dimensão menor das
convulsões na realidade política do Brasil, ou melhor --- e para ser mais
preciso ---, foi esta concatenação do processo de re-estruturação
político-jurídica do aparelho de Estado e a intensificação de processos
micro-políticos de re-democratização que mobilizou as paixões e viagens de
Guattari pelo país durante este período. “O que me parece importante no Brasil”
--- ele declarou durante um debate promovido pelo Partido dos Trabalhadores
(PT) em 1982 na cidade de São Paulo --- “é que não vai ser depois de um grande
movimento de emancipação das minorias, das sensibilidades, que vai se colocar o
problema de uma organização que possa fazer face às questões políticas e
sociais em grande escala, pois isto já está sendo colocado ao mesmo tempo”. [2]
Estes e outros registros da viagem
de 1982 foram transcritos e compilados por Suely Rolnik no livro Micropolítica: cartografias do desejo,
publicado no Brasil quatro anos mais tarde [3]. Entre Agosto e Setembro daquele
ano, acompanhado por Rolnik, Guattari
deambulou por cinco regiões do país, seguindo um intenso calendário de
encontros, conferências, entrevistas, mesas redondas e conversas formais e
informais com diversos grupos, movimentos, organizações e indivíduos que,
conforme escreve Rolnik, “institucionalizados ou não, constituíam naquele
momento subjetividades dissidentes”. [4]
2. Idem., p. 195.
3. Micropolíticas foi
recentemente traduzido para inglês sob o título The Molecular Revolution in Brasil, MIT 2008.
4. Ibidem, p. 16.
Este talvez seja o único registro
das sete viagens que Félix Guattari fez ao Brasil durante os últimos quatorze
anos de sua vida que Suely Rolnik menciona na introdução de Micropolíticas. Observado com olhos
contemporâneos, o livro converteu-se em um documento histórico, não apenas
porque as falas de Guattari, capturadas no fluxo das conversas e encontros,
prestam testemunho da sua verve criativa e engajamento político, mas também
porque percorrendo a cartografia de Micropolíticas
é possível acessar o exato momento de abertura para um movimento de
transformação histórica que parecia se anunciar. Isto é, para além do processo
formal de ‘Abertura’, percebe-se que, naquele momento, e a despeito do ‘fim da
esquerda’ e do ‘fim da história’ que alguns projetavam com a derrocada final do
bloco comunista e consolidação da hegemonia geopolítica do Império Norte
Americano, era possível imaginar outros espaços que não se alinhavam com a
ordem neoliberal que estava sendo implementada. O Brasil dos anos 80 parecia
incubar aquilo que Félix Guattari chamava de “Revolução Molecular”. [5]
5. Félix Guattari, La révolution moléculaire, Fontenay-sous-Bois : Recherches, 1977.
Como se sabe, este momento de
abertura, que marcou não apenas o Brasil mas grande parte dos países da América
Latina que foram comandados por regimes autoritários durante a Guerra Fria,
logo se fechou no longo pesadelo neoliberal. Apenas no final dos anos 90 e
início dos anos 2000 é que houve uma reação à este “fechamento” , quando vários
países do continente passaram novamente por grandes convulsões políticas que
redirecionaram as regras do jogo à esquerda. É por isso que, no prefácio à nova
edição Brasileira publicada em 2007, Suely Rolnik escreve que Micropolíticas
“ganhou uma dimensão de registros de pistas para uma genealogia do presente”, e
não apenas do momento presente em contexto Latino Americano, mas em escala
mundo, uma vez que hoje, por toda parte do globo, o projeto neo-liberal dá
sinais de completo esgotamento, principalmente nos centros do capital
financeiro do Ocidente, no lugar mesmo onde foi elaborado.
Passados cerca de trinta anos desde
sua publicação original e, fundamentalmente, após o Brasil ter vivenciado as
“jornadas de junho” de 2013, a situação mudou de maneira radical. No atual
contexto, a releitura deste registro histórico talvez seja ainda mais
relevante, pois carrega consigo uma memória viva que pode lançar novas bases
para se pensar o presente político. Sem nostalgia, rumo às novas “aberturas”
escancaradas pela multidão que veio para ocupar as ruas de nossas cidades.
§
O projeto Abertura (trilogia da terra) – uma vídeo instalação que parte da
leitura dos registros da viagem de Guattari em 1982 para pensar os
desdobramentos urbanos e territoriais do processo de re-democratização no
Brasil. Observados desde o ponto de vista espacial, os agenciamentos
micro-políticos articulados durante os anos 80 são mapeados em três escalas –
urbana, agrária e territorial ---, cada uma delas marcada pelo surgimento de
formas de “re-des-territorialização dissidentes”. Assim como Guattari o fizera,
durante o mês de Abril de 2012, junto com o arquiteto André Dalbó, membro do
coletivo de arquitetos Grupo Risco [6], e o advogado Anderson Santos,
integrante da Rede Nacional de Advogados Populares, viajei de sul à norte do
Brasil para realizar uma série de conversas com personagens que foram ativos
durante o processo de abertura política. Tomando como inspiração o
registro-colagem elaborado por Suely Rolnik em Micropolíticas, trechos destas conversas seguem transcritas abaixo,
organizadas de acordo com o diagrama escalar que formata o projeto.
6. http://www.gruporisco.org
Em escala urbana, conversamos com
Ermínia Maricato, uma das principais protagonistas do movimento de “reforma
urbana” durante o processo de re-democratização. Em escala agrária, a conversa
foi com Darci Frigo, advogado que desde os anos 80 trabalha com a defesa dos
direitos humanos de camponeses envolvidos em conflitos pela terra. Por fim,
fizemos uma conversa com o jurista Carlos Marés, uma autoridade em direitos
territoriais indígenas e ator central no processo de elaboração da nova
constituição Brasileira de 1988 que, pela primeira vez, reconhece por lei que
os povos indígenas gozam de direitos de autonomia sobre seus territórios
originários. Observadas em conjunto, esta trilogia revela que no centro da
‘revolução molecular’ do Brasil encontrava-se a abertura de um antigo nó
colonial --- a terra – nó górdio que até hoje, a despeito das promessas
lançadas nos anos 80, continua sendo a base de sustentação de um sistema
excludente e desigual.
Terra: Escala: Urbana
[ Ermínia Maricato ]
No início dos anos 60, nós tivemos
no Brasil uma mobilização da sociedade em torno de propostas de reforma. A
principal delas era a reforma agrária. Por que é que eu digo que é a principal?
Era a principal não só do ponto de vista do travamento do desenvolvimento econômico
e social do país, mas também porque era a que tinha maior apoio da população,
de organizações sindicais e sociais. E nós tivemos o início da proposta de
reforma urbana, que foi articulada em 1963 num encontro de arquitetos na cidade
de Petrópolis, no hotel Quitandinha.
[ Paulo Tavares ]
Nesse momento a reforma
urbana significava o quê, em 1964?
Era principalmente a questão da distribuição
de terra urbana. É preciso entender a conjuntura: nós estávamos numa época de
avanços, de libertação na América Latina, não é? E muitos arquitetos estavam
voltando de Cuba, de onde trouxeram essa ideia de que é preciso expropriar a
terra, libertar a terra de um jogo de privatização. A terra sempre foi no
Brasil, e na América Latina como um todo, mas no Brasil parece que é uma
característica muito forte, o nó que permeia as relações de poder político,
econômico e social. Todos esses movimentos que pretendiam reformas profundas no
país deram num beco sem saída na Revolução de 64.
* Devido à urbanização e
industrialização acelerada da década anterior, no início dos anos 60 o Brasil
passava por um forte processo migratório campo-cidade, levando ao inchamento
das periferias, extrema carência habitacional e falta de infra-estruturas adequadas
para acomodar a população migrante. Os arquitetos então começaram a debater e
elaborar temas e propostas que visavam orientar as políticas públicas para o
que ficou conhecido como “Reforma Urbana”, isto é, uma série de diretrizes que
propunham contornar a precária situação de moradia da classe trabalhadora nos
centros urbanos, alterando o balanço da concentração de terra nas cidades. O ponto alto desta articulação foi marcado
pelo Seminário de Habitação e Reforma Urbana – SHRU, organizado pelo Institutos
dos Arquitetos do Brasil (IAB) em Julho de 1963, no Hotel Quitandinha no Rio de
Janeiro, e dias depois na sede do IAB de São Paulo.
A proposta de Reforma Urbana fazia
parte de amplo espectro de transformações estruturais da sociedade brasileira
que ganhavam força com o governo trabalhista de João Goulart. Conhecidas como
“reformas de base”, estas medidas reuniam um conjunto de iniciativas no setor
financeiro, fiscal, administrativo, urbano e, principalmente, a questão da
reforma agrária. Em larga medida, a deposição de Goulart pelo Golpe Militar de
1964 foi uma resposta para bloquear este processo de mudança da estrutura
política e territorial que estava em curso no Brasil.
Depois da cassação e da prisão dos arquitetos,
passa um certo tempo e surge o que eu chamo de uma nova escola de urbanismo no Brasil.
É uma ‘corrente’ que vai-se associar aos movimentos sociais, que vai
desvendar a cidade real, que vai tirar esse véu, essa invisibilidade e mostrar
o tamanho daquela cidade ilegal. Essa escola de urbanismo recupera muito da
reforma pré-64. Eu particularmente entrei nesse movimento de retomar a proposta
de reforma urbana a partir de um convite da Comissão Pastoral da Terra [7], em
1979, que dizia “olhe, nós estamos sendo procurados por movimentos urbanos e
nós não temos essa capacidade de lidar com o rural e o urbano, nós achamos que
é necessário uma esfera dos movimentos urbanos”.
7. A Comissão Pastoral da Terra (CPT)
nasceu durante o Encontro Pastoral da Amazônia, organizado pela Conferência
Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) na cidade de Goiânia em Junho de 1975. A
CPT teve um papel fundamental na luta pela distribuição da terra e melhoria das
condições de vida dos camponeses durante a ditadura militar, e tornou-se um dos
principais espaços articuladores da abertura política.
Com o violento processo de urbanização
dos anos 60 e 70 a cidade se torna um grande palco político de reivindicação.
A cidade começa a apresentar
movimentos novos no Brasil. Na luta contra a ditadura nós tivemos algumas
vitórias, nós tivemos o crescimento dos movimentos populares, o crescimento dos
movimentos sindicais, a criação da CUT [8], a saída dos partidos que estavam
clandestinos para a legalidade, a criação do PT. Havia a pastoral operária
atuando nas periferias, movimentos de bairro, etc. Nós tínhamos também os
movimentos sociais avançando muito. E nós tivemos a eleição de gestões
municipais de um novo tipo, que começa a implementar, com a ajuda dessa nova
escola de urbanismo, políticas que incorporavam a participação social e
incorporavam o que chamávamos de ‘inversão das prioridades’, isto é, tentar
resolver esta cidade invisível, dar cidadania para quem não tem. As prefeituras
agiam de uma forma nova, na contramão do que vinha da Europa, da Barcelona
Olímpica, dessa coisa da arquitetura espetacular, do urbanismo do espetáculo...
do fim da esquerda, não é?
Quando eu assumi a Secretaria de
Habitação e Desenvolvimento Urbano (em São Paulo), a secretaria era virada para
a cidade legal, ela tinha um bracinho lá que tratava das emergências, mas as
emergências estavam cada vez mais freqüentes, não dava para enxergar mais
aquilo como emergência. Nós fizemos uma reversão dentro da secretaria. O que
era um apêndice voltado para as pessoas que ficavam sem casa com as enchentes,
com os incêndios nas favelas, com as áreas de risco que desmoronavam, com
aquele crescimento impressionante de favelas, isso se tornou o eixo da ação.
Era necessário que a gente tratasse a exceção como regra. Essa era a nossa
dificuldade, aliás, essa é a dificuldade até hoje.
8. A Central Única dos Trabalhadores (CUT),
entidade que reúne os sindicatos e associações trabalhistas no Brasil, foi
fundada em 1983 durante o 1o CONCLAT – Congresso Nacional da Classe
Trabalhadora, que foi realizado na cidade de São Bernardo do Campo, região
industrial da cidade de São Paulo, palco central da luta operária na década de
70/80.
Eu queria conversar sobre essa idéia
de participação. Durante a Abertura, há uma demanda por novos espaços organizacionais,
uma espécie de micropolítica dos novos movimentos sindicais, as pastorais, os movimentos
de bairro, e de luta por terra no campo e na cidade. Novos fóruns estão
surgindo, novas maneiras de participação popular, novos espaços políticos. E de
repente a participação entra no centro do discurso da virada neoliberal.
O consenso de Washington é fechado
em 1989. Aí é formalizada a receita neoliberal. Durante os anos 80, não vamos
nos esquecer, há uma dificuldade em ter recursos para investir, o sistema de
financiamento da habitação, o sistema de financiamento do saneamento, toda a
política que era ligada aos transportes urbanos (o governo federal durante a
ditadura teve uma empresa nacional voltada à política de transporte urbana,
coisa que nós não temos novamente até hoje) etc. - tudo isso recua. Inicia-se uma
marola que depois se transformou num tsunami que nos afogou literalmente. E é
interessante que a esquerda foi crescendo no campo institucional e caindo no
campo da mobilização social. Eu acho que o fim do ciclo implica nisso.
No meu artigo eu escrevi ‘nunca fomos tão participativos’. Lembro em uma mesa em Vancouver,
no Canadá, durante um fórum urbano mundial, a diretora do Banco Mundial fez um
discurso emocionado a favor da participação da ação social na esfera pública.
Então há um período de ascensão da esquerda, porque o capitalismo tem uma
lógica que é de uma inteligência impressionante, ele abre espaço para a
esquerda no campo institucional, muita liderança sindical e popular entra nesse
espaço, se elege ou se emprega nas administrações públicas, nos gabinetes de
políticos e realmente existe um declínio da capacidade ofensiva e do poder de
ação que os movimentos sociais tinham. E foi com a chegada do PT no poder
federal que esse ciclo se completa.
A institucionalização se completa, e
a situação realmente ganha uma qualidade nova. Mas as políticas não estão
melhorando em vários aspectos. Algumas estão, sem dúvida. Eu acho que tirar 13
milhões de pessoas do nível de indigência não é pouca coisa. Mas na área que eu
conheço bem, a política urbana, nós estamos caminhando para uma regressão fortíssima.
O centro dessa regressão está relacionado com a terra. Desde 1963, quando
surgiu a reforma urbana, nós não mudamos o chão. Nós tivemos muito avanço
institucional, nós ganhamos uma constituição que fala das cidades, nós ganhamos
o Estatuto da Cidade treze anos depois, que era o que os juristas queriam para
regular a constituição e para se poder aplicar a função social da propriedade...
mas que nós não estamos aplicando. Nós não mudamos o chão, a base, a raiz do
que é a política urbana, que é uso e ocupação do solo.
Você sempre volta para a questão da
terra...
Sempre. É a base… mas com a
globalização este nó que era central no período colonial, imperial, republicano,
ganha uma nova qualidade. Hoje você vê países comprando terras na África de
maneira brutal... o fato é que a terra adquire novos aspectos, ela continua
sendo um nó, mas é um nó diferente, no campo e na cidade.
Terra: Escala: Agrária
[ Darci Frigo ]
O capital se territorializou. A
terra, as commodities, agora a
produção de bio-massa... são elementos centrais para a reprodução do capital.
Na década de 80 as pessoas diziam “o campo está ficando para trás, um lugar do
passado”. Que nada! Hoje o campo é o centro da disputa do capital. A cidade é
onde as pessoas estão, mas a disputa está no campo.
Como você se envolveu nesta disputa?
Eu sou filho de camponeses, vivi a
década de 70 no campo. Em 75 entrei num Seminário para fazer os estudos do
primeiro grau, e segui nessa trajetória religiosa. Em 1982 eu encontro a
Teologia da Libertação, quando estava aqui no norte do Paraná, e nós começamos
a ter acesso a algumas bibliografias que eram críticas em relação à própria Igreja.
O livro mais importante que eu li nesse período foi “Caminhando se abre
caminho” de Arturo Paoli, um padre italiano que estava aqui no Brasil. É um
livro muito denso, muito crítico em relação à própria Igreja. Este livro
despertou um outro sentido em relação à proposta para a vida religiosa e o
futuro que ela poderia ter.
O segundo momento desse processo
aconteceu em 84. Eu vim para Curitiba iniciar os estudos em filosofia, ainda na
vida religiosa, e descobri que tinha um centro de direitos humanos sendo
fundado por um grupo de Pastoral Universitária da Universidade Estadual de Ponta
Grossa que estava ligado à Teologia da Libertação. Esse grupo se colocou como
desafio formar um centro de defesa dos direitos humanos para enfrentar os
problemas ainda ligados à ditadura militar, mas também outros problemas que
estavam acontecendo na sociedade. Ainda ano de 1984, chega um abaixo-assinado
no centro de direitos humanos em favor do Leonardo Boff, que estava sendo
submetido a um silêncio obsequioso pela congregação da doutrina da fé,
conduzida pelo atual Papa, o Ratzinger.
Um frei, que inclusive é meu
parente, dizia: “o problema é que existem umas freiras e uns padres que se
descaracterizaram completamente, não tem mais nem a identidade religiosa,
viraram comunista, estão muito envolvidos com os movimentos sociais, então tem
os excessos”. Este era o discurso para descaracterizar o propósito da Teologia
da Libertação.
Neste ano eu fiz minha primeira
missão relacionada com o tema de terra e essas questões de direitos humanos.
Havia uma ameaça de despejo dos sem-terra que estavam ocupando o Cavernoso. Eu
nem sabia da existência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
Havia a ameaça de despejo deste grupo destas terras e me falaram: “o exército
quer despejar os sem-terra e você tem que ir lá falar com o Bispo de Guarapuava
e dizer para o ele falar para o general para não mandar as tropas tirarem os
sem-terra de lá.”
* Um dos setores que sofreram maior repressão
após o Golpe de 1964 foram as ligas camponeses que haviam se formado na década
de 50, principalmente no Nordeste do país, que então viviam um momento de
intensa mobilização política pela redistribuição da terra. Lideranças foram
presas, assassinadas ou levadas ao exílio, e grande parte do movimento foi desarticulado.
A questão agrária voltaria com toda força durante o processo de abertura nos
anos 80. Uma das principais organizações neste processo foi a Comissão Pastoral
da Terra, um braço da Igreja Católica que atuava junto aos camponeses sem-terra
por justiça social no campo. O envolvimento de padres, bispos, freis, freiras e
ativistas ligados à igreja em lutas sociais teve como pano de fundo uma re-articulação
radical do discurso e prática da Igreja Católica na America Latina nos anos 60
e 70 através da Teologia da Libertação, uma vertente de teologia (política)
critica que nasceu da necessidade de aproximar a leitura do evangelho à
realidade desigual que permeava todo o continente, e direcionar a ação pastoral
para a transformação desta realidade. O termo foi originalmente cunhado pelo
padre peruano Gustavo Gutiérrez no livro A teologia da Libertação, publicado em
1978, e contou com outros expoentes como Jon Sobrino em El Salvador, Juan Luis
Segundo do Uruguai e, no Brasil, o frei Leonardo Boff. Na confluência da
re-articulação do ativismo da ala progressista da Igreja Católica e o
ressurgimento das organizações camponesas é que vai surgir o Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra do Brasil, o MST, fundado oficialmente em 1984.
O MST inicia-se com formas táticas
de ocupação: não havia o direito à terra, portanto você vai lá ocupar até que esse
direito seja implementado. Como você enxerga a dimensão política desta prática?
O aspecto político e ético foi sendo
construído no processo de inserção nos debates da própria Teologia da Libertação,
com a idéia de que os pobres tinham direitos e que os pobres precisariam lutar
por esses direitos, e portanto era preciso fazer ações para conquistar estes
direitos porque não bastava esperar o Estado. Havia uma situação insustentável
do ponto de vista ético que era a distribuição da terra. A ocupação de terra
vinha como uma resposta a um direito legítimo que os trabalhadores tinham de
acessar à terra. E o argumento era esse, de que era insuportável que metade da
terra agrícola do Brasil estivesse na mão de 1% da população. A idéia de que a
gestão desse patrimônio que devia ser coletivo, partilhado, era fundamental e
nunca foi posta em dúvida em relação a esse processo.
Do ponto de vista legal, nós começamos
a trabalhar o aspecto do reconhecimento desse direito a partir do que se
colocava como uma dívida que devia ser resgatada pelas populações negras,
indígenas, camponesas que historicamente nunca tiveram esse direito. A
Constituição de 1988 consagrou o princípio da função social da terra, e essa
função social sempre foi colocada como uma questão importante, não é só o
direito de propriedade, é o direito de acessar a terra, uma possibilidade de
você ter um outro futuro.
Há uma relação muito diferente entre
a terra e a territorialidade do latifúndio, agora do agronegócio, com a relação
terra-territorialidade do pequeno agricultor, do camponês. Como você vê essa
diferença, e como você interpreta essa organização espacial e territorial
dentro do MST?
Na Comissão Pastoral da Terra havia
um debate - eu me inseri na comissão pastoral da terra em 1986 -, sobre terra
de trabalho e terra de negócio. A terra de trabalho era a terra do camponês, do
indígena, do quilombola, do poceiro, terra legítima pelo uso que você faz dela.
A terra do agronegócio é uma terra para você tirar lucro. Como dizia uma das
criadoras do conceito do agro-ecologia, a Ana Primavesi, o agronegócio trata a
terra como um cadáver, mata a terra, trata a terra como um objeto puro e
simples. Já os camponeses e as populações tradicionais, indígenas ou
quilombolas, tratam a terra numa outra perspectiva, mais espiritual, mais cultural.
Eu aprendi esse processo na
convivência com as pessoas que viviam especialmente no Nordeste e no Norte do
país. Porque para nós no Sul, apesar de termos participado dos movimentos em
torno da Teologia da Libertação, a formatação da nossa cultura é baseada no
paradigma que separa a terra como apenas objeto de produção, um projeto econômico.
Só com o tempo e com a relação com esses outros grupos e vendo outras formas de
você cultivar a terra, e especialmente a relação com a floresta, é que a gente
foi mudando a visão.
No livro “As monoculturas da mente”
[9], Vandana Shiva faz uma leitura de como o cristianismo vai sedimentar todo o
processo de colonização segundo o qual a Natureza é inimiga de todos esses que
se colocam contra o progresso, e como isso legitimou uma grande violência
contra certas populações em todo o mundo. A Natureza aparece como aquilo que
você limpa porque a terra limpa é o lugar do cultivo. Do ponto de vista mais
ligado a Teologia da Libertação, o debate sobre a “ética do cuidado” que o
Leonardo Boff e outros teólogos vão captar a partir do modo de viver das
comunidades indígenas teve um impacto importante. Essa troca de experiências,
de “in-culturação” , foi muito importante para toda uma geração de militantes.
9. Vandana Shiva, Monoculturas da Mente,
São Paulo: Gaia, 2003.
Terra: Escala: Território
[ Carlos Marés ]
Quando eu estudava direito nos anos
60, a questão da antropologia era uma questão que se discutia. O Brasil
começava a pensar que era latino-americano. E quando a gente começa a discutir
a questão latino-americana, os índios começaram a aparecer. Embora o movimento
de esquerda não tinha tanta consciência da questão indígena, as questões de
antropologia apareciam como teoria.
Quando saí do Brasil para o exílio
no Chile fui conviver com um ambiente latino-americano muito mais
caracterizado. E embora as esquerdas latino-americanas não fossem marcadamente
indígenas, isso aparecia no Chile, e também aparecia no Peru, na Bolívia. E
quando você entra por essa via, todos os processos históricos da América Latina
sempre esbarram por alguma coisa indígena. Por exemplo, qual é o grande
movimento de independência no Peru? Não é a chegada do movimento pelas tropas
de San Martín, pelo Sul, e do Simon Bolívar, pelo Norte. O grande momento foi o
movimento indígena que começa em 1870. A revolução mexicana de 1910 é uma
revolução que nasce de um índio, que é o Zapata. E toda a questão do Zapata se
alçar numa revolução é uma questão territorial, indígena-camponesa. O Zapata é
o guardador dos documentos que legitimam a propriedade da comunidade. Outro
grande marco é a revolução boliviana, de 1952. Diz que foram os mineiros. Bom,
os mineiros são índios. Mais de 70% dos mineiros são índios, eu acho que chega
bem perto de 100%. E os camponeses juntos. Ora, os camponeses também são
índios. Portanto, são os índios que se rebelam em 1952 e fazem uma revolução. As
recentes marchas dos mineiros na Bolívia, elas são marchas de índios... Por que
é que isso não é explícito? Você começa a dar-se conta que na América Latina há
essa exclusão, essa invisibilidade dos índios.
Na minha volta do exílio no final de
79 havia já uma ebulição de um movimento indígena já estava a começar a
existir, formada principalmente por alguns índios intelectualizados que
começavam a estruturar uma organização pan-indígena desde as cidades. Essa organização
se chamou União das Nações Indígenas (UNI). Tinha um nome pretensioso, aliás
muito pretensioso, porque era um grupo pequeno de índios intelectualizados,
cuja relação com as suas etnias não era uma relação muito simples porque eles não
eram propriamente os líderes tradicionais. Pois bem, eu me vinculei a eles
trazido pelos antropólogos, e como não tinha muita gente no direito que
trabalhasse essa questão, ao contrário, não tinha ninguém, eu praticamente fui
levado a trabalhar com o movimento indígena por contingências.
*Durante a década de 70, ignorando a
existência das populações e territórios indígenas, o regime militar implementou
um violento projeto de colonização na Amazônia. Pretendia-se sobrepor toda a
bacia do Rio Amazonas com uma matriz urbana de proporções continentais, formada
por uma série de enclaves extrativistas, interligados por linhas expressas de
comunicação e transporte. Nas margens dos corredores rodoviários, o governo
promoveu programas de re-assentamento dos camponeses desterrados pelas
fronteira da soja e do latifúndio pecuário com o intuito de ‘absorver’ os
efeitos políticos dos conflitos de terra que se davam em outras partes do país,
principalmente no Nordeste e no Sul.
“Uma terra sem gente para uma gente sem-terra”, foi como o General
Garrastazu Médice descreveu a Amazônia em 1970. No final dos anos 80, o processo de
desmatamento desencadeado por este “desenho territorial” estava totalmente fora
do controle. A floresta então tornou-se num espaço por onde se reuniram vozes
dissidentes à lógica destrutiva gestada durante a ditadura. Dois momentos foram
especialmente marcantes neste período: a luta dos seringueiros no território do
Acre, extremo oeste da Amazônia, e o surgimento das organizações indígenas que
lutavam pela defesa de seus territórios. Um dos resultados mais expressivos
deste processo ficou registrado na nova Constituição Brasileira de 1988, que legitima
e garante o direito dos povos indígenas à autonomia cultural e territorial.
Como foi a discussão em torno da
questão indígena no momento da Constituição de 1988?
A participação dos indígenas na
Constituição foi muito grande, foi muito forte. Os indígenas se organizaram
para isso. Claro que quando a gente fala nos indígenas brasileiros é preciso
ter em conta que são 220 povos. Desses 220, uma boa parte não tem sequer idéia
de que existe estado nacional, não tem idéia. Então, está vivendo a sua vida e
está muito bem. Então quando dizemos que os movimentos indígenas se
mobilizaram, foram alguns povos, os mais próximos, mas alguns muito poderosos,
como os Kaiapó, por exemplo. Os Kaiapó tiveram uma presença na Constituinte
muito forte. Seria muito difícil nós termos um artigo 231 na Constituição se
não houvesse a presença indígena.
* O artigo 231 da Constituição Brasileira
de 1988 estabelece que “são reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.”
A Constituição de 1988 abre uma idéia
de autonomia territorial para os índios impensável no dia anterior.
As constituições é que constituem um
Estado Nação. O Estado Nação nasce com as constituições. Portanto, a idéia é
que só quando estivesse um rompimento na constituição é que o Estado Nação
estaria modificado. A convenção 169 [11], que é anterior à Constituição, diz
que existem pequenos ou grandes grupos dentro das nações que devem ser
respeitados como grupos diferenciados. A Constituição de 1988 assume muito claramente
essa posição, dizendo que esses povos têm o direito a continuar a existir como
povos, os seus direitos são direitos da sua organização social, da sua cultura,
etc., tudo isso ligado por um território. A constituição brasileira é a
primeira, mas não é a única. Praticamente todas as constituições
latino-americanas desta época seguem essa linha. Há um rompimento, a
Constituição Brasileira de 1988 rompe com uma tradição... Por isso é que se diz
“neo-constitucionalismo sul-americano”.
Isto é uma ruptura, mas é também um
problema. Porque todos esses direitos estão ligados a um território, são
direitos territoriais. Então se você não consegue localizar esses direitos
dentro de um território determinado você exclui a possibilidade de eles serem
exercidos. A questão territorial é uma questão, digamos assim, prevalente na
definição de um povo. A gente discutia coisas como se é possível existir povo
sem território? Claro que é possível, olhem para os ciganos, por exemplo...
Pois bem, sendo as coisas como são, com a Constituição de 1988 alguns povos
começaram a retomar a busca pelo seu território. Mas que território? Onde é que
está? Então recomeçam a retomar a busca pela sua identidade cultural, antes de
mais nada. E a partir da identidade cultural, qualquer lote de terra, qualquer
pedacinho de terra passa a ser o território.
Pois quem está fora do território,
não teria estas garantias jurídicas. Esta é uma interpretação rasa, porque a
interpretação mais complexa seria agir segundo a necessidade de se restituir
esses territórios, reconstituí-los, reorganizá-los. É um processo de
organização territorial. Não é pegar o mapa como está hoje. Entretanto, todas
as decisões são nesse sentido, de consolidar o mapa como está hoje.
O pensamento mais conservador não
consegue admitir a idéia de haver território indígenas dentro de um Estado-nação...
11. Aprovada em 1989, a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, oficialmente chamada de Convenção dos
Povos Indígenas e Tribais, é o primeiro instrumento legal internacional que
trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais às suas terras
originárias.
Porque o Estado tem que restringir o
seu próprio controle sobre uma parte do território...
Tem que restringir o controlo porque
tem que restringir o controlo sobre aquele povo. Lá é outra história, lá não
podem dizer como é que vocês casam, não pode dizer como é o contrato o
casamento. Aliás, não diz numa favela, quanto mais num território indígena.
Enfim, lá o Estado não pode impor o contrato. Em alguns lugares do Brasil a
sociedade hegemônica não é a sociedade capitalista branca. Por exemplo: no Alto
Rio Negro a maioria da população é indígena. Uma cidadezinha chamada Araweté
não tem nenhum branco e falam-se sete línguas diferentes. O que é Araweté? É
nação brasileira? Não, é território brasileiro apenas porque está marcado no
mapa. E não estou falando de um Portugal, é um território imenso. Estou falando
de Portugal, Espanha e um pedaço da França juntos.
Um grande território que não é um
território hegemônico.
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Nota de edição
Este artigo é
parte do Dossier «Devir menor» coordenado por Susana Caló e
publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista Lugar Comum, 41, Brasil, Universidade Nômade. Tendo
em conta que o autor do texto é Brasileiro, optou-se por deixar o texto na sua
versão original de Português do Brasil.
Paulo Tavares
É um arquitecto
e urbanista formado no Brasil. Leccionou na Universidade de London Metropolitan, no Laboratório de
Culturas Visuais/ Mestrado em Teoria de Arte Contemporânea – Goldsmiths, e desde 2008 lecciona no programa de Mestrado no
Centro para Investigação em Arquitectura – Goldsmiths.
Ficha Técnica
Data de publicação: 24.03.2015
Edição #6 • Primavera 2015 •