O Devir-Mundo das Práticas Menores \ Anne Querrien



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O Devir-Mundo
das Práticas Menores
Anne Querrien


São numerosos os jovens arquitectos que colocam o problema da invenção de novas práticas capazes de os levar a contornar uma encomenda agora hipotética, através da valorização de uma procura latente, ligada às necessidades das populações. A encomenda de arquitectura por parte das construtoras imobiliárias ou das instituições públicas, a pretexto de dar resposta às necessidades de alojamento, traduziu-se em programas de especulação financeira que estão em parte na origem da crise actual. Construir ou projectar nestas condições tornou-se insustentável, no sentido de não ser ecologicamente duradouro. Os arquitectos vêem-se cada vez mais confrontados com a necessidade de inflectirem as suas práticas. A arquitectura participativa das décadas passadas, que se contentava com fazer modificar na margem os programas estabelecidos pelas autoridades, não conduz a novos programas; limita-se ao comentário das instituições dominantes, baseando-se nos seus programas para se desenvolver, não abrindo novos campos de práticas.
Até mesmo quando se trata de alojar a população, esses programas são os de uma casta que associa "grandes arquitectos" e altos funcionários na repetição das mesmas atitudes paternalistas em resposta aos problemas sociais. O desenvolvimento industrial permitiu na Europa o desenvolvimento de centros de cidade, destinados ao comércio e à cultura, testemunhos de uma certa qualidade arquitectural. Na América Latina, as periferias abandonadas por esta forma de organização são ainda mais vastas. De um lado e de outro do Atlântico, o saber arquitectural, formado nas escolas e nos ateliês de arquitectura, distribui tanto o espaço da vida quotidiana como é uma referência para as pequenas empresas e para a autoconstrução. Os "grandes arquitectos" definem os espaços monumentais destinados às práticas do poder, quer se trate de os valorizar em termos espectaculares ou de os associar às necessidades fundamentais de educação e de saúde.
A juventude da democracia nos países ibero-americanos conduziu a práticas menos hierárquicas. Foi assim que, em Barcelona, a escola de arquitectura pôde propor por altura da preparação dos Jogos Olímpicos que se aproveitasse a acumulação de desenhos de praças públicas e de fantasias utópicas, realizados nos anos anteriores a partir do projecto de embelezar a cidade e de a tornar acessível a todos os cidadãos. Do mesmo modo, no Brasil o programa de urbanização das favelas rompeu provisoriamente com as formas habituais de expropriação, e comprometeu-se com um trabalho colectivo do espaço que permitia restituí-lo à população, ainda que a propriedade efectiva continuasse a ser posta em causa [1]. Mas, nos dois casos, a boa vontade não resistiu perante a avidez consentida pela organização de eventos internacionais, como as conferências do Fórum, em Barcelona, ou a organização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. A arquitectura era de novo subordinada à realização de projectos espectaculares efémeros. Os jogos das crianças ou os itinerários quotidianos são ignorados em benefício da circulação dos turistas.
E, entretanto, independentemente do brio com que o arquitecto participe na governação urbana, o fluxo crescente dos estudantes de arquitectura dificilmente encontra lugar nos quadros canónicos da profissão. Dirão alguns que isso se deve ao facto de serem demasiado numerosos. Mas a experiência mostra que se tratou antes de não terem sabido redefinir o seu espaço, potencialmente alargado pelo seu número. Nem toda a gente pode vir a ser o "grande arquitecto" em direcção ao qual a encomenda pública flui abundantemente para melhor se repetir. É necessário inventar outras práticas, encontrar outros parceiros, instaurar outras ligações com os utilizadores finais que são os moradores e os visitantes. Com o devir-menor da arquitectura aparece o carácter plural daqueles a quem ela se destina, carácter plural no tempo da frequentação, nos desempenhos esperados das construções. Este devir-menor pode tomar forma de múltiplas maneiras. Aqui abordarei o caso do Atelier d'architecture autogérée [2] e as suas experiências de organização da transição ecológica nos bairros pobres e periféricos de Paris. Poderá esta prática intervir como referência num contexto ibero-americano, transatlântico e do Sul?



Construir o programa
Foi no início da década de 1970 que se descobriu em França que, à força de se disporem a obedecer à encomenda a fim de poderem construir e ganhar mais [3], os arquitectos podiam tornar-se cúmplices de operações absurdas, quando não nocivas. Foi assim que se viram obrigados pelo Ministério da Educação Nacional [francês] a fabricar estabelecimentos de ensino secundário industrializados, que não tinham a possibilidade de beneficiar de centros de documentação ou outros equipamentos adjacentes. Do mesmo modo, alguns deles julgaram-se obrigados a fabricar hospitais psiquiátricos que se tornaram inúteis depois da rápida difusão dos medicamentos psicotrópicos e da emergência da hospitalização domiciliária. As concepções administrativas pareciam em atraso sobre o perfil profissional das práticas, ao mesmo tempo que as reivindicações sindicais das profissões se exprimiam em termos de necessidades tradicionais. Era, portanto, necessário intervir sobre o dispositivo da enunciação das necessidades, incluindo no colectivo membros do conjunto dos pessoais implicados e representantes dos utilizadores. O arquitecto já não era o decorador encarregado do "embrulho" de um programa definido e calibrado quantitativamente para o adaptar a um certo lugar. Tornava-se o agente gráfico e escritural, ao mesmo tempo que o animador de um colectivo, chamado a definir o projecto com ele: sem dúvida, num tal processo, o arquitecto não ocupa uma posição igual à dos outros actores, porque possui um saber gráfico que permite representar o espaço, oferecer ao grupo um espelho do seu pensamento, e desempenha assim um papel maiêutico essencial. Mas está, também ele, numa situação de aprendizagem, de descoberta das necessidades do grupo e do local preciso que o ocupa. Deixa de poder dispor de respostas antecipadas para tudo [4].
A escola primária e o estabelecimento de ensino secundário são programas arquitecturais comuns à França e ao mundo ibero-americano. Inácio de Loyola foi o primeiro a imaginar que, graças a dispositivos espaciais concretos, Deus poderia dirigir-se em particular a cada ser humano. As igrejas da Idade Média dirigiam-se a grupos sociais hierarquizados, que retransmitiam, cada um à sua maneira, a palavra divina [5]. Os Exercícios Espirituais propõem ao homem de espírito cultivado a forma mais desterritorializada desse dispositivo espacial: o crente, imaginando intensamente as cenas da vida de Cristo, escolhendo cuidadosamente todos os detalhes, poderá chegar a desterritorializar-se o bastante para se tornar lugar da eleição de Deus, entrar num diálogo directo consigo mesmo na presença do Senhor, e descobrir a solução dos problemas éticos ou práticos que o apoquentam. A prática mostrou que nem sequer os mais próximos de Loyola conseguiam pensar em Cristo com a intensidade e a liberdade suficientes para acederem a um tal grau de desterritorialização. Os companheiros de Inácio viram-se por isso reduzidos a mandar fabricar livros que transformassem em quadros as cenas da vida de Cristo e a organizar um ensino moral a seu propósito. Enquanto, até então, só a leitura e o canto eram ensinados na igreja, a escrita passou a ser doravante o utensílio privilegiado das escolas cristãs. A escrita que dá conta do que se observou, do que se aprendeu, mas que eventualmente abre também à prática da liberdade. Os jesuítas enviados em missão para todos os continentes recentemente descobertos têm de enviar todos os meses uma carta a Inácio, dando-lhe conta do que descobriram e dos problemas que são levados a pôr-se. Encorajados assim à curiosidade perante novas civilizações do mundo, estabelecem-se nelas e tornam-se seus dignitários. A escola de bairro ou de aldeia é a pedra sobre a qual se constrói o novo edifício espiritual. Difunde-se nas terras recentemente conquistadas tão rapidamente como nos campos da Europa, e enfrenta nelas resistências iguais ou superiores. A igreja barroca e o colégio dos jesuítas são programas arquitecturais omnipresentes na América Latina.
Em França, a Revolução, trazendo consigo uma constituição escrita e a soberania popular, conferiu à escola um novo papel: forjar o povo ainda ausente, fundir num mesmo conjunto o centro e as periferias. A escola torna-se um lugar central de cada comuna, uma marca explicitamente assinalada, deixando de se albergar em edifícios arrendados, ou recuperados, inadequados à sua função de representação da República e de formação de cada um dos seus membros. E contudo, a escola republicana instala-se nos dispositivos espaciais e pedagógicos concebidos pela escola cristã. Na sala de aula, as carteiras dos alunos são colocadas diante do mestre que se instala no plano superior do estrado, com um crucifixo ou o busto da República atrás dele - ou atrás dela, quando a escolarização passa a abranger igualmente as raparigas, cerca de um século mais tarde, na generalidade dos casos. Mas a reunião de um grupo de crianças dá lugar a numerosas outras relações, geralmente ignoradas pelo olhar do mestre, ou percepcionadas como dificuldades. Ora, é ao longo destes vectores horizontais, destes agrupamentos parciais, que vai organizar-se a aprendizagem através dos ricochetes do discurso do mestre, da formação mútua ou do treino nos expedientes improvisados. As crianças aplicam-se de modo a fazerem com que as mensagens passem ou, então, a detê-las; a sua presença activa é precisamente a condição de uma pedagogia eficaz. Certas pedagogias diferentes aperceberam-se disso mesmo e esforçaram-se por desenvolver cenários alternativos, baseados muitas vezes no funcionamento do grupo da turma em entidades mais pequenas. A sala de aula torna-se facilmente um espaço cheio de entraves e de ruído. Tal é a origem do sonho de instalações mais amplas e mais diversificadas. Ao que se opõem as condições do financiamento, uma vez que as programações centrais só podem sobreviver da reprodução das mesmas células de base. O olhar lateral dos alunos entre eles e em direcção ao mundo prolonga-se então voltando-se para os seus pais, ou para o meio no qual se enraíza a escola. Ao ligar-se ao seu meio, a escola descobre a possibilidade de novas contribuições, de novos intercâmbios. É a própria escola que acaba por se ver assim revisitada. Deixa de ser o lugar onde as crianças são postas de lado enquanto os pais trabalham, mas torna-se um lugar de aprendizagem para todos, um núcleo de formação para a aldeia e para o bairro. Entretanto, o seu invólucro arquitectural evolui, alarga-se, passa a ter aberturas que deixam passar a luz e o olhar, desenvolve-se a comunicação entre o interior e o exterior, e o programa transforma-se à imagem de um centro de desenvolvimento comunitário local [6].
Daqui resulta uma imposição maior e homogénea: a escola torna-se um lugar de articulação e de prolongamento dos elementos heterogéneos presentes no território, na aldeia ou no bairro: um lugar de cruzamento e de expressão da multiplicidade dos devires-menores com que pode deparar. É articulando-se com estes devires-menores, com as práticas singulares das crianças ou dos adultos presentes no meio circundante que a escola poderá transformar o seu contexto em meio educativo.
A arquitectura escolar pode assumir então diversas configurações, função das trajectórias que vêm atravessá-la. A escola deixa de corresponder a um modelo que se aplicaria não importa onde para obter resultados mais rápidos e menos caros. O seu programa é produzido localmente, utilizando todas as contribuições de séculos de experiência escolar, mas afastando-se dessa tradição a fim de permitir aos devires-menores que nele se cruzam não sendo capturados pela hierarquia que até hoje os conduziu à exclusão. Nesta situação, os arquitectos são responsáveis pela cartografia dos desejos e pelo fornecimento à comunidade das informações indispensáveis à possibilidade de escolher.



A construção ecológica de lugares urbanos
São raras as operações arquitecturais académicas que partem de uma imersão na quotidianidade para a construção de uma proposta pública e comum a um conjunto de moradores. A crítica arquitectural corresponde na maior parte dos casos a projectos de renovação: estes são, depois, apreciados pelos moradores em função das mudanças a que os submetem, e, de um modo geral, recusados. Numa cidade em vias de desenvolvimento, o valor monetário dos bens destruídos não pode ser suficiente para reaver o valor de uso equivalente - para já não falarmos das relações desfeitas pela mudança de local. Os promotores públicos e privados apoiam-se no fraco número dos participantes para passarem por cima destes aspectos. Asseguram-se da desmoralização dos moradores.
Para evitar esta espiral depressiva no quartier La Chapelle prometido a uma renovação completa, os fundadores do Atelier d'architecture autogérée, Constantin Petcou e Doina Petrescu, imaginaram a ideia de desenvolver num terreno vago, que a SNCF [7] deixara desocupado, uma investigação-acção sobre a iniciação dos moradores na ecologia e no desenvolvimento durável [8]. Criou-se, entre paletes de transporte de mercadorias, um grande jardim hors-sol ("fora do solo") a ser partilhado em comum; crianças e adultos tinham a possibilidade de plantar ali o que quisessem, aprendendo a respeitar-se uns aos outros. O desenho do jardim, as suas regras de funcionamento, a animação quotidiana, que seria rapidamente continuada por moradoras e moradores, conseguiram construir um corpo comum. Projecções de filmes, oficinas de bricolage, apresentações de trabalhos de artistas de toda a Europa partilhando a mesma problemática, permitiram soldar uma comunidade multicultural, empenhada no trabalho de construção comum através do desenho generoso dos espaços. Quando a renovação começou, foi possível negociar uma continuação do jardim partilhado pelos moradores com a municipalidade de Paris. A acção fez com que emergissem no bairro alguns líderes, sobretudo mulheres, e uma preocupação com os jardins que a municipalidade retomou por sua conta no programa da renovação.
A acção foi de tal modo exemplar que Paris-Habitat, a principal organização de alojamento social da cidade de Paris, propôs ao Atelier d'architecture autogérée fazer cultivar por meio da sua metodologia uma faixa de terreno árido entre dois prédios, precisamente diante do maior complexo de habitação social de Paris, a ser objecto de renovação próxima. A terra pedregosa do número 56 da rue Saint Blaise encontrou-se em breve coberta de plantações, ao mesmo tempo que se desenvolveram diversas actividades colectivas para os moradores do bairro. Ao contrário das intervenções artísticas que tinham tentado pontualmente despertar a consciência cívica dos moradores, "o 56" transformou-se numa instalação duradoura, num pequeno espaço de demonstração das técnicas ecológicas em Paris: fossas secas, painéis solares, utilização das águas da chuva. Uma instalação fora do solo (hors-sol) pode funcionar de maneira autónoma sem ligação às grandes redes: prova da possibilidade de numerosas outras instalações posteriores. Em termos muito concretos, os princípios de base da ecologia são instaurados numa instalação aberta: um "salão de verdura" num bairro popular. Com efeito, "o 56" não é simplesmente uma montra técnica da ecologia urbana: é um local de debates, sob o nome de Laboratório de Urbanismo Participativo (Laboratoire d'urbanisme participatif) que reflecte em termos abertos e públicos sobre as experiências de construção ecológica ou de Land Art na Europa. Também aí a gestão do local é progressivamente confiada a uma associação de moradores-jardineiros, principalmente jardineiras, que se encarrega da animação do terreno enquanto os arquitectos se retiram parcialmente para desenvolverem o seu projecto noutros espaços [9].
Alguns representantes eleitos de Colombes, uma cidade da periferia noroeste de Paris, foram convidados a visitar o 56 por um morador-jardineiro. Convenceram o maire da comuna a retomar o projecto de uma formação dos moradores em conversão ecológica no quadro de um projecto intitulado R-Urban [10]. Três domínios de trabalho começam a ser explorados nos terrenos deixados por cultivar: agricultura urbana com os moradores das habitações sociais vizinhas; uma galeria de fabrico, exposição e venda de objectos produzidos a partir de materiais reciclados; um habitat cooperativo autogerido. Há também aqui um processo associativo de produção de ideias a partir dos moradores, confrontados com animadores de investigações nestes domínios, chegados de todas as partes do mundo. Colombes torna-se o núcleo de uma exploração de referências e de práticas que garantem um futuro apesar da crise. Na arquitectura passam a participar a agricultura, a economia, a sociologia, a escultura, a land art, num novo processo de fabricação do quotidiano.



Um diálogo a abrir com o Sul
A arquitectura autogerida é solicitada a integrar-se no modelo dominante como um seu enésimo caso, através de numerosas formas de reconhecimento internacional, prémios, artigos pedidos… Mas a força de ruptura de uma proposta semelhante, hoje confinada a espaços dedicados à economia social e solidária, é ampliada e reencaminhada pelo projecto artístico e político de Doina Petrescu e Constantin Petcou, visando criticar no plano dos actos tanto o capitalismo como o "socialismo real" que ambos viveram durante a sua juventude na Roménia. Trata-se, para começar, de abrir espaços de liberdade, de criar um comum vivo, antes de dar resposta aos novos imperativos da arquitectura ecológica. Em França, este projecto é um projecto singular - apesar de fazer escola, no sentido em que numerosos estagiários chegam para participar nele, e, sobretudo, apesar de, quando os terrenos envolvidos logram alargar-se, não estarmos ainda perante uma prática colectiva que transborde os quadros sucessivos que o viram nascer.
O interesse por esta experiência vem actualmente sobretudo do Norte, de investigadores e artistas que tentam também uma crítica através da land art ou da instalação de dispositivos ecológicos. Estas conexões são facilitadas pelos financiamentos europeus [11], enquanto as cooperações com o Sul são apoiadas sobretudo quando envolvem instituições já muito reconhecidas. Esta cooperação europeia acarreta uma funcionalização da proposta, permitida também pelo carácter relativamente homogéneo da população a que se dirige: as classes médias pobres das periferias urbanas, que descobrem assim novos meios para a sua busca de responsabilidade social.
O dinamismo das regiões do Sul é sustentado, em contrapartida, pela mestiçagem das populações, a fusão das vagas sucessivas de imigrantes (colonizadores portugueses e espanhóis, escravos negros, operários agrícolas e trabalhadores fabris europeus, judeus fugindo ao anti-semitismo, árabes fugindo ao islamismo, e outros grupos). Fazendo do lugar alternativo (l'ailleurs) marcado pela presença índia, ainda que fortemente exterminada, o crisol dos seus novos sonhos, os povos da América Latina lançaram os alicerces de novas construções culturais [12]. Como pode fazer arquitectura esta civilização em fuga e, depois, em reconstrução? Fez já a uma música que desenvolve as suas linhas de fuga, dos ritmos africanos às elaborações contemporâneas, passando pelas melodias espanholas [13]. Entre as igrejas barrocas, o modernismo arquitectural e a floresta, que será possível tecer? O espaço das favelas é, no essencial, um espaço de habitat, privado; mas, nesse espaço, a rua é muito frequentada e muitas vezes ocupada; a decoração apodera-se dos muros, multiplicam-se as iniciativas teatrais. Precisa-se um renascimento, que os poderes municipais se apressam, de resto, a enquadrar em renovações urbanas que, há vinte anos, seriam inconcebíveis, como aconteceu no caso de Medellin [14].
As culturas do Sul alimentam uma relação com o outro a que os escritores e artistas brasileiros, na esteira de Oswald de Andrade, chamaram antropófaga, consistindo em se apropriar do que o outro tem de melhor, em assimilá-lo a fim de se transformarem. Acolher a arquitectura europeia tal como esta é deixa de ser recomendável nesta nova produção. E para tal é já necessário escapar aos programas monumentais e aos modelos. Trata-se de desenvolver no espaço público pequenas intervenções no limite da arte contemporânea, da performance e da arquitectura, de fabricar uma arquitectura da rua, que se desenvolva nos interstícios da cidade, e que não se autorize senão da sua própria iniciativa - uma arquitectura que poderíamos dizer autogerida, mais centrada na ecologia e na formação dos habitantes.
Enquanto o Sul ofereceu durante muito tempo a imagem do sofrimento humano, pontuada por alguns focos de resistência que a atenuavam, a sua potência recente em termos de desenvolvimento económico revela nele uma diversidade infinita e a capacidade de estabelecer o diálogo entre os saberes, de deslocar as linhas. A este apelo, as experiências do Norte respondem por meio da crítica da pretensão das disciplinas à hegemonia e a profusão das experimentações. Mas a proliferação é impedida pelas vontades de controlo e pelas crispações repetitivas que persistem. A convergência das emergências [15] prepara-se lentamente, numa dispersão completa das suas manifestações. Assistimos a uma nova crioulização do mundo, a uma hibridação, que reemerge a partir do Sul e prepara o advento do mundo-todo (tout-monde) [16] cantado por Edouard Glissant [17].
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Referências
1. Cf. Paola Berenstein-Jacques, Les favelas de Rio. Un enjeu culturel, L'Harmattan, Paris, 2011.
2. www.urban-tactics.org. Ou "atelier de arquitectura autogerida". A associação foi fundada em 2001, e visa elaborar estratégias alternativas de regeneração urbana, tendo em conta as transformações e tendências emergentes que se observam na cidade contemporânea. Coma sua perspectiva, "ao mesmo tempo política e poética", autogestionária e de reinvenção do espaço público e comum, é também um projecto interdisciplinar, tanto no plano da investigação como da acção, e reúne, por isso, membros de formação diversa (arquitectos, urbanistas, paisagistas, sociólogos, artistas, etc.) e os residentes da área de intervenção (N.T.).
3. Revista Recherches, Architecture, programmation et psychiatrie, 1967.
4. Félix Guattari, Lignes de fuite. Pour un autre monde de possibles, Éditions de l'Aube, La Tour d'Aygues, 2011.
5. Erwin Panofsky, Architecture gothique et pensée scolastique, Editions de Minuit, Paris, 1967.
6. Anne Querrien, L'école mutuelle, une pédagogie trop efficace?, Les empêcheurs de penser en rond, Paris, 2004; Julien Pallota, L´école mutuelle, au-delà de Foucault, Bibliothèque de philosophie sociale et politique, Paris, 2012.
7. Ou Société nationale des chemins de fer - companhia nacional dos caminhos-de-ferro franceses (N. T.).
8. Multitudes, nº 20, Constantin Petcou e Doina Petrescu, Au rez de chaussé de la ville, Amsterdam, Paris, 2005, e idem, nº 31, DP e CP (orgs.), Une micropolitique de la ville: l'agir urbain, Amsterdam, Paris, Janeiro de 2008; AAA, Practices, Data and Texts, 2007.
10.R-URBAN: estratégias participativas de desenvolvimento, práticas e redes de resiliência locais: http://www.urbantactics.org/projectsf/rurban/rurban.html
11. Rhyzom, Cultural Practices Within and Across, AAA, Paris, 2010.
12. Multitudes, nº 35, Amérique Latine, Amsterdam, Paris, 2009.
13. Michel Plisson, Le tango, du noir au blanc, Actes Sud, Aix en Provence, 2004.
15. Boaventura de Sousa Santos, "Épistémologies du Sud", Etudes rurales, nº 187, Ecoles des hautes études en sciences sociales, Paris, 2011.
16. Termo que condensa e reitera a ideia de uma "mundialidade" (mondialité) alternativa proposta por Glissant (N.T.).
17. Edouard Glissant, Traité du tout-monde. Poétique, Gallimard, Paris, 2011.
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Imagens
1,2,3. Le 56. Eco-interstice, Atelier d’ architecture autogérée (urban tactics), 2006, Paris.
4. R-URBAN, Atelier d’ architecture autogérée (urban tactics), Colombes.
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Nota de edição
Este artigo faz parte do Dossier «Devir menor» coordenado por Susana Caló e publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista Lugar Comum, 41, Brasil, Universidade Nômade.
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Anne Querrien
Nasceu em 1945, é uma socióloga e urbanista francesa. As suas pesquisas situam-se sobre as políticas da cidade e da habitação social, mas também sobre a escola como «espaço a libertar». É co-directora da revista Multitudes.