Memórias do futuro \ Rui Gilman



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Memórias do futuro
Narkomfin: espelho ou martelo?
Rui Gilman

 “A Arte não é um espelho para reflectir o mundo, mas um martelo para forjá-lo". Em 1930, o “martelo” ambicionado por Mayakovsky encontra-se erigido na Boulevard Novinsky, em Moscovo, e dá pelo nome de Narkomfin. A ferramenta artística socialista surge sob a forma de complexo habitacional. A realidade será moldada a partir do interior da mesma, a partir da habitação. Alterando a realidade doméstica, formar-se-á o novo Homem socialista. Esta é a habitação enquanto máquina de habitar e de propaganda ideológica. É um “condensador social” (1). O Narkomfin será o protótipo de uma nova forma de habitar e tornar-se-á o mais influente e copiado modelo de habitação do século XX. Se o seu passado é claro, o seu futuro é incerto. O Narkomfin falhou, tal como falhou a revolução socialista no campo social, e a revolução modernista no campo da arquitectura. Semi-desabitado, desprezado, alterado, incompleto e em estado gravoso de acelerada destruição, o “martelo” encontra-se enferrujado.
Este ensaio destina-se a analisar criticamente o Narkomfin sob a perspectiva patrimonial. O que significaria a perda do Narkomfin? Destruição ou preservação? Preservação a que custo? À custa da inversão da sua própria personalidade? De “martelo” a “espelho”? O Narkomfin encerra em si as memórias de um Futuro passado que nunca aconteceu. Uma realidade alternativa, paralela, uma escapatória à unidireccional idade temporal actual. Subindo ao terraço, avistamos a nova embaixada norte-americana em Moscovo. Do “martelo” do Futuro vemo-nos no “espelho” do Presente Contínuo.

Vertendo o passado
Vivendo o futuro
Pensou-se o presente apostar seguro
Seguindo o presente
Passado obscuro
Vazio de areia talvez um furo
Vazou
 Caiu
 virou?

Tempos
Modos
E costumes
Hábitos sedentos
 Alucinam
 Em 91

Virada a ampulheta
A areia
Tombou
Brilhou
Vidrou
(mudou?)
GNR, 1991, in Valsa dos Detectives

Para perceber o Narkomfin necessitamos de uma curta analepse histórica. A 25 de Outubro de 1917 os Guardas Vermelhos tomam o Palácio de Inverno de São Petersburgo. O acto, imortalizado no cinema por Eisenstein anos mais tarde, consuma a Revolução Socialista no maior país do mundo. Lenine assume os destinos da nação-continente. A Rússia passa a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Moscovo passa a capital. A foice e o “martelo” substituem a águia bicéfala. Tudo é novo, tudo é mutável e arquitectura não está de fora.
“A revolução apagou as instituições do Estado burguês e estabeleceu as premissas para uma nova organização da vida em todos os campos, incluindo o da Arquitectura” (2). A 19 de Fevereiro de 1918 é suprimida a propriedade privada do solo. Cinco meses depois é suprimida a propriedade privada no campo da construção. No final do mesmo ano são instituídos os serviços para planificação das cidades e a 4 de Novembro de 1922 a planificação urbanística das cidades é tornada obrigatória. Assim, desde o seu nascimento, o Estado Soviético demonstra uma enorme preocupação com as áreas da arquitectura e do urbanismo. Volvidos cinco anos de frenesim legislativo revolucionário, estão lançadas as bases para uma também, não mais pequena, revolução em ambos os campos. Libertados da especulação imobiliária privada e tutelados pelo estado, os arquitectos e urbanistas irão agora tentar erguer uma nova sociedade sobre os escombros de um país vastíssimo, industrialmente atrasado e devastado por duas guerras. A construção de um novo país, à luz da nova identidade socialista, exige novos modelos arquitectónicos. “Todos os aspectos e todas as fases do desenvolvimento da nova sociedade estão reflectidos na busca da habitação apropriada” (3). A habitação torna-se o principal laboratório de teste da aplicação das teorias marxistas ao campo arquitectónico. A ambição de remodelar toda a sociedade parte assim da renovação da célula, a casa, para a reconfiguração do corpo, a cidade. Deste modo são criadas instituições oficiais que irão, coligadas com associações livres de arquitectos, estudar os problemas da habitação e da cidade no seu conjunto.


O Narkomfin é um produto deste modelo de funcionamento e surge como um produto refinado de anos de aturada pesquisa e consistente experimentação tipológica. Encomendado em 1928, para albergar os trabalhadores do Comissariado de Finanças, o Narkomfin é confiado a uma equipa do grupo OSA (União dos Arquitectos Contemporâneos) chefiada pelo mentor e principal teorizador do movimento, Moisei Ginzburg. O projecto basear-se-á no trabalho desenvolvido pelo grupo no campo da habitação, efectuado ao serviço do RFSR (Secção Tipológica do Comité de Construção). A investigação, o estudo e a construção de edifícios residenciais colectivos variados, permitiu a elaboração de células de habitação tipificadas, bem como a sua junção e conjugação em unidades colectivas coerentes e interdependentes. Habitações que encorajem “...a passagem a formas de vida social superiores. Que estimulem mais do que decretem...” (4). Arquitectura e engenharia social ligadas, fazendo com que o indivíduo se diluísse no colectivo. O Narkomfin era assim um “condensador social”.



Futuro Radioso – Presente Implacável
“A Arquitectura contemporânea deve cristalizar o novo modo de vida socialista” (5). O Narkomfin é um complexo de habitação colectiva de carácter transitório, destinado a albergar 50 famílias (cerca de 200 pessoas), que consiste num bloco habitacional e um bloco de uso comunitário. Este carácter transitório era a designação dada a estas habitações ainda não totalmente colectivizadas. O objectivo era preparar e estimular os seus habitantes para essa futura total colectivização. O bloco habitacional está orientado a Este e Oeste, assente em pilotis, conta com 6 pisos, duas caixas de escada nos topos e dois corredores (no primeiro e quinto piso) que fazem o acesso aos apartamentos e uma cobertura plana ajardinada. A sua organização interior é complexa e resulta da conjugação de 3 tipologias diferentes. 32 unidades de tipo reduzido F, várias unidades duplas 2F  e 8 unidades para famílias similares ao tipo D, quartos individuais e duplos (para pessoas sozinhas e casais) bem como uma habitação individual extra no último piso. Há ainda um uso intensivo da cor quer para questões de ordem funcional, quer de ordem plástica. Quanto ao bloco social este encontra-se ligado ao habitacional através de passagem aérea coberta. Quase cúbico, de cerca de 4 andares aberto a norte, através duma cortina envidraçada, albergando no interior uma cozinha, uma cantina e um infantário.
O edifício e as suas intenções, simultaneamente humanistas e autoritárias, não resistiram ao confronto com a realidade e com tempo. O martelo saiu deformado do choque. Corredores e varandas que pretendiam ser pontos de encontro e socialização entre os residentes servem agora de arrumos e depósito de lixo. O rés-do-chão, elevado em pilotis, foi fechado com a construção de mais apartamentos, logo na década seguinte. O jardim na cobertura nunca foi concretizado. Por fim, o terraço viu as suas vistas mudarem radicalmente pela expansão da cidade, transformando o verde em mancha construída, ao mesmo tempo que via o seu uso desencorajado por razões de segurança devido à proximidade da Embaixada Norte-Americana. Actualmente, apenas metade do complexo encontra-se habitado e os residentes encarregaram-se de introduzir inúmeras alterações ao projecto original. Ideias como a de fomentar a colectivização da vida privada e a emancipação da mulher (através da ausência de cozinha em boa parte dos apartamentos e do provisionamento de locais onde as refeições seriam tomados colectivamente) resultaram num fracasso. Os habitantes rejeitaram o determinismo social colectivizante. O futuro radioso deu lugar ao presente implacável.
Decretado imóvel de interesse patrimonial em 1987. As autoridades oficiais têm agido com lentidão e parcimónia deixando o edifício progressivamente se degradar até ao estado de pré-ruína actual. Tendo a sua demolição sido considerada várias vezes e existindo actualmente um projecto de reabilitação liderado pelo neto de Ginzburg, que pretende restaurar o edifício o mais possível ao seu estado original convertendo-o num Hotel. Interessa pois discutir que destino a dar a este edifício. O que significaria a perda do Narkomfin?



Favoravelmente à conservação poderíamos dizer que se perderia um exemplo, talvez o exemplo, pioneiro da arquitectura modernista. Um modelo inspirativo de posteriores ícones da modernidade como as Unités d’Habitation de Le Corbusier ou o Robin Hood Gardens de Peter e Alison Smithson. Perder-se-ia também um artefacto arquitectónico, um testemunho físico dos ideais, do pensamento e da história da primeira era Socialista da URSS. É consensual.
Em favor da demolição poderíamos alegar que se trata de um edifício com forte cariz antidemocrático. Quer pelo facto de obedecer a pressupostos estabelecidos na altura por um governo ditatorial, quer pela eminente tentativa de ingerência e condicionamento da vida privada. É defensável.
Defendo a ideia de que o Narkomfin é tudo o que anteriormente se descreveu. Tal como o carácter humano, o carácter do Narkomfin não se presta a generalizações nem a maniqueísmo. Tanto pode ser visto como uma opressiva Caixa de Skinner, como uma Utopia tornada real. Tanto pode ser vista como a corporização da opressão comunista, como símbolo da resistência e da queda de uma mais benévola e humanista forma de socialismo (Leninismo vs. Estalinismo).
Avalizada a validade de qualquer uma das teses mantém-se o dilema. Que futuro? Pois bem, é no Futuro que reside a chave para a definição de uma estratégia de conservação do Narkomfin. Proponho entender o Narkomfin como uma cápsula temporal. Uma cápsula temporal que nos informa e transporta não só para o Passado, mas essencialmente rumo o Futuro. Mais do que mera cristalização de um tempo determinado ele é a cristalização de uma ideia de processo contínuo em direcção ao Futuro. Uma marca deixada pelo passado de um futuro hipotético que nunca se cumpriu. Um futuro passado, bem diferente do futuro presente que vivemos. O Narkomfin representa a crença no Futuro, a crença de mudar o destino, de mudar o curso da história, de mudar a sociedade, enfim de mudar o mundo. A sua sugestão, de uma possível alternativa desviante do trilho histórico linear que vivemos hoje, é subversiva.



Desde a queda do muro de Berlim e da desagregação da URSS que vivemos uma realidade emoldurada por uma narrativa única. Fukuyama chamou-lhe o fim da história anunciando o modelo da democracia liberal capitalista ocidental como hegemónico não só no presente como no futuro. Paulo Pereira, numa das suas aulas, falava da noção temporal alegando que a revolução francesa teria acabado com a noção do tempo circular (de imutabilidade, de perpétuo regresso etc.) e teria originado a noção de tempo linear (a ideia de progresso). O nosso tempo é hoje linear mas sem direcção. Como nave à deriva no espaço. O Futuro já não é proposto. Já não é criado. Acontece.
Concluindo: conservação, restauro e reabilitação são legítimos desde que se mantenham fieis à noção do Narkomfin como um Futuro Passado. Isso implica conservar-lhe a sua lógica de “martelo”. A alteração do uso não pode pôr isto em causa sobe pena do “martelo” virar “espelho”. Não conhecendo o projecto em profundidade, temo que tal poderá acontecer relativamente à ideia de transformação do Narkomfin em Hotel. Hipoteticamente podemos estar perante um fenómeno de gentrificação. Estamos no entanto perante a invasão de uma lógica capitalista global, transformando uma das mais inovadores experiências no campo da habitação numa experiência mais ou menos lúdica, mais ou menos circunstancial, ignorando o carácter subversivo que o edifício contém no seu ADN e tornando-o em algo dócil e mercantilizado.

A história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa
Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte
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Referências
1. Anatole Kopp, Ville et revolution – Architecture et urbanisme sovietiques des anneés vingt, p. 127.
2. Leonardo Benevolo, História de la Arquitectura Moderna, p.559.
3. Selin O. Khan-Magomedov, Pionneers of Soviet Architecture.
4. Anatole Kopp, op.cit., p.148.
5. Sovremennaya arkhitektura, 1926, nº3.
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Imagens
1. Narkomfin, circa 1929.
2. Narkomfin, fotografado por Rodchenko circa 1929.
3. Narkomfin, publicado na Sovremennaya arkhitektura, 1929, nº5.
4. Narkomfin, 2013.
5. Narkomfin e Nova Embaixada Norte Americana ao fundo, 2013.
6. Moscovo, 1991, Alexander Nemenov/AFP/ Getty Images.
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Nota Biográfica
Rui Gilman (Porto, 1982) Licenciado em Arquitectura pela Escola Superior Artística do Porto, frequentou o Curso de Estudos Avançados em Património na FAUP, criador e locutor do programa de arquitectura "cidadesINdiziveis" na Radio Manobras.