PROFANAÇÃO E VANDALISMO | godofredo pereira




Godofredo Nobre
PROFANAÇÃO
E
VANDALISMO
Sobre o acaso na vida dos monumentos

Monumentos
Foi recentemente transformada em condomínio de luxo a antiga sede da PIDE-DGS em Lisboa. No decurso das modificações a placa comemorativa existente foi recolocada numa zona menos visível, certamente para não prejudicar a boa imagem do edifício, um prédio que não chegou a ser monumento na revolução e que seguindo a sua vida se deixou profanar pelo mercado imobiliário. Perante tal afronta à memória do fascismo e da opressão, mas sem a capacidade de adquirir o edifício para o transformar  num monumento – ou porque ele já é um monumento ao neo-liberalismo – a questão que sobrou foi a de saber onde recolocar a placa comemorativa existente. Pelo meio e como seria de esperar tanto a placa como a fachada do edifício foram vandalizadas. Honra aos Heróis, dizia. Depois de muita discussão restou à Câmara Municipal fazer uma nova placa inaugurada com pompa e circunstância. Dois monumentos num só, ditou o acaso algo que decerto o projectista original nunca imaginou.

Firmitas
Na relação da arquitectura com o acaso ganham relevo duas afirmações concorrentes: 1) se a arquitectura não pensa na sorte é porque pensa não depender dela e 2) se a arquitectura pensa na sorte é porque deseja controlar o acaso. A primeira afirmação é confirmada pelo ideal da estabilidade Vitruviana: Firmitas não se refere apenas a uma estabilidade ou firmeza do construído, mas à sua necessária permanência ao longo do tempo enquanto permanência daquilo que é estabelecido pela arquitectura em si. O melhor exemplo deste desejo de inscrição são os monumentos, edificações com uma função de uso cerimonial, construção de peças representativas que supostamente falam para todo o sempre. E se estender este pressuposto específico dos monumentos a toda a outra arquitectura é debatível, já questionar até que ponto é que mesmo no desenho de monumentos a arquitectura cumpre este desígnio de permanência parece-nos mais relevante. Para iluminar esta questão teremos de indagar sobre o que se entende ser o objecto (propósito) da arquitectura.
Se nos estivermos a referir à organização e disposição de materiais com dimensões específicas, então talvez possamos dizer que este objecto monumental permanece tal como as pirâmides ou os templos Gregos. Mas é sabido que o objecto arquitectónico não é exactamente a mesma coisa que o objecto da arquitectura, assumindo-se em geral que este é de facto o projecto: investido de ideias e funções, ideológico, simbólico e representativo (mesmo quando tenta não o ser). Enquanto projecto o objecto da arquitectura será então o planificar de uma construção de acordo com certos pressupostos ideológicos, uma definição que se enquadra bem com o que nos fornece a história da arquitectura: o monumento concretiza o projecto. Mas por outro lado temos também a inscrição do objecto no mundo, aberta à vida e à transformação, em que se passa de objecto acabado de construir (mundo perfeito) a objecto vivo, selvagem e alheio às maquinações do arquitecto. Apesar de não ser objectual, não poderá também esta dimensão almejar ao título de objecto da arquitectura? E se sim, poder-se-á afirmar que a arquitectura possui dois objectos de estudo, a saber, o objecto projectual e o seu devir-mundo?
O problema não se põe. Simplesmente porque desde há muito que a escolha foi feita: é que a arquitectura, mesmo aquela que não almeja à monumentalidade, não quer geralmente ter nada que ver com vida, mas apenas com morte e perfeição, o que talvez explique um maior interesse na petrificação do projecto do que nas suas eventuais mutações. E porquê? Talvez porque nesta diferença entre o projecto e a sua vida edificada se interpõe uma figura que impõe a separação dos dois tempos, isto é, a figura do acaso.
Assim sendo, a segunda afirmação que avançamos parece ser a mais correcta: a arquitectura pensa na sorte quando se deixa levar pela angústia de controlo que a todo o custo se recusa a aceitar o devir da própria arquitectura. Quando os imprevistos usos e transformações do edificado são descritos em termos de sorte ou azar, é sinal que se dá prioridade ao objecto projectual e por isso mesmo aí se espeta a primeira faca à arquitectura e à sua vida.

Também tu, Brutus!
Brutus aqui é o arquivo, essa tentativa de matar a arquitectura (fala-se exclusivamente do projecto e não do edifício). O arquivo é, como observa Kent Kleinman em Archiving Architecture [i] um suplemento de qualidades que a obra construída necessariamente não terá (originalidade, estabilidade, permanência) e vive precisamente desta separação forçada entre projecto-ideia e obra-viva. O arquivo insiste nesta separação segundo a assunção de que a arquitectura está no projecto e o resto é obra do acaso, tentando passar a ideia de que o que se observa no projecto se observa no edificado: “O arquivo deve ser mais precisamente descrito como uma máquina para esquecer que os projectos arquitectónicos são ontologicamente distintos das suas representações”. Só que fatidicamente o grande perigo espreita e as traças comem os livros.
De facto o projecto enquanto objecto de arquivo ou de referência sofre também aí as necessárias vicissitudes da passagem do tempo, sob a forma da sua integração compulsiva em novas genealogias ou interpretações históricas. Ou seja, estamos perante um problema bem mais simples: ignora-se voluntariamente o acaso da arquitectura porque se sabe não o poder evitar, e busca-se o refúgio do arquivo como se este estivesse protegido da intempérie, oferecendo mais que uma protecção ilusória.
Mas há quem vá mais longe e decida não só arquivar o projecto como arquivar o próprio edifício. O caso da Villa Muller é exemplar: na vontade de restaurar o projecto original de acordo com os desenhos e ideias de Loos, foram retiradas as camadas de tinta que escondiam as cores originais, foram retiradas mobílias não originais, a casa foi limpa até ao seu passado-ideal, passado esse que pouco mais foi que o projecto. É patente o terror inerente à defesa do monumento, o terror ao mundano, que contra a vida vivida da arquitectura transforma o objecto numa obra de arte, intocável. Por isso, a recuperação da casa Müller (como a de tantas outras) é de facto profundamente anti-arquitectónica, e ainda mais se vista à luz das posições do próprio Loos. E o que é ainda mais curioso é que numa época em que se assume que os arquitectos já não constroem monumentalmente se continuem a produzir monumentos em todo o lado: monumentos às instituições, ao passado histórico, ao pensamento, à revolução, à cultura, à arquitectura, etc.
O restauro da Villa Müller foi confirmado pelo arquivo dos seus desenhos originais e fotografias existentes. Mas restaurando-a o edifício deixa de ser arquitectura e passa a ser um arquivo construído. Como tal não pode ser tocado, transforma-se num monumento, uma imagem do auto-imaginar-se da sociedade. Assim, quando o arquivo não chega, mata-se o próprio edifício. Tudo para que o mundano acaso não profane ou vandalize a bela imagem que queremos da arquitectura.

Profanação
Mas passemos para o mundano, pois se nos debruçarmos sobre essa segunda vida do objecto verificamos que o acaso não é assim tão simples.
A profanação do objecto arquitectónico significa segundo Agamben, a sua devolução ao comum, ao espaço mundano, agora fora do dispositivo de poder que o inscreve: “Uma vez profanado, aquilo que estava indisponível e separado perde a sua aura e é devolvido ao uso” [ii]. Se usarmos o exemplo da arquitectura portuguesa do Estado Novo – que melhor exemplo se pode pedir para uma arquitectura que inscreve determinadas formas de poder pastoral na identidade colectiva de uma nação – então teremos como exemplo de profanação o Tribunal transformado em padaria, os Correios em discoteca ou o Portugal dos Pequeninos em loja de conveniência. Claro que muitas vezes tal não acontece – ou acontece menos vezes do que seria desejável – o que pode indicar problemas nesta ideia. Mas profanar significa retirar ao sagrado. Ora devemos começar por reparar que no que respeita à arquitectura, o sagrado é aquilo que é determinado pela ideia-função e cristalizado na sua representação ‘parlante’. O sagrado remete não só para um espaço religioso ou legal, mas principalmente para a sua cristalização projectual enquanto tal. Trata-se aqui da arquitectura enquanto produção de sagrado e ela mesma produção sagrada. Assim os espaços sagrados da arquitectura são todos aqueles determinados para um ritual específico, desenhados para cumprir a inscrição na terra do sagrado (a Ideia). Dito de outra forma, são todos aqueles passíveis de serem profanados. Mas assim sendo temos que esta organização de poder pelo objecto não é exclusiva da arquitectura de estado ou arquitectura de excepção, mas sim estranhamente inerente à própria ideia de arquitectura. Aliás, verificamos que na maioria dos casos o objecto arquitectónico é o palco de constantes profanações, constantes re-usos e adaptações, frutos da ocasião e das circunstâncias, ou para seguir a linha deste ensaio, do acaso. A profanação trata então da definição de limiares a partir dos quais se considera que o edifício está a ser desvirtuado, limiares a partir dos quais em certos casos se pode recorrer a mecanismos legais disponíveis para intervir e repor a ordem. E principalmente a profanação força o constatar da irremediável distância entre o ideal projectado e o real vivido e necessariamente transformado.

Vandalização
Por vezes, a profanação não é apenas fruto do quotidiano e das suas preocupações terrenas, mas de um acto deliberado contra a imagem do objecto edificado. Este acto que pelo objecto (ou sobre ele) visa produzir um determinado efeito político, indica que se é possível passar do sagrado ao profano, então também é possível o seu oposto, a passagem do profano para o sagrado. A esta acção daremos, à falta de melhor, o nome de vandalização.
O acto de vandalismo parte do princípio de que a separação entre sagrado e profano, entre poder e viver (ou entre o poder inscrito no projecto e a selvajaria mundana do edificado) não é mais que uma fabricação, uma manobra que esconde o real poder do edifício e que esconde a verdade da arquitectura. Vandaliza-se porque vale a pena vandalizar, porque o edifício representa algo. O muro da universidade é um monumento ao poder instituído, a capela em desuso é de facto a manifestação de uma instituição conservadora, a vandalização de uma fachada vai decerto enfurecer os apoiantes do partido politico adversário, etc. A vandalização é portanto um momento de ataque ao profano (ataque ao edifício que finge ser profano) mostrando que ele é profundamente sagrado, trazendo ao de cima o monumento totémico que se esconde na rotina da vida quotidiana e mundana. O escritor Robert Musil indicava num texto sobre monumentos desconfiar da sua “suspeita inconspicuidade”. A suspeita inconspicuidade dos monumentos é a sua capacidade para passarem despercebidos quando reduzidos a fundos, perdidos no dia-a-dia dos hábitos até que alguém os retire a essa invisibilidade. E ao tentar ser iconoclasta, a vandalização pressupõe que para os outros existe ali um tabu e reinveste totemicamente o edifício, conferindo-lhe a capacidade para articular e dar visibilidade a uma luta de poder que necessariamente o ultrapassa: expõe o sagrado, torna-o visível e ao mesmo tempo duplica o seu poder. A vandalização pressupõe que ao atacar a fachada se ataca simultaneamente a ideia que está expressa na fachada. E pressupõe que alguém se importa (e de facto há sempre alguém que se importa...).
Assim, se a profanação parece marcar uma diferença ontológica inscrita nos próprios fundamentos da prática da arquitectura entre o projecto do objecto e a vida do objecto - i.e. duas arquitecturas - já a vandalização através da sua acção sacrificial, nunca remete para o profano, mas sempre para o sagrado. Só que é precisamente por este estar no mundo que a vandalização é capaz de devolver ao objecto mundano o seu carácter ideal e que assim o ressuscita da morte.
E é este momento de encantamento que se torna decisivo. No momento da vandalização, a separação entre sagrado e profano colapsa e edifício, uso e simbologia, recuperam uma co-imanência que lhes escapa desde que se transmutaram de projecto em obra, e que no fundo opera a união, o encontro ainda que momentâneo entre essas duas vidas da arquitectura, a vida ideal, projectada, e a vida real mundana e conflitual. A vandalização desenterra a Ideia para monumentalizar a terrível realidade que se esconde no profano.

Animismo
Temos portanto que entre estas duas vertentes da arquitectura, ou entre os seus dois objectos existem múltiplas relações, de apropriação, de profanação, de violência, passando do simbólico ao profano, do usual ao monumental, movimentos que reflectem as lutas de poder em torno ao edificado ou fazendo uso do edificado. Para além de Kleinmen, diremos finalmente que não se trata tanto ou simplesmente de uma separação ontológica, mas de duas linhas de vida que casualmente se cruzam e voltam a separar, produzindo-se momentos de transferência entre elas, forçados pelos variados encantamentos mágicos do edifício e do projecto e pelas igualmente feiticistas tentativas de os desmascarar. Assim sendo o objecto da arquitectura não será mais do que a tentativa de ter pulso nesta relação entre inscrição e transformação ou entre morte e vida.
Afinal, o problema é que a monumentalidade – que é normalmente identificada com o simbolismo clássico – não advém simplesmente de uma decisão de construir monumentalmente, isto é, de seguir uma certa forma de projectar, mas principalmente de circunstâncias imprevisíveis ditadas pelo acontecer da arquitectura, que resultam no edifício tornado monumento. Ora dá-se o caso deste processo poder cristalizar para a história da arquitectura uma organização espacial e uma linguagem formal que se baseou precisamente na ideia de anti-monumentalidade. E aí produz-se o léxico de uma nova monumentalidade, isto é, de uma nova forma de representar e fazer ver pela arquitectura. Diria Benjamin que é aura que está em jogo, diremos nós que a angústia contra o acaso que parece animar os delírios de controlo do arquitecto resulta da incapacidade de aceitar o carácter totémico e feiticista do objecto arquitectónico. E que é essa capacidade de descobrir poderes ocultos e uma espécie de alma vivente na matéria inanimada que faz a vida da arquitectura.



REFERÊNCIAS
[i] Kent Kleinmen, Archiving Architecture, (in Blouin, Francis X., Rosenberg, William G., Archives, documentation, and institutions of social memory: essays from the Sawyer Seminar, University of Michigan Press, 2006, pp. 54-60).
[ii] Giorgio Agamben, Profanations, Zone Books, NY, 2007, pp. 73-92.

IMAGENS
1 - 'Honra aos Heróis', grafitti na fachada da antiga sede da PIDE-DGS em Lisboa, antes de serem iniciadas as obras para a sua transformação em condomínio de luxo. Foto autor desconhecido.
2 - Interior do palácio Al Faw ocupado pelo exército Americano, Iraque, Foto Richard Mosse, série 'Breach', 2009.


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GODOFREDO PEREIRA (Porto, 1979)
Arquitecto pela FAUP. Mestrado AVATAR, pela Bartlett School of Architecture. Desenvolve tese de doutoramento sobre ‘Feiticismo e Política Mágica dos Monumentos’, no Centre for Research Architecture, Goldsmiths University, Londres, com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia. É co-editor da DETRITOS (http://www.revistadetritos.com) e lecciona na Bartlett School of Architecture, Londres.


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