Garantia económica geral e produção cultural • Frédéric Lordon

 

 

No capitalismo contemporâneo, há duas formas de ser materialmente dependente e, por consequência, de experimentar a angústia da incerteza: a dependência directa do mercado e do emprego; ou a dependência da administração do Estado neoliberal, com base em subvenções. A primeira diz respeito aos pequenos empresários e assalariados, a segunda diz respeito ao mundo da produção cultural (ao qual poderíamos acrescentar todo o meio associativo). Se esta última forma de dependência passa pelo Estado, não podemos deixar que isso nos induza em erro: ainda que através da sua intermediação é, na verdade, a lógica económica neoliberal que continua a produzir os seus efeitos. A receita fiscal em que as subvenções se baseiam está indexada à actividade económica privada –ou seja, ao melhor ou pior desempenho global do “mercado”. Quanto à despesa em si, esta existe sob constante pressão do discurso hegemónico, que propositadamente confunde tudo (“a dívida pública deve ser reduzida” = “a despesa pública deve ser reduzida”), e da vigilância dos mercados financeiros (os credores da dívida pública) que lhe marcam o passo.

Sem estarem directamente ligados ao mercado e ao emprego, os beneficiários de subvenções estatais não estão, por esse motivo, menos sujeitos à incerteza e à ansiedade. O orçamento para a cultura, essa "alma extra" –leia-se: fundamentalmente "inútil"–, está constantemente sob ameaça e no topo da lista de candidatos a cortes em caso de crise fiscal – e já todos compreendemos que a crise da Covid se anuncia como sangrenta. Os produtores culturais, embora não estejam imediatamente sujeitos ao sistema do mercado-do-emprego, não estão por isso menos bem colocados para compreender que a precariedade geral, instituída pelo neoliberalismo, diz-lhes respeito em primeira linha. Também eles, tal como os assalariados, têm motivos para estar preocupados pois, ainda que através da mediação do Estado subvencionista, também eles estão mergulhados na grande instabilidade do “mercado” e sujeitos ao seu princípio da incerteza. Também eles, neste preciso momento, torcem os dedos e desgastam-se com a mesma questão dos assalariados: “o que nos iremos nós tornar?”

É esta lógica da angústia que a garantia económica geral visa destruir. Desvincular a actividade dos meios materiais de existência, porque é esse o princípio nuclear da proposta do "salário vitalício" de Friot, e suprimir todas as consequências materiais pessoais da produção individual, também conhecida como proposta privada, não alivia apenas as incertezas da sobrevivência, cujos dados estão definitivamente estabilizados, mas liberta também possibilidades de actividade inéditas.

 

Dependência material e criatividade distorcida

Compostos por batalhões muito pequenos, muitas vezes de um tal umbiguismo sociológico que ignoram os grandes (de assalariados e, em particular, de operários) e acreditam que são os únicos que realmente contam na cena social, os mundos da produção cultural também oferecem, contudo, acesso às questões centrais do salário vitalício, embora este não tenha sido inicialmente concebido para si. Isto porque, com as devidas particularidades, o seu caso ajuda a identificar ainda mais de perto a origem do veneno capitalista: que está na ancoragem dos meios de sobrevivência individual à validação social das propostas privadas, a partir do momento em que esta validação social toma uma forma monetária –e isto quer o dinheiro venha do mercado e do emprego, quer venha do Estado capitalista. A especificidade do capitalismo é a de dar à validação social uma forma monetária e, reciprocamente, a de ter tornado essa forma monetária no principal modo de validação social. O capitalismo converte a validação social em meios materiais de existência e faz passar os meios materiais de existência pela validação social. Sobreviverá apenas aquele cuja actividade possa ser convertida em dinheiro: eis o nomos do mercado capitalista. E eis onde se encontra a origem da precaridade instituída.

Esta ancoragem da sobrevivência à validação monetária tem o nome de concorrência. E o veneno capitalista passa precisamente por confundir a emulação com a concorrência. A emulação, até à rivalidade, é uma paixão humana que não pode ser erradicada por decreto. Tem as suas boas propriedades e tem as suas poluições. A concorrência, por sua vez, é emulação, mas ligada a questões de sobrevivência material. E, portanto, a questões de sobrevivência tout court. Ao contrário do que durante décadas tem sido difundido pelo discurso liberal, a concorrência, assim redefinida, não faz com que as pessoas se activem “para melhor”: faz com que elas se activem a si próprias de forma selvagem –como se activam os seres humanos quando a sua sobrevivência está em jogo. A violência do que está em causa penetra imediatamente no comportamento e é imediatamente convertida em violência do comportamento. Reduzidos pela concorrência a questões vitais, os agentes activam-se, efectivamente, chegam inclusive a lutar, mas lutam como selvagens. [1] A sua obsessão não é a de fazer as coisas bem-feitas, mas antes validá-las –ou seja, convertê-las em dinheiro.

1. Um antropólogo crítico observaria aqui, e com razão, a dobra do pensamento particularmente desastrosa que se encontra inscrita num hábito de linguagem –o de dizer “como selvagens”. Pois, precisamente, as sociedades selvagens, num sentido antropológico, distinguem-se das nossas pelo facto de, apesar de conhecerem a rivalidade, pese embora codificada em regras simbólicas bastante estritas, ignorarem a concorrência que empurra os indivíduos uns contra os outros na maior desordem.

Assim sendo, prontos a fazer de tudo para sobreviver, estão dispostos a responder a todas as injunções institucionais das quais dependa a sua reprodução material, na medida em que esta depende da validação social materializada em dinheiro (subvenções, direitos de autor). Na “literatura”, por exemplo, alguns produtores tomam directa e abertamente o lado do mercado de massas, assegurando assim a validação da sua instituição editorial –no circuito dos “best-sellers”.

Outros, talvez piores, cultivam por habitus uma distinção muito ajustada à “procura”, produções que se atribuem a si próprias o epíteto de literatura, que adoptam posturas “críticas”, “transgressivas” até, mas sem nunca transgredirem de facto, sem mudar nada, com a certeza, portanto, de assegurar um público significativo. Sem dúvida não o do mercado de massas, ostensivamente desdenhadas, mas o da burguesia leitora, que está disposta a dar a si própria a excitação do “pensamento inconformado”, mas apenas até um certo ponto, perfeitamente identificado pelos produtores “ajustados”. E isto, aliás –e é esta a potência plena do conceito bourdeusiano de habitus– sem que este ajustamento seja necessariamente resultado de uma estratégia deliberada ou de um cálculo explícito. Combinando aparentemente injunções contraditórias –entrando em guerra, mas não sendo demasiado hostil, em suma, dando apenas a aparência de sê-lo–, estas posições asseguram que se mantém a validação da instituição editorial. Como se torna evidente, já agora, pela sua instalação franca no sistema de prémios literários, um indicador muito fiável de quem está a incomodar e de quem não está a incomodar coisa alguma (obviamente, há sempre falhas, distinções que vão para aqueles que normalmente não as deveriam ter).

E depois há os outros produtores, escritores, artistas, que aspiram a uma produção liberada dos cânones do admissível, ou seja, do comestível pela ordem social e pelas suas instituições. Mas também esses têm de sobreviver materialmente e, muitas vezes com relutância, têm de comprometer-se com as instituições –porque no fim do dia, como de costume, é preciso ganhar a vida. Estes são os primeiros a ser ameaçados pelo estrangulamento financeiro, que ameaça acompanhar a crise económica. Em geral, a escassez desencadeia lutas competitivas por recursos escassos, e intensifica todos os efeitos da normalização, uma vez que, situadas no “lado menor”, as instituições têm vantagem como nunca, quanto mais não seja sobre os que lhes pertencem. [2]

2. A este propósito, convém referir as reflexões do Collectif La Buse, assim como o trabalho de Aurélien Catin: “Pour plus de sécurité sociale dans la culture”, Le Monde Diplomatique, Agosto de 2020.

 

 Desvincular a reprodução material da validação social

A garantia económica geral serve então para aliviar os produtores culturais, assim como todos os outros produtores, da angústia do futuro: suprime todas as distorções que se prendem aos desafios vitais da reprodução material, ou seja, aos imperativos da validação social nas instituições mercantis-privadas (como a edição) ou nas instituições subvencionadas pelo sector público, devolvendo assim os produtores culturais à sua necessidade criativa. Tem também o efeito de explodir parcialmente o carácter social do “criador” / “autor” / “artista”, que só existe como tal através da unção desta ou daquela instituição ad hoc, através da integração de indivíduos nos seus circuitos, através do sucesso repetido na obtenção de subvenções, através de uma presença identificada em certas redes, etc. Através da desvinculação radical da actividade e dos meios de existência material, operada pelo “salário vitalício”, qualquer pessoa pode reencontrar, ou antes, encontrar a possibilidade de formular uma proposta privada de natureza criativa: uma proposta artística cuja formulação já não requer ter previamente adquirido os atributos sociais e institucionais de “artista”.

Como é evidente, nem todos os “constrangimentos” da validação social são abolidos. À excepção da escrita de poemas destinados a ficar em gavetas, uma proposta privada, pelo seu próprio carácter enquanto “proposta”, faz ipso facto a opção de se expor ao teste da recepção pública. Mas o que muda radicalmente, no sistema da garantia económica geral, é que o veredicto deste teste já não tem qualquer consequência para a sobrevivência material do proponente. Haverá sempre falhanços de recepção, isto é, de validação social –mas sem consequências monetárias–, seja devido à mediocridade da proposta, seja devido à sua estranheza, à sua novidade, e ao seu excessivo poder de desconcertar, ou seja, de estar desfasada das sensibilidades contemporâneas. Em suma, haverá sempre campos artísticos e os seus veredictos sociais, mas nada disto poderá condenar a pessoa que falha, especialmente no segundo caso, a desistir por razões materiais. O funcionamento social destes universos, a que Bourdieu chamou campos, é suficientemente violento em si mesmo –com todos os seus efeitos de ortodoxia, de redes, de favores, de selectividade, por vezes bem aplicada (de facto, Marc Lévy não é literatura), mas frequentemente mal aplicada (tal Prémio Goncourt também não) –para que esta violência seja ainda convertida em castigo material.

Ao contrário do mito –feitas as contas, muito capitalista– do artista amaldiçoado, ou melhor, do artista na miséria cuja figura foi re-encantada como “boémia”, que encoraja aqueles que não querem subordinar a sua criação à sanção monetária do mercado de arte a aceitarem a miséria, a fazerem inclusive da sua miséria um elemento constitutivo e, porque não, entusiasmante da sua “vida de artista” –no fundo : agradecemos que poupem os circuitos do mercado das vossas coisas, que ninguém quer, mas persistam e confiem na nossa consideração relativamente à matéria–, contrariamente a este mito, portanto, há muito a duvidar no que diz respeito à ideia de que a precariedade traga a mínima vantagem que seja à criatividade. É uma cabra (porca miseria, como dizem os italianos) que constantemente atormenta e distrai a mente do que se deveria estar a fazer. Como sabemos, as transfigurações liberais fizeram da precariedade um “estímulo saudável”, o “pequeno” estímulo sem o qual nos deixaríamos ir (cedendo ao ócio). Mas isto não é verdade: a precariedade agride, no pior dos casos levando os agredidos a tornarem-se agressores, por sua vez, quando os seus interesses fundamentais estiverem em jogo. E, no melhor dos casos, não trazendo nada de bom. A criatividade, exactamente ao contrário da narrativa liberal do “estar em tensão”, prospera muito mais no tempo livre e na paz de espírito.

 

Um caso de destruição pelo "estímulo da concorrência": a investigação

Existe um universo de produção cultural (alargada) onde isto é particularmente visível, sobretudo agora que as suas condições estão a ser metodicamente destruídas: o da investigação. Durante bastante tempo, em França, o CNRS foi uma realização, sem dúvida aproximativa, contudo exemplar, do "salário vitalício" e das suas virtudes: indivíduos, certo que seleccionados, mas pagos praticamente sem contrapartidas para fazer, por assim dizer, o que lhes apetece. Mas precisamente, o que lhes apetece é fazer investigação! E assim sendo, fazem-no sem contar o seu tempo, no melhor das suas capacidades, por esta eterna razão tão simples que é ser esse o seu desejo. E sob essas condições, a investigação é excelente.

Mas que as pessoas sejam deixadas com tão poucas restrições, não muito longe do seu livre arbítrio e, pior ainda, fora do mercado, é insuportável para o neoliberalismo. Por esse motivo, onde havia poucas restrições, a neo-gestão aplicada à investigação decidiu acrescentar cada vez mais, nomeadamente ao nível da monitorização (reporting) e da avaliação. Mas também, mais desastrosamente, acrescentar restrições que conduzem a um enfraquecimento geral das posições, através da concorrência. Concorrência pelos recursos necessários à investigação (créditos para equipamento), concorrência pelo acesso a lugares nos quadros. Mas não é a desestabilização um estímulo maravilhoso?

Não, é o pior tipo dos agentes tóxicos. Sob a sua acção corrosiva, os agentes começam a lutar entre si –e as externalidades positivas de uma actividade fundamentalmente cooperativa são destruídas. Mas acima de tudo, cedem ao medo assim que as suas condições materiais de existência são directamente ameaçadas e, em pânico, começam a procurar identificar as estratégias institucionais vencedoras. O mimetismo, ou seja, o conformismo, é infelizmente a única solução racional para esse problema. Infelizmente, na verdade, porque a criatividade da investigação não sobrevive quando já ninguém procura... outra coisa que não seja unir-se às correntes dominantes, racionalmente interpretadas como as que beneficiam da melhor validação institucional e, portanto, as que têm melhores hipóteses de salvação material. A inovação científica e intelectual pressupõe fazer-se o que ainda não está a ser feito; ora, se todos estão determinados pelo novo agenciamento institucional concorrencial a fazer o que todos os outros já estão a fazer: fim da história. É certo que o ethos da ciência perecerá, e perecerá mesmo duas vezes, primeiro por ser tomado pelo conformismo e depois por ser tomado por um conformismo hostil, como é regra quando todos tendem a ficar nervosos.

 

O “risco” como mentira ideológica e como flagelo material

É preciso inverter, decididamente, todas as declarações liberais: a verdadeira tomada de risco ou, digamos antes, a tomada de risco relevante (em relação ao que estamos a tentar fazer), neste caso a tomada de risco intelectual, pressupõe que estejamos aliviados de todos os outros riscos, nomeadamente do risco material. Mas do mesmo modo que o capitalismo confunde todos os desejos e assume o desejo comercial como desejo tout court, também ele confunde todo o tipo de riscos e reduz toda a tomada de riscos à desestabilização material –que é, infelizmente, um obstáculo para todas as outras aventuras. Se quisermos jogar a sério numa determinada frente, a frente da criação, por exemplo, é conveniente estar tranquilo nas outras.

Obviamente, e a história atesta isso, é sempre possível encontrar indivíduos excepcionais que triunfaram contra todos os obstáculos acumulados. Mas estes atestados reiteram apenas o mito capitalista do “criador que fez a sua escolha” (a da miséria) e, ainda mais característico, do indivíduo heroico. Para além disso, deixam na sombra tudo o que as colectividades deixaram de avançar pelo facto de aqueles que poderiam ter realizado esses avanços não estarem à altura desse heroísmo. Condicionar a criação cultural ou intelectual ao heroísmo é, na verdade, a mais liberal e a mais estúpida das ideias.

A virtude sã do risco é talvez o mais enganador de todos os argumentos da ideologia liberal. Temos a suspeita, para não dizer a certeza, de que nenhum dos que defendem esse discurso alguma vez tenha conhecido a precariedade. Os apologistas do risco podem ser reconhecidos pelo facto de nunca terem experimentado as consequências pessoais dos seus fracassos, por vezes colossais (por exemplo, toda a carreira profissional de Alain Minc não passa de um gigantesco monte de ruínas e ele está a safar-se muito bem), e pelo facto de estarem blindados pela sua fortuna pessoal, os seus contactos, e a certeza de poderem sempre encontrar um novo lugar algures –são apologistas do risco, mas para os outros. Todos podem sentir o desejo de correr riscos, de se exporem a riscos –atravessar um oceano à vela ou um deserto a pé, produzir uma obra cuja verdade seja insuportável para os seus contemporâneos– mas por sua própria vontade, e não contra a sua vontade, sob a ordem de alguém que manda. Os verdadeiros nomes do “risco” capitalista, ou seja, do risco-para-os-outros, são a miséria e a precariedade. Este risco não tem qualquer tipo de virtude. Atormenta, esgota e incita apenas ao mau –do simples conformismo, à violência competitiva.

Acabar com todos estes riscos é a base da proposta comunista, não apenas para responder a uma “simples” exigência moral, mas com o desígnio de potenciar as capacidades individuais e colectivas, uma vez que a angústia de sobrevivência é mais um travão do que um motor para o sucesso. Aqui, a garantia económica geral aplicada aos produtores culturais encontra, naturalmente, o seu lugar na ideia de um comunismo luxoso. Liberta as pessoas do medo e dá-lhes a possibilidade de se dedicarem, ou mesmo, caso queiram, de proporem aos outros: escrita, pintura, escultura, música, desenho, fotografia, vídeo, o que quiserem.... É preciso afirmar que uma sociedade que se organiza para permitir aos seus membros produzir mais disso, e menos telefones especiais de corrida, é uma sociedade melhor. E essas obras nunca são tão bem-sucedidas como quando são realizadas de acordo com um desejo livre e tranquilo: livres das preocupações de sobrevivência e viradas para a vida.

 

 

Frédéric Lordon

Economista e filósofo, é investigador no Centre de Sociologie Européene (CSE) e director de investigação no Centre Nationale de la Recherche Scientifique (CNRS). Entre outros, é autor de “Jusqu’à quand? Pour em finir avec les crises financières” (Raisons d’agir, 2008), “Capitalisme, désir et servitude. Marx et Spinoza” (La Fabrique 2010), “D’un retournement l’autre” (Seuil, 2011), “Imperium. Structures et affects des corps politiques” (La Fabrique, 2015) e “Figures du communisme” (La Fabrique, 2011).

 

Imagem

1. Spring in the Country, Grant Wood, 1941.

 

Nota de edição

A versão francesa do texto de Frédéric Lordon foi publicada no blog “La Pompe à Phynance” do Monde Diplomatique e a sua versão revista incluída no seu mais recente livro publicado: “Figures du communisme” (La Fabrique, 2011). A tradução para português foi realizada pelo Jornal Punkto com base em ambas.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 30.06.2021

Edição #32 • Verão 2021 •