Arquitectura Popular Urbana / Mónica Loureiro

 

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Arquitectura Popular Urbana
Apontamentos para uma proposta
em torno da construção espontânea


Tendemos a definir, de forma por vezes até romântica, a arquitectura não erudita, que aceitamos como herança cultural de tempos antigos, como vernacular ou popular. As manifestações similares que se dão na contemporaneidade, sobretudo em contexto urbano, que poderíamos identificar como processos espontâneos de produção, são genericamente denominados como construção clandestina, lugar-comum dado à arquitectura sem arquitecto.1
Que possibilidade resta para encarar a construção clandestina como arquitectura popular, ou melhor, como uma derivação contemporânea desta?
Certamente esta afirmação vem estabelecer um compromisso. De certa forma, tomando consciência do problema nestes termos, vemo-nos forçados a agir. Reconhecemos que se trata de um acto ilegal, por demais evidente, por não encontrar hospitalidade nas leis dos Estados. Recusamos no entanto a tomar a questão como um manifesto ou reivindicação exclusivamente política, este é uma questão transversal. Vemo-la como arquitectos. Colocamos de novo a questão: que compromisso podemos estabelecer perante a denominada construção clandestina?
Abordamos o problema na sua complexa heterogeneidade apenas tocando pontos dispersos da sua geografia. Procuramos estruturar um conjunto de premissas, de reconhecimento e de formação da possibilidade da reconstrução popular enquanto processo de reabilitação urbana viável e, em certos casos, o único possível. Trata-se de uma tomada de posição, uma resistência face a uma lógica homogeneizadora de fazer cidade; aqui se postula a urgência de tomar o habitante e o cidadão no centro do processo. Face a tal urgência tomamos a reconstrução popular, as intervenções sobre o espaço da casa que efectivamente formalizam essa emancipação do habitante como ponto de partida para reequacionar formas mais justas de habitar a cidade.
Não pretendemos aqui defender a construção ilegal em si. Não pretendemos igualmente defendê-la na sua vulnerabilidade. Antes procuramos a sua validação naquilo que tem de qualidade, de carácter, de adaptado e de viável. A arquitectura clandestina que aqui pretendemos referir manifesta-se de múltiplas formas, desde as instalações provisórias de sem-abrigo às acções reabilitação urbana, passando pelo realojamento. Nomeá-las não produz qualquer efeito, registe-se, mas saber desta amplitude permite-nos definir um campo de intenções e de actuações mais precisas para que daí resultem propostas informadas e viáveis. Reconhecemos a sua existência e reclamamos um olhar atento perante a arquitectura sem arquitectos, inquérito à sua clandestinidade. Estes processos de construção são muitas vezes a forma mais justa – e a única possível – dos habitantes melhorarem ou manterem as suas existências, enfrentando, além de todas as condicionantes que os votam à condição de ‘ilegais’, a resistência e oposição da parte pública, que quando não se limita a desintegrar estas realizações para promover o realojamento em condições desagregadoras e equivocadas promove formas e processos de ‘reabilitação’ insólitos.
Em muitos casos, a evolução e as estratégias empregadas nestas construções contribuem para a criação de modelos de referência, seja pela optimização do espaço numa lógica de ocupação faseada, pela diversidade na habitação segundo uma lógica evolutiva ou pela exploração tecnológica de materiais e sistemas construtivos. Este reconhecimento, o estudo deste modelos, a sua divulgação e aplicação em outros contextos é contributo que a comunidade, em várias frentes, tem vindo a fazer. Propomos extrair deste (re)conhecimento meios para uma estratégia de validação do que podemos chamar Arquitectura Popular Urbana.
Algumas frentes:
Reabilitação Urbana: A permanência da matéria que dá continuidade aos espaços que herdamos e habitamos exige manutenção e reabilitação. Nem sempre dispomos dos meios necessários para que se mantenham dignamente. Se um dos problemas do centro histórico é a inadaptação das casas aos novos usos, às exigências dos novos habitantes, se os novos habitantes são cada vez mais de posses escassas, uma forma de conhecer as possibilidades que as casas permitem é visitar as que se encontram ocupadas, porque esta população é de hoje, tem as exigências de hoje. As suas formas de ocupação são inventivas e adaptadas, integradas enquanto parceiros nos processos de reabilitação informariam certamente mais e melhor propostas futuras.
Autoconstrução: A iniciativa dos autoconstrutores, mais ou menos pobres, que fintam a legislação por não se enquadrarem nos padrões de produção requer atenção, pois simultaneamente nos dá notícia da desadequação do mercado face aos anseios e/ou possibilidades dos habitantes e da inventividade ou intuição arquitectónica do homem. Os padrões são normalmente cativos de lógicas de mercado, essa é a sua finalidade, constituírem um produto. Não serão, por certo, consensuais entre a comunidade de técnicos que lhes é afecta. Não consensual por entre os técnicos será também o resultado da autoconstrução, talvez nesta extensão se estabeleça a possibilidade de um contributo efectivo com uma visão mais lata e informada sobre estes processos.
Expansão/Transformação: Habitar é uma condição da vida. A construção desse território constitui em si um processo dinâmico e muitas vezes se estabelece numa relação oficinal entre o homem e a casa. As intervenções no espaço doméstico em jeito de bricolage são recorrentes e uma possível via de transformação do espaço naquilo que ele tem de resposta às expectativas e mutantes necessidades dos seus habitantes.
É certo que a preparação de uma proposta concreta que viabilize as frentes de actuação naquilo que podemos chamar de Arquitectura Popular Urbana irá certamente revelar-se um processo complexo e que deverá exigir uma ampla rede de colaboração. É certo também que a construção clandestina é uma questão que diz respeito a grande parte das cidades actuais e que o seu histórico é já demasiado longo.

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Notas bibliográficas
[1] Em descrição de candidatura ao Prémio Miguel Portas 2013 do projeto ‘O Doméstico Saiu à Rua’ desenvolvido por Mónica Loureiro, João Gaspar e Paulo Pimenta.
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Fotografia
Paulo Pimenta
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Mónica Loureiro é mestranda na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, ao abrigo de um protocolo de mobilidade frequentou durante um ano a Faculdade de Arquitectura e Planeamento Físico da Universidade Eduardo Mondlane em Maputo. Foi co-autora do projecto O Doméstico Saiu à Rua no âmbito Manobras no Porto’2012.