LABORATÓRIO DE EXTINÇÃO • Manuel Bivar







O envelhecimento da população, a baixa natalidade, as cidades abandonadas, o retorno de animais selvagens e os rios que se despoluem na esteira do declínio fazem de Portugal a ponta de lança do fim.

A esta sórdida quitinete chegam-me pela internet as notícias portuguesas. Na Consolação os carros buzinam, o trânsito é incessante, a torre Eiffel da Paulista acende-se de néon e pisca.
No jornal diário parece não haver novidades. Apenas as catástrofes já habituais: juros da dívida em crescimento, novo corte de salários e pensões, aumento do desemprego, e o administrador de um hospital público que faz contas sobre o que fica mais barato – amputar pernas ou colocar próteses.
Num canto discreto, a pequena notícia. O Instituto Nacional de Estatística (INE) anunciou projeções demográficas: em 2060 os atuais 10,5 milhões de habitantes de Portugal serão 6,3 milhões, o país perderá 40% da população em 46 anos, o atual índice de 131 idosos por cada 100 jovens será de 464 por 100, a população ativa, com idades entre os 15 e os 64 anos, passará de 6,9 para 3 milhões, os 1,5 milhões de jovens com menos de 15 anos serão apenas 587 mil.
Alguns dias mais tarde, as reações, tímidas. Uns acusam o governo e suas medidas de austeridade pela falta de vontade em ter filhos. Outros consideram as projeções pessimistas e exageradas. O governo aproveita as previsões para, mais uma vez, anunciar a insustentabilidade da previdência social, o que, na prática, significa mais uma tentativa de subir a idade de aposentadoria e a privatização do sistema. É apresentado um “plano de ação capaz de pôr os portugueses a ter bebés” que resulta no relatório Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade (2015-2035), mas os próprios redatores não parecem convencidos: “O decréscimo acentuado da natalidade é um problema social complexo (…) cuja abordagem política resulta necessariamente difícil”.
O envelhecimento da população não é novidade. Desde 2007 nascem menos do que morrem, mas agora os imigrantes, que nos últimos anos equilibraram a balança demográfica, fogem em busca de trabalho noutro lugar, e os portugueses voltam a emigrar massivamente. O responsável das migrações do governo de direita, que há uns anos defendia regras mais “rigorosas” para a entrada de imigrantes, declara agora que “a captação de imigrantes e o retorno dos portugueses que foram trabalhar para fora são necessidades vitais”, apesar de não conseguir enumerar uma medida concreta sequer.
De relance, neste vigésimo andar da avenida Ipiranga, quase mais alto que o mais alto edifício de Lisboa, tudo é claro. As previsões que o INE anuncia apenas confirmam o definhamento absoluto que todos pressentem. Ao anúncio de extinção, a reação é branda, quase serena. Ou o tráfego da Consolação está a deixar-me louco ou do alto desta torre me acomete uma clareza de Montaigne.

Uma das salas do shopping Frei Caneca lotada de gente jovem e ruidosa para assistir a Alentejo, Alentejo, de Sérgio Tréfaut. De abertura, uma curta de Manoel de Oliveira sobre o Velho do Restelo, personagem de Os Lusíadas, de Luís de Camões, que ergue a voz no momento de partida das caravelas opondo-se à aventura e que, em tom lúgubre e pesado, discute o passado glorioso e o futuro incerto de Portugal. Duas obsessões nacionais. Suspiros, ruído de pipocas, mas o homem tem 106 anos.
O documentário de Tréfaut sobre o cante, canto coral do sul de Portugal, intenso, melancólico e deprimente, a fazer lembrar os do Magrebe. Relatos de pessoas mais velhas sobre suas infâncias de pobreza absoluta, de jantares de uma sardinha dividida por quatro, de pés descalços no frio do inverno, dos trabalhos nos campos de trigo e nas lamas dos arrozais onde os mosquitos da malária picavam. Crianças que lamentam as famílias emigradas. Uma terra de onde todo o mundo partiu e continua a partir. A plateia vai-se esvaziando. Aqui, neste shopping, o fim ainda não faz sentido.
Há trinta anos que o Alentejo perde população. Hoje, restam 757 mil pessoas num território que ocupa um terço de Portugal. Dos que ficaram nas aldeias e vilas semidesertas, muitos decidem acabar a vida pendurados numa azinheira. O município de Odemira, extremo sul do Alentejo, foi em 2014 a região do mundo com maior taxa de suicídios. Num simpósio organizado pela Associação Psiquiátrica Alentejana em Junho de 2014 concluía-se que a tríade depressão, alcoolismo e suicídio era muito comum no Alentejo. Os homens usam caçadeiras ou enforcam-se e as mulheres atiram-se aos poços. Carlos Saraiva, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, identifica o isolamento, a pobreza e a fraca religiosidade como causas, e encontra na música uma forma de entender as diferenças com a vizinha província espanhola da Andaluzia, onde pouquíssimos se matam: “A diferença de personalidades entre alentejanos e andaluzes chega a ser perturbadora, do lado de cá o cante alentejano arrasta-se pela planície, numa espécie de prece melancólica. […] Do outro lado da fronteira, a exuberância das sevilhanas, cheias de cor, que traduzem invejável alegria de viver”.


As madrugadas frescas antes do brasedo do dia, os cães a correr à frente, tiros, o sangue das lebres e dos coelhos e perdizes nas calças. Meu pai contava-nos histórias desse Alentejo, quase feudal até aos anos 1950, dentro de uma enorme lareira onde várias pessoas se podem sentar. Latifúndios desmesurados, centenas de trabalhadores braçais, a cultura do trigo feita por mulas e bois e rebanhos de milhares de ovelhas e porcos. Essa nostalgia de um tempo que para a maioria foi miserável, era em parte a nostalgia de um passado familiar anterior à derrocada que se iniciara com a minha bisavó destruindo a fortuna num casino de Nice e terminara com a gestão ruinosa do meu avô, que perdera as propriedades ainda antes da revolução de 1974, quando se iniciou a reforma agrária.
Mas não era apenas isso que ele lamentava. Era também nostalgia de uma paisagem desaparecida, onde as aldeias tinham gente e os campos estavam cultivados. Ele não se cansava de apontar com raiva os campos invadidos de estevas, giestas e piorno, aramados e repletos de vacas, onde antes crescera o trigo. Falava de bichos como raposas e javalis que na sua infância não apareciam por ali e que ele agora via todos os dias.
A paisagem de campos de trigo do meu pai não era tão antiga. O trigo veio-se tornando monocultura no Alentejo desde o século XIX e especialmente a partir de 1929, quando António Salazar, o ditador, lançou a Campanha do Trigo, buscando tornar o país autossuficiente naquele cereal. A expansão do cultivo de trigo em terrenos não apropriados teve como consequência a desflorestação e o aumento de erosão. As condições de vida dos trabalhadores rurais foram de miséria durante os 41 anos de ditadura e os protestos foram fortemente reprimidos. A partir de 1950, a população passou a emigrar.
Em 1974, ano da revolução, 85% da população alentejana trabalhava no campo e a grande questão era a distribuição da terra. Um milhão de hectares de latifúndio foram ocupados sob o lema “a terra a quem a trabalha” e iniciaram-se várias experiências colectivas de gestão das terras. A euforia terminou rapidamente quando em 1977, após o fim do processo revolucionário, o governo socialista aprovou uma lei que obrigava à devolução das terras aos antigos proprietários.

As perceções do meu pai sobre javalis e raposas são confirmadas pelos biólogos. Algumas espécies que há décadas estavam desaparecidas voltam agora. Em 1999, Miguel Gama, dirigente do Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens, percorria os caminhos da Serra do Gerês, junto à fronteira com a Galiza. Em seu diário, anotou: “De repente, as silhuetas de um, depois dois, finalmente três animais fazem-me pensar no que não posso acreditar. O binóculo desfaz, historicamente, a dúvida. São 14h50. A cabra-montês está de volta a Portugal!”. José Pereira, um silvicultor que no final do século XIX fez o repovoamento florestal daquelas serras, tinha sido o último a avistar uma cabra selvagem em Portugal. A entrada dos três animais foi um acaso, fugiram de Espanha. Hoje, estima-se que pastem trezentas cabras-montês no Gerês.
Também os cervídeos estavam praticamente extintos no território português desde o século XIX. Apenas algumas dezenas de veados e corços sobravam em fazendas muradas pertencentes à casa real. Desde 1939, as duas espécies eram classificadas como em risco de extinção. Um estudo recente sobre a evolução das populações de veados e corços de 1900 a 2000 fala de “uma enorme expansão acompanhada de aumento de densidade relevante”, estando as “populações em constante expansão geográfica” e verificando-se “a colonização de novos habitats em diferentes regiões de Portugal”. A bióloga que conduziu o estudo concluiu que o abandono da agricultura e a saída da população para as cidades provocava o restabelecimento do habitat natural das populações de cervídeos.
Em setembro de 2014, o presidente do Grupo Lobo, uma ONG dedicada à proteção do lobo ibérico, espécie em risco de extinção, dizia à comunicação social que “a população está a aumentar em Portugal e hoje as alcateias estão estáveis”. Um outro biólogo, da Universidade de Évora, acrescentava que “se não perseguirem o lobo, a espécie voltará ao Alentejo e possivelmente às serras do Algarve” onde desde o início do século XX está extinto. O biólogo Nuno Almeida, coordenador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos dizia acreditar que “podemos ter populações viáveis de grandes predadores”, e que “o abandono do mundo rural e a expansão do bosque mediterrânico tornam a convivência entre humanos e predador mais possível agora do que há uns anos atrás”.


Em 2012, uma marca de cerveja da República Checa escolheu as serras do Gerês para a realização de um anúncio publicitário. A paisagem selvagem e abandonada pareceu-lhes perfeita. Para o anúncio, um urso pardo amestrado e seu tratador foram trazidos. A população da região juntou-se para ver aquele animal que ali não aparecia desde o século XVII. O urso publicitário checo provocou debate. Um biólogo dizia exasperado que em Portugal nunca haveria espaço territorial para o urso, enquanto outro rebatia: “é controverso e dizem que seria um disparate mas, se dentro de 20 a 30 anos se mantiverem as tendências de abandono das áreas agrícolas e pastorícias marginais, teremos condições para o regresso do urso na região montanhosa do Norte”.
Talvez não sejam necessários 20 a 30 anos para que haja espaço para ursos. As previsões demográficas para o interior são catastróficas. Um amigo fala-me, alarmado, das conclusões do projeto Demospin, que envolveu várias universidades num estudo demográfico e económico do interior português. Para 2100 prevê-se o desaparecimento de 75% da população atual. A quem conheça a raia, a região fronteiriça com Espanha, com sua paisagem de aldeias abandonadas, oliveiras secas e florestas queimadas, não é um cenário difícil de imaginar.
Durante os verões, os telejornais acompanham os incêndios em direto e o governo anuncia aviões e helicópteros de combate ao fogo. Sucedem-se imagens dantescas de florestas queimadas, pessoas que choram as casas perdidas. Quem estuda o fogo em Portugal diz que o país continuará a arder. Até 1970, os incêndios não eram um problema para a floresta portuguesa mas, desde então, o abandono dos campos e a redução do pastoreio provocados pelo êxodo rural fizeram aumentar o material combustível de tal forma que uma fagulha provoca incêndios que duram dias.
No século XIX, a maioria das antigas florestas de carvalhos estavam derrubadas. Processo antigo, já no século XV faltava madeira para construir navios. Gravuras e fotografias do século XIX mostram campos agrícolas, oliveiras e serras com a pedra à vista e cabras pastando. A situação agora é outra. Uma análise histórica da floresta portuguesa entre 1875 e 2005 mostra que as áreas florestais cresceram de 7% para 32% do total do território. No norte e centro expandiram-se pinheirais e eucaliptais para abastecer a indústria da celulose, no sul plantaram-se sobreiros para a produção de cortiça. Os matos incultos de vegetação rasteira aumentam também e vêm substituindo as antigas áreas agrícolas.
Quem saia de Lisboa para leste pela A23, uma das megalómanas rodovias que fizeram a colossal dívida pública portuguesa, atravessa serras e montes com pinheiros e eucaliptos, matos queimados com restos de troncos carbonizados e as espécies arbustivas dos matos mediterrâneos que cobrem a antiga paisagem agrícola. Por vezes passa um carro.


Desmotorização, novo termo que surge em 2012 quando um professor de geografia humana da Universidade de Lisboa afirma que “os portugueses estão a ser desmotorizados à força pela perda do poder de compra, o aumento dos pedágios das autoestradas e dos preços dos combustíveis, e pelo agravamento das tarifas dos transportes coletivos”. “Não é ecologia, é custo de vida”, rematava. A empresa que gere as autoestradas confirma a enorme redução de tráfego. Um estudo mostra que o tempo perdido no trânsito em Lisboa desceu de 5,16 horas mensais em janeiro de 2010 para 0,24 em julho de 2014.
No vigésimo andar da avenida Ipiranga, a cabeça a trepidar com o motor dos ônibus, sonho desmotorização.
Os carros desaparecem e os prédios devolutos em Lisboa aumentam. Segundo a prefeitura em 2009 eram 4.689, 8% do total de edifícios da capital. Nos baldios que sobraram entre as construções da periferia e nos taludes das vias rápidas aumentam as hortas, cultiva-se feijão, favas e couves.
No centro da cidade, contudo, outras populações expandem-se aceleradamente. Entre 2004 e 2013 o número de turistas estrangeiros em Portugal registou um aumento superior a 2,5 milhões de pessoas. O maior crescimento foi de 2012 para 2013, de 7,6 milhões anuais para 8,3 milhões. A tendência manteve-se em 2014. Dados do Turismo de Portugal que quem vive no centro de Lisboa confirma todos os dias. Multidões rosadas de caras afogueadas sobem as colinas. Nas casas de amigos deixou de ser raro encontrar turistas na sala porque muitos vivem do aluguer de quartos.
No estuário do Tejo também há crescimento. Os funcionários da Reserva Natural, que gere parte do estuário, falam do aumento de patos brancos, espátulas, garças, íbis pretos e flamingos. Maria José Costa, diretora do Centro de Oceanografia da Universidade de Lisboa, diz que tem havido aumentos de todas as espécies de peixe devido à diminuição de poluição. A ostra portuguesa, desaparecida desde os anos 1960, está de volta, e nos últimos três anos têm-se avistado golfinhos no estuário, algo inédito desde 1950. Numa notícia de jornal leio da possibilidade de em breve se retirarem as interdições de banhos nas praias fluviais do estuário. Quem, como eu, cresceu em Lisboa nos anos 1980, espanta-se. No Tejo da minha infância só sobreviviam tainhas gordíssimas que se viam aos milhares nas bocas de esgoto buscando alimento. Em 1989, um candidato à presidência da prefeitura atravessou o rio a nado prometendo a sua despoluição. Apesar de todas as vacinas tomadas por precaução, contraiu hepatite B.

Assisto pela internet a Revolução Industrial, um filme de Frederico Lobo e Tiago Hespanha. A câmara, de dentro de um barco, desce o rio Ave e mostra uma paisagem de ruínas de fábricas. Por vezes, há pessoas entre as ruínas que subsistem criando galinhas ou plantando couves. Lembro-me do Ave da televisão dos anos 1980 e 1990, quando o rio era notícia pelas descargas de resíduos industriais que matavam peixes e aves. Desde finais do século XIX, ali se instalaram unidades industriais de produção de fios, tecelagem e vestuário. O vale do Ave tornou-se uma das regiões mais industrializadas do país. Até aos anos 1990, eram frequentes os relatos de exploração, salários miseráveis, e crianças escondidas em casa cosendo roupa para as fábricas. Com o alargamento europeu a leste e a liberalização do comércio com a China, o que restava da precária indústria portuguesa desmantelou-se. A China produz o mesmo – roupa, sapatos e loiça – e com salários ainda mais baixos. A taxa de desemprego entre os jovens era em 2014 de mais de 40%. Já não há quase fábricas no Ave. Agora as águas parecem mais limpas.


Idosa desaparecida há nove anos é encontrada morta em sua casa nos subúrbios lisboetas após a casa ter sido vendida por dívidas à Receita Federal. Na cozinha, junto ao cadáver, o esqueleto de um cão. Os corpos permaneceram nove anos sem que ninguém desse por sua falta. O caso chocou o país. O isolamento extremo é cada vez mais frequente no país que tem a região (Pinhal Interior Sul) mais envelhecida da União Europeia, onde 32,4% da população tem mais de 65 anos.
Há quem, contudo, já tenha encontrado um potencial. No Alentejo, ainda este ano, será aplicado um novo conceito, a “aldeia-lar” – em português do Brasil, a aldeia-asilo. Para o sociólogo João Martins, responsável pelo projeto, o conceito é simples, e “passa por dar a um conjunto de aldeias e vilas do nosso interior uma vocação, porque, no fundo, tudo o que não tem uma vocação morre”. O projeto pretende criar condições para acolher idosos portugueses e de outros países europeus. “Portugal pode assumir um papel preponderante neste domínio, pois temos condições únicas e podemos mesmo voltar a ser a Califórnia da Europa no sentido de atrairmos e fixarmos investimento”, disse um outro entusiasta do projeto. De fato, este ano, o jornal Le Monde classificou Portugal como “o novo Eldorado para os aposentados europeus” devido às vantagens fiscais que o governo português aprovou com o objetivo de atrair 200 mil aposentados estrangeiros.

Em novembro de 2014, veio ao SESC Vila Mariana o escritor português Gonçalo M. Tavares apresentar seu novo livro, Os velhos também querem viver. Explicando o porquê de uma adaptação do texto de Alceste de Eurípedes aos tempos atuais, falava do crescente ódio entre velhos e novos em Portugal, que o governo se tem esforçado por incitar de forma a justificar a privatização da previdência social. “Apenas por vergonha os novos não dizem que os velhos devem morrer”, dizia. Notei estranhamento e olhares incomodados na plateia do SESC.
“Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer, o mundo”, escrevia António Vieira. No país da Europa com maior número de emigrantes por percentagem da população, o destino continua a cumprir-se. Talvez seja mesmo vocação esotérica. Uma famosa vidente dizia que aquele território de pedras e vento e mar é cheio de energias voláteis, pesadas e negativas que incitam à partida e à prostração de quem fica. As análises históricas falam dum isolamento que compeliu ao mundo. Espanha de um lado como um deserto, do outro o mar.
“Cabo ou rosto do Ocidente assim lavado do Oceano”, um país de vocação universal, a cabeça de um quinto império por vir, anunciava ainda Vieira. Ou, como dizia um dos muitos que se inspiraram nas loucas ideias do padre: “Fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. / O rosto que fita é Portugal”. Fernando Pessoa. Ideias que tiveram impacto durante o século XX português.
Sabemos que a verdade talvez seja mais simples, pura vontade de fuga, a sensação de que tudo é impossível naquele extremo da Europa. Quem foge sabe-o bem, lamenta o vinho e o sol, mas não quer voltar. É uma trilogia delirante – passado grandioso, presente decadente e um futuro que virá exuberante à imagem do passado – a obsessão nacional que pesou e continua a pesar. Como dizia recentemente um filósofo que tem feito fama, “se o Brasil é o país do futuro que nunca chega, Portugal vive do passado que jamais volta”.
Em Lisboa, as seringueiras, que vejo também aqui nesta Praça Roosevelt, vão sendo arrancadas e substituídas por espécies autóctones cujas raízes não rebentam o chão. Um relatório de 2013 coloca Portugal como um dos 34 países da OCDE que mais antidepressivos consomem. Dizem os especialistas que são as dificuldades de adaptação dos portugueses, vindos recentemente de uma vida rural, à modernidade. Serão também o milhão de retornados das ex-colónias que lamentam desde 1974 melhores climas e abundância de empregados, e os 800 mil antigos combatentes de uma guerra colonial que durou 10 anos e de que nunca mais se falou e que de noite choram em silêncio nos quartos.
O império acabou, sabemos disso, temos agora a certeza. Falta saber que não houve império mas apenas uma enorme e irresistível vontade de fuga. António Vieira, internado nos sertões do Brasil, sabia-o, e por isso foi brilhante – um incontrolável desejo de fuga transformado num porvir grandioso e megalómano. “Santo António”, dizia, “foi luz do mundo, porque foi verdadeiro Português (…) não fora verdadeiro Português se não for a luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens, é só privilégio da Graça; nos Portugueses é também obrigação da natureza”.
Do alto desta torre da Ipiranga, a solução me parece limpa, radiosa, fácil e já em curso. Finalmente, o futuro chegou. Libertamo-nos do passado e não o esperamos mais. Um Inquérito à Fecundidade do INE concluía em novembro de 2013: “De três quartos da população portuguesa não podemos esperar nascimentos nos próximos anos”. António estava certo. Apenas duas palavras em falta em seu raciocínio. Seremos a luz do fim do mundo.
“Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!”, dizia Pessoa. Não. Portugal cumpriu-se. Não seremos mais a cauda mas sim a cabeça ou mesmo a coroa. A coroa de uma rainha decadente e decrépita, quase morta, entrincheirada e asséptica, banhada em águas cheias de sangue dos que ali se afogam em canoas a cada dia. Portugal, laboratório de extinção, ponta de lança do fim. Uma nova megalomania que nos libertará de histórias loucas, grandiosas e inventadas. Iluminemos o mundo sobre o resultado de longas horas de trabalho cronometrado e a solidão de apartamentos em frente à televisão.
Do alto da torre Vasco da Gama, o mais alto edifício de Lisboa, construído em 1998 para celebrar a grandeza passada e o novo futuro, contemplemos o estuário com seus bandos de flamingos e cardumes de corvinas. Façamos o festim. Depois da caçada, roendo os ossos de um desses javalis gordos que agora abundam nas serras, mirando a oriente essa Europa de bárbaros em shopping centers, comendo hambúrgueres e filé liofilizado, rufemos os tambores, e entoemos o poema do amigo de Pessoa que se matou com uma dose de estricnina: “’Ganhar o pão do seu dia / Com o suor do seu rosto…’ / – Mas não há maior desgosto / Nem há maior vilania!”. E então, talvez, num assomo de liberdade e faísca de instinto, decidamos viver, e nos reproduzir.


Manuel Bivar
Doutorando em história social na UNICAMP, desde 2008 faz pesquisa sobre agricultura e história da floresta na Guiné-Bissau.

Notas da edição
O texto de Manuel Bivar foi escrito originalmente na revista PISEAGRAMA, nº8, em 2015: http://piseagrama.org/laboratorio-de-extincao/. Manteve-se o registo original em português do brasil.

Imagens
Searching for Paradise, pinturas de Shuichi Nakano. Artista japonês, vive na cidade de Yuzawa. http://nakanoshuichi.com

Ficha Técnica
Data de publicação: 17.07.2017