O envelhecimento da população, a baixa
natalidade, as cidades abandonadas, o retorno de animais selvagens e os rios que
se despoluem na esteira do declínio fazem de Portugal a ponta de lança do fim.
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A
esta sórdida quitinete chegam-me pela internet as notícias portuguesas. Na
Consolação os carros buzinam, o trânsito é incessante, a torre Eiffel da
Paulista acende-se de néon e pisca.
No
jornal diário parece não haver novidades. Apenas as catástrofes já habituais:
juros da dívida em crescimento, novo corte de salários e pensões, aumento do
desemprego, e o administrador de um hospital público que faz contas sobre o que
fica mais barato – amputar pernas ou colocar próteses.
Num
canto discreto, a pequena notícia. O Instituto Nacional de Estatística (INE) anunciou
projeções demográficas: em 2060 os atuais 10,5 milhões de habitantes de
Portugal serão 6,3 milhões, o país perderá 40% da população em 46 anos, o atual
índice de 131 idosos por cada 100 jovens será de 464 por 100, a população
ativa, com idades entre os 15 e os 64 anos, passará de 6,9 para 3 milhões, os
1,5 milhões de jovens com menos de 15 anos serão apenas 587 mil.
Alguns
dias mais tarde, as reações, tímidas. Uns acusam o governo e suas medidas de
austeridade pela falta de vontade em ter filhos. Outros consideram as projeções
pessimistas e exageradas. O governo aproveita as previsões para, mais uma vez,
anunciar a insustentabilidade da previdência social, o que, na prática,
significa mais uma tentativa de subir a idade de aposentadoria e a privatização
do sistema. É apresentado um “plano de ação capaz de pôr os portugueses a ter
bebés” que resulta no relatório Por um
Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade (2015-2035), mas
os próprios redatores não parecem convencidos: “O decréscimo acentuado da
natalidade é um problema social complexo (…) cuja abordagem política resulta
necessariamente difícil”.
O
envelhecimento da população não é novidade. Desde 2007 nascem menos do que
morrem, mas agora os imigrantes, que nos últimos anos equilibraram a balança
demográfica, fogem em busca de trabalho noutro lugar, e os portugueses voltam a
emigrar massivamente. O responsável das migrações do governo de direita, que há
uns anos defendia regras mais “rigorosas” para a entrada de imigrantes, declara
agora que “a captação de imigrantes e o retorno dos portugueses que foram
trabalhar para fora são necessidades vitais”, apesar de não conseguir enumerar
uma medida concreta sequer.
De
relance, neste vigésimo andar da avenida Ipiranga, quase mais alto que o mais
alto edifício de Lisboa, tudo é claro. As previsões que o INE anuncia apenas
confirmam o definhamento absoluto que todos pressentem. Ao anúncio de extinção,
a reação é branda, quase serena. Ou o tráfego da Consolação está a deixar-me
louco ou do alto desta torre me acomete uma clareza de Montaigne.
Uma
das salas do shopping Frei Caneca lotada de gente jovem e ruidosa para assistir
a Alentejo, Alentejo, de Sérgio
Tréfaut. De abertura, uma curta de Manoel de Oliveira sobre o Velho do Restelo,
personagem de Os Lusíadas, de Luís de
Camões, que ergue a voz no momento de partida das caravelas opondo-se à
aventura e que, em tom lúgubre e pesado, discute o passado glorioso e o futuro
incerto de Portugal. Duas obsessões nacionais. Suspiros, ruído de pipocas, mas
o homem tem 106 anos.
O
documentário de Tréfaut sobre o cante, canto coral do sul de Portugal, intenso,
melancólico e deprimente, a fazer lembrar os do Magrebe. Relatos de pessoas
mais velhas sobre suas infâncias de pobreza absoluta, de jantares de uma
sardinha dividida por quatro, de pés descalços no frio do inverno, dos
trabalhos nos campos de trigo e nas lamas dos arrozais onde os mosquitos da
malária picavam. Crianças que lamentam as famílias emigradas. Uma terra de onde
todo o mundo partiu e continua a partir. A plateia vai-se esvaziando. Aqui,
neste shopping, o fim ainda não faz sentido.
Há
trinta anos que o Alentejo perde população. Hoje, restam 757 mil pessoas num
território que ocupa um terço de Portugal. Dos que ficaram nas aldeias e vilas
semidesertas, muitos decidem acabar a vida pendurados numa azinheira. O
município de Odemira, extremo sul do Alentejo, foi em 2014 a região do mundo
com maior taxa de suicídios. Num simpósio organizado pela Associação
Psiquiátrica Alentejana em Junho de 2014 concluía-se que a tríade depressão,
alcoolismo e suicídio era muito comum no Alentejo. Os homens usam caçadeiras ou
enforcam-se e as mulheres atiram-se aos poços. Carlos Saraiva, ex-presidente da
Sociedade Portuguesa de Suicidologia, identifica o isolamento, a pobreza e a
fraca religiosidade como causas, e encontra na música uma forma de entender as
diferenças com a vizinha província espanhola da Andaluzia, onde pouquíssimos se
matam: “A diferença de personalidades entre alentejanos e andaluzes chega a ser
perturbadora, do lado de cá o cante alentejano arrasta-se pela planície, numa
espécie de prece melancólica. […] Do outro lado da fronteira, a exuberância das
sevilhanas, cheias de cor, que traduzem invejável alegria de viver”.
As
madrugadas frescas antes do brasedo do dia, os cães a correr à frente, tiros, o
sangue das lebres e dos coelhos e perdizes nas calças. Meu pai contava-nos
histórias desse Alentejo, quase feudal até aos anos 1950, dentro de uma enorme
lareira onde várias pessoas se podem sentar. Latifúndios desmesurados, centenas
de trabalhadores braçais, a cultura do trigo feita por mulas e bois e rebanhos
de milhares de ovelhas e porcos. Essa nostalgia de um tempo que para a maioria
foi miserável, era em parte a nostalgia de um passado familiar anterior à
derrocada que se iniciara com a minha bisavó destruindo a fortuna num casino de
Nice e terminara com a gestão ruinosa do meu avô, que perdera as propriedades
ainda antes da revolução de 1974, quando se iniciou a reforma agrária.
Mas
não era apenas isso que ele lamentava. Era também nostalgia de uma paisagem
desaparecida, onde as aldeias tinham gente e os campos estavam cultivados. Ele
não se cansava de apontar com raiva os campos invadidos de estevas, giestas e
piorno, aramados e repletos de vacas, onde antes crescera o trigo. Falava de
bichos como raposas e javalis que na sua infância não apareciam por ali e que
ele agora via todos os dias.
A
paisagem de campos de trigo do meu pai não era tão antiga. O trigo veio-se
tornando monocultura no Alentejo desde o século XIX e especialmente a partir de
1929, quando António Salazar, o ditador, lançou a Campanha do Trigo, buscando
tornar o país autossuficiente naquele cereal. A expansão do cultivo de trigo em
terrenos não apropriados teve como consequência a desflorestação e o aumento de
erosão. As condições de vida dos trabalhadores rurais foram de miséria durante
os 41 anos de ditadura e os protestos foram fortemente reprimidos. A partir de
1950, a população passou a emigrar.
Em
1974, ano da revolução, 85% da população alentejana trabalhava no campo e a
grande questão era a distribuição da terra. Um milhão de hectares de latifúndio
foram ocupados sob o lema “a terra a quem a trabalha” e iniciaram-se várias
experiências colectivas de gestão das terras. A euforia terminou rapidamente
quando em 1977, após o fim do processo revolucionário, o governo socialista aprovou
uma lei que obrigava à devolução das terras aos antigos proprietários.
As
perceções do meu pai sobre javalis e raposas são confirmadas pelos biólogos.
Algumas espécies que há décadas estavam desaparecidas voltam agora. Em 1999,
Miguel Gama, dirigente do Fundo para a Protecção dos Animais Selvagens,
percorria os caminhos da Serra do Gerês, junto à fronteira com a Galiza. Em seu
diário, anotou: “De repente, as silhuetas de um, depois dois, finalmente três
animais fazem-me pensar no que não posso acreditar. O binóculo desfaz,
historicamente, a dúvida. São 14h50. A cabra-montês está de volta a Portugal!”.
José Pereira, um silvicultor que no final do século XIX fez o repovoamento
florestal daquelas serras, tinha sido o último a avistar uma cabra selvagem em
Portugal. A entrada dos três animais foi um acaso, fugiram de Espanha. Hoje,
estima-se que pastem trezentas cabras-montês no Gerês.
Também
os cervídeos estavam praticamente extintos no território português desde o
século XIX. Apenas algumas dezenas de veados e corços sobravam em fazendas
muradas pertencentes à casa real. Desde 1939, as duas espécies eram
classificadas como em risco de extinção. Um estudo recente sobre a evolução das
populações de veados e corços de 1900 a 2000 fala de “uma enorme expansão acompanhada
de aumento de densidade relevante”, estando as “populações em constante
expansão geográfica” e verificando-se “a colonização de novos habitats em
diferentes regiões de Portugal”. A bióloga que conduziu o estudo concluiu que o
abandono da agricultura e a saída da população para as cidades provocava o
restabelecimento do habitat natural das populações de cervídeos.
Em
setembro de 2014, o presidente do Grupo Lobo, uma ONG dedicada à proteção do
lobo ibérico, espécie em risco de extinção, dizia à comunicação social que “a
população está a aumentar em Portugal e hoje as alcateias estão estáveis”. Um
outro biólogo, da Universidade de Évora, acrescentava que “se não perseguirem o
lobo, a espécie voltará ao Alentejo e possivelmente às serras do Algarve” onde
desde o início do século XX está extinto. O biólogo Nuno Almeida, coordenador
do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos dizia
acreditar que “podemos ter populações viáveis de grandes predadores”, e que “o
abandono do mundo rural e a expansão do bosque mediterrânico tornam a
convivência entre humanos e predador mais possível agora do que há uns anos
atrás”.
Em
2012, uma marca de cerveja da República Checa escolheu as serras do Gerês para
a realização de um anúncio publicitário. A paisagem selvagem e abandonada
pareceu-lhes perfeita. Para o anúncio, um urso pardo amestrado e seu tratador
foram trazidos. A população da região juntou-se para ver aquele animal que ali
não aparecia desde o século XVII. O urso publicitário checo provocou debate. Um
biólogo dizia exasperado que em Portugal nunca haveria espaço territorial para
o urso, enquanto outro rebatia: “é controverso e dizem que seria um disparate
mas, se dentro de 20 a 30 anos se mantiverem as tendências de abandono das
áreas agrícolas e pastorícias marginais, teremos condições para o regresso do
urso na região montanhosa do Norte”.
Talvez
não sejam necessários 20 a 30 anos para que haja espaço para ursos. As
previsões demográficas para o interior são catastróficas. Um amigo fala-me,
alarmado, das conclusões do projeto Demospin, que envolveu várias universidades
num estudo demográfico e económico do interior português. Para 2100 prevê-se o
desaparecimento de 75% da população atual. A quem conheça a raia, a região
fronteiriça com Espanha, com sua paisagem de aldeias abandonadas, oliveiras
secas e florestas queimadas, não é um cenário difícil de imaginar.
Durante
os verões, os telejornais acompanham os incêndios em direto e o governo anuncia
aviões e helicópteros de combate ao fogo. Sucedem-se imagens dantescas de
florestas queimadas, pessoas que choram as casas perdidas. Quem estuda o fogo
em Portugal diz que o país continuará a arder. Até 1970, os incêndios não eram
um problema para a floresta portuguesa mas, desde então, o abandono dos campos
e a redução do pastoreio provocados pelo êxodo rural fizeram aumentar o
material combustível de tal forma que uma fagulha provoca incêndios que duram
dias.
No
século XIX, a maioria das antigas florestas de carvalhos estavam derrubadas.
Processo antigo, já no século XV faltava madeira para construir navios.
Gravuras e fotografias do século XIX mostram campos agrícolas, oliveiras e
serras com a pedra à vista e cabras pastando. A situação agora é outra. Uma
análise histórica da floresta portuguesa entre 1875 e 2005 mostra que as áreas
florestais cresceram de 7% para 32% do total do território. No norte e centro
expandiram-se pinheirais e eucaliptais para abastecer a indústria da celulose,
no sul plantaram-se sobreiros para a produção de cortiça. Os matos incultos de
vegetação rasteira aumentam também e vêm substituindo as antigas áreas
agrícolas.
Quem
saia de Lisboa para leste pela A23, uma das megalómanas rodovias que fizeram a
colossal dívida pública portuguesa, atravessa serras e montes com pinheiros e
eucaliptos, matos queimados com restos de troncos carbonizados e as espécies
arbustivas dos matos mediterrâneos que cobrem a antiga paisagem agrícola. Por
vezes passa um carro.
Desmotorização,
novo termo que surge em 2012 quando um professor de geografia humana da
Universidade de Lisboa afirma que “os portugueses estão a ser desmotorizados à
força pela perda do poder de compra, o aumento dos pedágios das autoestradas e
dos preços dos combustíveis, e pelo agravamento das tarifas dos transportes
coletivos”. “Não é ecologia, é custo de vida”, rematava. A empresa que gere as
autoestradas confirma a enorme redução de tráfego. Um estudo mostra que o tempo
perdido no trânsito em Lisboa desceu de 5,16 horas mensais em janeiro de 2010
para 0,24 em julho de 2014.
No
vigésimo andar da avenida Ipiranga, a cabeça a trepidar com o motor dos ônibus,
sonho desmotorização.
Os
carros desaparecem e os prédios devolutos em Lisboa aumentam. Segundo a
prefeitura em 2009 eram 4.689, 8% do total de edifícios da capital. Nos baldios
que sobraram entre as construções da periferia e nos taludes das vias rápidas
aumentam as hortas, cultiva-se feijão, favas e couves.
No
centro da cidade, contudo, outras populações expandem-se aceleradamente. Entre
2004 e 2013 o número de turistas estrangeiros em Portugal registou um aumento
superior a 2,5 milhões de pessoas. O maior crescimento foi de 2012 para 2013,
de 7,6 milhões anuais para 8,3 milhões. A tendência manteve-se em 2014. Dados
do Turismo de Portugal que quem vive no centro de Lisboa confirma todos os
dias. Multidões rosadas de caras afogueadas sobem as colinas. Nas casas de
amigos deixou de ser raro encontrar turistas na sala porque muitos vivem do
aluguer de quartos.
No
estuário do Tejo também há crescimento. Os funcionários da Reserva Natural, que
gere parte do estuário, falam do aumento de patos brancos, espátulas, garças,
íbis pretos e flamingos. Maria José Costa, diretora do Centro de Oceanografia
da Universidade de Lisboa, diz que tem havido aumentos de todas as espécies de
peixe devido à diminuição de poluição. A ostra portuguesa, desaparecida desde
os anos 1960, está de volta, e nos últimos três anos têm-se avistado golfinhos
no estuário, algo inédito desde 1950. Numa notícia de jornal leio da
possibilidade de em breve se retirarem as interdições de banhos nas praias
fluviais do estuário. Quem, como eu, cresceu em Lisboa nos anos 1980,
espanta-se. No Tejo da minha infância só sobreviviam tainhas gordíssimas que se
viam aos milhares nas bocas de esgoto buscando alimento. Em 1989, um candidato
à presidência da prefeitura atravessou o rio a nado prometendo a sua
despoluição. Apesar de todas as vacinas tomadas por precaução, contraiu
hepatite B.
Assisto
pela internet a Revolução Industrial,
um filme de Frederico Lobo e Tiago Hespanha. A câmara, de dentro de um barco,
desce o rio Ave e mostra uma paisagem de ruínas de fábricas. Por vezes, há
pessoas entre as ruínas que subsistem criando galinhas ou plantando couves.
Lembro-me do Ave da televisão dos anos 1980 e 1990, quando o rio era notícia
pelas descargas de resíduos industriais que matavam peixes e aves. Desde finais
do século XIX, ali se instalaram unidades industriais de produção de fios,
tecelagem e vestuário. O vale do Ave tornou-se uma das regiões mais industrializadas
do país. Até aos anos 1990, eram frequentes os relatos de exploração, salários
miseráveis, e crianças escondidas em casa cosendo roupa para as fábricas. Com o
alargamento europeu a leste e a liberalização do comércio com a China, o que
restava da precária indústria portuguesa desmantelou-se. A China produz o mesmo
– roupa, sapatos e loiça – e com salários ainda mais baixos. A taxa de
desemprego entre os jovens era em 2014 de mais de 40%. Já não há quase fábricas
no Ave. Agora as águas parecem mais limpas.
Idosa
desaparecida há nove anos é encontrada morta em sua casa nos subúrbios
lisboetas após a casa ter sido vendida por dívidas à Receita Federal. Na
cozinha, junto ao cadáver, o esqueleto de um cão. Os corpos permaneceram nove
anos sem que ninguém desse por sua falta. O caso chocou o país. O isolamento
extremo é cada vez mais frequente no país que tem a região (Pinhal Interior
Sul) mais envelhecida da União Europeia, onde 32,4% da população tem mais de 65
anos.
Há
quem, contudo, já tenha encontrado um potencial. No Alentejo, ainda este ano,
será aplicado um novo conceito, a “aldeia-lar” – em português do Brasil, a
aldeia-asilo. Para o sociólogo João Martins, responsável pelo projeto, o
conceito é simples, e “passa por dar a um conjunto de aldeias e vilas do nosso
interior uma vocação, porque, no fundo, tudo o que não tem uma vocação morre”.
O projeto pretende criar condições para acolher idosos portugueses e de outros
países europeus. “Portugal pode assumir um papel preponderante neste domínio,
pois temos condições únicas e podemos mesmo voltar a ser a Califórnia da Europa
no sentido de atrairmos e fixarmos investimento”, disse um outro entusiasta do
projeto. De fato, este ano, o jornal Le
Monde classificou Portugal como “o novo Eldorado para os aposentados
europeus” devido às vantagens fiscais que o governo português aprovou com o
objetivo de atrair 200 mil aposentados estrangeiros.
Em
novembro de 2014, veio ao SESC Vila Mariana o escritor português Gonçalo M.
Tavares apresentar seu novo livro, Os
velhos também querem viver. Explicando o porquê de uma adaptação do texto
de Alceste de Eurípedes aos tempos atuais, falava do crescente ódio entre
velhos e novos em Portugal, que o governo se tem esforçado por incitar de forma
a justificar a privatização da previdência social. “Apenas por vergonha os
novos não dizem que os velhos devem morrer”, dizia. Notei estranhamento e
olhares incomodados na plateia do SESC.
“Nascer
pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca
terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra;
para morrer toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer, o mundo”,
escrevia António Vieira. No país da Europa com maior número de emigrantes por
percentagem da população, o destino continua a cumprir-se. Talvez seja mesmo
vocação esotérica. Uma famosa vidente dizia que aquele território de pedras e
vento e mar é cheio de energias voláteis, pesadas e negativas que incitam à
partida e à prostração de quem fica. As análises históricas falam dum
isolamento que compeliu ao mundo. Espanha de um lado como um deserto, do outro
o mar.
“Cabo
ou rosto do Ocidente assim lavado do Oceano”, um país de vocação universal, a
cabeça de um quinto império por vir, anunciava ainda Vieira. Ou, como dizia um
dos muitos que se inspiraram nas loucas ideias do padre: “Fita, com olhar
esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado. / O rosto que fita é
Portugal”. Fernando Pessoa. Ideias que tiveram impacto durante o século XX
português.
Sabemos
que a verdade talvez seja mais simples, pura vontade de fuga, a sensação de que
tudo é impossível naquele extremo da Europa. Quem foge sabe-o bem, lamenta o
vinho e o sol, mas não quer voltar. É uma trilogia delirante – passado
grandioso, presente decadente e um futuro que virá exuberante à imagem do
passado – a obsessão nacional que pesou e continua a pesar. Como dizia
recentemente um filósofo que tem feito fama, “se o Brasil é o país do futuro
que nunca chega, Portugal vive do passado que jamais volta”.
Em
Lisboa, as seringueiras, que vejo também aqui nesta Praça Roosevelt, vão sendo
arrancadas e substituídas por espécies autóctones cujas raízes não rebentam o
chão. Um relatório de 2013 coloca Portugal como um dos 34 países da OCDE que
mais antidepressivos consomem. Dizem os especialistas que são as dificuldades
de adaptação dos portugueses, vindos recentemente de uma vida rural, à
modernidade. Serão também o milhão de retornados das ex-colónias que lamentam
desde 1974 melhores climas e abundância de empregados, e os 800 mil antigos
combatentes de uma guerra colonial que durou 10 anos e de que nunca mais se
falou e que de noite choram em silêncio nos quartos.
O
império acabou, sabemos disso, temos agora a certeza. Falta saber que não houve
império mas apenas uma enorme e irresistível vontade de fuga. António Vieira,
internado nos sertões do Brasil, sabia-o, e por isso foi brilhante – um
incontrolável desejo de fuga transformado num porvir grandioso e megalómano.
“Santo António”, dizia, “foi luz do mundo, porque foi verdadeiro Português (…)
não fora verdadeiro Português se não for a luz do mundo, porque o ser luz do
mundo nos outros homens, é só privilégio da Graça; nos Portugueses é também
obrigação da natureza”.
Do
alto desta torre da Ipiranga, a solução me parece limpa, radiosa, fácil e já em
curso. Finalmente, o futuro chegou. Libertamo-nos do passado e não o esperamos
mais. Um Inquérito à Fecundidade do INE concluía em novembro de 2013: “De três
quartos da população portuguesa não podemos esperar nascimentos nos próximos
anos”. António estava certo. Apenas duas palavras em falta em seu raciocínio.
Seremos a luz do fim do mundo.
“Cumpriu-se
o Mar, e o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!”, dizia
Pessoa. Não. Portugal cumpriu-se. Não seremos mais a cauda mas sim a cabeça ou
mesmo a coroa. A coroa de uma rainha decadente e decrépita, quase morta,
entrincheirada e asséptica, banhada em águas cheias de sangue dos que ali se
afogam em canoas a cada dia. Portugal, laboratório de extinção, ponta de lança
do fim. Uma nova megalomania que nos libertará de histórias loucas, grandiosas
e inventadas. Iluminemos o mundo sobre o resultado de longas horas de trabalho
cronometrado e a solidão de apartamentos em frente à televisão.
Do
alto da torre Vasco da Gama, o mais alto edifício de Lisboa, construído em 1998
para celebrar a grandeza passada e o novo futuro, contemplemos o estuário com
seus bandos de flamingos e cardumes de corvinas. Façamos o festim. Depois da
caçada, roendo os ossos de um desses javalis gordos que agora abundam nas
serras, mirando a oriente essa Europa de bárbaros em shopping centers, comendo hambúrgueres e filé liofilizado, rufemos
os tambores, e entoemos o poema do amigo de Pessoa que se matou com uma dose de
estricnina: “’Ganhar o pão do seu dia / Com o suor do seu rosto…’ / – Mas não
há maior desgosto / Nem há maior vilania!”. E então, talvez, num assomo de
liberdade e faísca de instinto, decidamos viver, e nos reproduzir.
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Manuel Bivar
Doutorando em história social na
UNICAMP, desde 2008 faz pesquisa sobre agricultura e história da floresta na
Guiné-Bissau.
Notas da edição
O
texto de Manuel Bivar foi escrito originalmente na revista PISEAGRAMA, nº8, em 2015: http://piseagrama.org/laboratorio-de-extincao/.
Manteve-se o registo original em português do brasil.
Imagens
Searching for Paradise, pinturas de
Shuichi Nakano. Artista japonês, vive na cidade de Yuzawa.
http://nakanoshuichi.com
Ficha Técnica
Data de
publicação: 17.07.2017