caderno #11 • A questão da habitação
Em
1845, o ainda jovem Friedrich Engels publicou A Situação da Classe
Trabalhadora em Inglaterra. [1] Na época, foi
um trabalho sem paralelo, resultado de observações minuciosas por cidades como
Manchester e Leeds, denunciando não apenas as condições miseráveis em que
viviam os operários das fábricas inglesas mas a miséria moral da própria
burguesia, incapaz de se confrontar com uma questão que era, na verdade,
estrutural do seu processo de ascensão social. Mais tarde, em 1872, Engels
publicou um outro livro que reuniu três textos (e um prefácio) e onde procurou
sintetizar e denunciar os termos contraditórios e paradoxais em que a «questão
da habitação» parecia revolver. [2] Fundamentalmente,
Engels reuniu três argumentos.
1. Friedrich Engels, A Situação da Classe
Trabalhadora em Inglaterra, Porto, Afrontamento, 1975 (1845).
2. Embora a versão consultada tenha sido
Friedrich Engels, «O Problema da Habitação», Lisboa, Editorial Estampa, 1975,
considera-se que a tradução mais correcta do original alemão «Zur
Wohnungsfrage» seja «Para a Questão da Habitação», usada em publicações de
referência como, por exemplo, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras
Escolhidas, Lisboa/Moscovo, Edições Avante!/Edições Progresso, 1982.
O
primeiro argumento — corolário da posição de Engels — era que as más condições
de alojamento da classe trabalhadora não eram uma particularidade do momento,
mas uma constante na longa história da dominação; era apenas um mal,
entre tantos outros, que resultava fundamentalmente do modo de produção
capitalista. O que estava em causa não era, portanto, a habitação per se,
mas a exploração da classe trabalhadora. Para pôr um ponto final na crise da
habitação, só haveria um meio: eliminar o sistema de exploração e opressão da
classe trabalhadora pela classe dominante. O problema estava menos na
radicalidade da afirmação de Engels e mais na capacidade dessa afirmação para
situar a «questão da habitação» num quadro ideológico mais abrangente. Para
Engels, era claro que a habitação, sob o capitalismo, era uma mercadoria
sujeita às leis do mercado. Engels antecipou, e isso é relevante, as
dificuldades dos Estados em resolver a carência de alojamento: quer pelos
elevados custos que as expropriações exigem, quer pelas dificuldades de
estimular, através da legislação, o interesse dos privados na construção de
habitação acessível a todos.
O
segundo argumento — consentâneo com o primeiro — criticava de forma veemente
todas as iniciativas reformistas de tom proudhoniano [3] que defendiam a
propriedade individual como solução, mas que, na verdade, não faziam mais que
transformar o trabalhador num pequeno proprietário, prendendo-o a uma dívida que jamais
conseguiria pagar. A crítica a esse
reformismo estendia‑ se à retórica pastoral e ruralista que via a casa
própria como elemento de estabilização, leia‑se de
disciplina, das classes trabalhadoras. Para Engels, a estratégia de Proudhon procurava manter o cordão umbilical que
ligava o trabalhador à terra, com a mais-valia de
permitir nivelar salários baixos, ao
pôr no proletariado o ónus da sua
subsistência, uma vez que tinha também de cultivar a sua pequena horta. Tratava-se de um reformismo que procurava
bloquear o potencial revolucionário do operário «desenraizado», para o manter
numa espécie de limiar de subsistência mínima, debaixo de um sistema instituído
de exploração. Também aqui a história foi dando razão a Engels quanto aos
limites dos paliativos reformistas.
3. O primeiro
capítulo de Engels é totalmente dedicado a refutar os argumentos de
Pierre-Joseph Proudhon, filósofo, político e auto-intitulado anarquista que em
1840 escreveu um texto célebre intitulado O Que É a Propriedade? Se, por
um lado, Proudhon gozava de grande popularidade entre a classe trabalhadora,
por outro, os seus argumentos foram rapidamente apropriados pelos reformistas
burgueses oitocentistas. O debate entre Marx, Engels e Proudhon é essencial
para compreender o movimento revolucionário e as suas cisões e divergências ao longo
dos séculos XIX e XX.
O
terceiro argumento criticava genericamente o modo como a burguesia ia
solucionando a «questão da habitação». Já em 1845, Engels observava como em
Manchester era possível entrar e sair da cidade sem ter nenhum contacto com as
extensas zonas de habitação operária. Para Engels, mais do que um acaso, isso
demonstrava uma estratégia de dissimulação e segregação da classe trabalhadora
comum a várias cidades. A tentativa de ocultar a miséria do proletariado era a
tentativa, por parte da burguesia, de dissimular os fundamentos da sua própria
ascensão e os efeitos da sua exploração. Mas também um modo de controlar e
segmentar o proletariado, de o arregimentar a um certo espaço‑tempo, entre casa e fábrica. Por outro lado, perante os problemas incomportáveis de insalubridade que começavam a ameaçar a própria burguesia,
essas estratégias não faziam mais do que deslocar os problemas para
outras partes da cidade. [4] O expoente máximo dessa estratégia era,
para Engels, o barão Haussmann. Do outro lado da retórica e do esplendor dos boulevards
parisienses, erigidos sobre as antigas ruelas medievais, estavam os novos
becos, as novas áreas de insalubridade e de miséria, crescendo nos arredores de
Paris. Das ruelas medievais aos banlieues parisienses, a história parece
repetir‑ se sempre: uma vez como tragédia e a
outra como farsa. [5]
4. «Aí temos um
exemplo impressionante da maneira como a burguesia resolve na prática o
problema da habitação. Os focos de epidemias, as caves imundas, nas quais noite
após noite o modo de produção capitalista encerra os nossos trabalhadores, não
são eliminados, mas sim… deslocados!» Friedrich Engels, O Problema da
Habitação, Lisboa, Editorial Estampa, 1975 (1872), p. 77.
5. Karl Marx, O
18 de Brumário de Louis Bonaparte, Lisboa, Edições Avante!, 1982.
Engels
foi pertinente na exposição dos aspectos fundamentais de um guião que se
repetiu desde então com inúmeras e infindáveis variações. Primeiro: a
dificuldade em reconhecer a habitação no quadro alargado do modo de produção
capitalista e a dificuldade em definir o papel do Estado sob um liberalismo laissez‑faire. Segundo: o
moralismo e o carácter disciplinador que acompanha os debates da habitação.
Terceiro: a permanente estratégia de deslocação e segregação do proletariado,
como dissimulação das suas condições de vida.
•
Nota
da edição
Este
é um excerto do texto «Contributos para uma crítica da ‘questão da habitação’ no
Porto», escrito por Pedro Levi Bismarck e publicado no livro São
João de Deus, Nuno Brandão Costa, André
Cepeda, Março 2019, Dafne Editora. Este texto serve fundamentalmente de preâmbulo
ao caderno especial organizado pelo Punkto sobre a «questão da habitação». Este caderno reúne um
conjunto diversificado de textos publicados nos últimos anos neste jornal. Trata-se
de uma reflexão sobre a crise da habitação [agravada de forma exponencial nos
últimos anos], mas também, e em pano de fundo, sobre a definição e a
consolidação de todo um modelo neoliberal de metrópole que tem determinado, em
última análise, todo o conjunto de processos ligados a uma exploração intensiva
da forma urbana como forma de alto rendimento económico.
Pedro
Levi Bismarck
Co-editor
do Jornal Punkto, arquitecto, crítico e ensaísta, investigador no CEAU (Centro
de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto).
Imagem
Gente
fina não mora aqui, intervenção do artista
maismenos, num outdoor instalado no Bairro de São João de Deus, Porto.
Ficha
Técnica
Prelúdio:
«para a questão da habitação» • Pedro Levi Bismarck
Data
de publicação: 30.03.2023
Edição
#38 • Primavera 2023 •