Demorar, tardar, reflectir • Diogo Simões


 

Na pintura de Antonello da Messina, São Jerónimo é retratado no seu estúdio sobre um pano de incontáveis símbolos e analogias. Ao centro, confinado num espaço no interior de outro, imenso e aberto, São Jerónimo demora-se na leitura. É o tempo dado ao pensamento. Este tempo basilar vem-nos sendo retirado a cada momento. Parece que a aceleração das vidas nos tem postado diante da seguinte questão: e a seguir, o que fazer?

A fornada é posta ao lume. Retirada e servida. Tudo isto acontece sob o menor tempo possível e a maior eficiência. É assim que o desejam. Contrária, ao que parece, ao tempo demorado na pintura.

E a universidade? Também ela de fornadas a lume elevadíssimo, independentemente das vontades de um ou outro. Não temos a decisão. Querem prontíssimos estudantes, mesmo que isso venha a significar improntidão diante daquilo a que também gostam de chamar vida real (como se as palavras não fossem já elas coisas reais, como se as coisas reais fossem fundidas a ferro e, assim, mais reais).

“Na sociedade da aparência, as pessoas suspiram pelo sucesso mediático, ou pela vanglória do pequeno, ou não tão pequeno, poder hierárquico, enquanto a vida corrente continua a ser menosprezada”. [1] E por “vida corrente” referimo-nos aqui à quotidianidade, referimo-nos ao senso comum, à simplicidade da vida. Não se dá importância ao quotidiano, porque o quotidiano está relacionado com uma vida menor, nunca com o «extraordinário». Este liga-se frequentemente às coisas da metafísica, do que não é deste mundo, porque não o pode ser. Na universidade procura-se o mais das vezes a metafísica. Procura-se que os estudantes se restrinjam aos ensinamentos dos docentes como último imperativo. Os estudantes estão mortos, ou quase mortos. Não têm vida. É-lhes, a cada momento, retirada a urbe.

1. Maria Josep Esquirol, A Resistência Íntima, Lisboa, Edições 70, 2020, p.54.

O tempo do estudante, que é o tempo dado ao pensamento, parece-nos a cada momento retirado. E retiram-nos numa espécie de apologia, ainda que não francamente admitida, às políticas do mercado. Num certo sentido, numa estandardização, como produtos em massa. E quem se preocupa aqui com as individualidades de cada um, com os seus desejos, talvez vocações? Ninguém, ao que parece. A tese, que é início de alguma coisa, em parte é nada. Ao invés de ser espaço de reflexão, ao invés de ser caminho, é apenas umas das demais tarefas a ser cumprida. Agarra-se no tema, nas premissas, e assim conclui-se. Recordemos, a este respeito, as palavras de Foucault:

“Não penso sempre exatamente o mesmo, porque os meus livros são para mim experiências, num sentido que gostaria que fosse o mais completo possível. Uma experiência é algo da qual se sai transformado. Se tivesse de escrever um livro para dizer o que já penso antes de o escrever, não teria nunca coragem para começá-lo.” [2]

2. Michel Foucault citado por Maria Josep Esquirol, ibid., p.86.

 

 

Poder-se-ia então dizer: a tese é uma experiência. Escrever é experimentar. Não é uma tarefa entre as demais. E, no entanto, a pouca atenção que os docentes vão dando a esta experiência é assustadoramente atroz. É atroz como a ideia de investigação tem tomado as rédeas, de maneira que (quase poderíamos apontar) já não se pensa.

Tudo é efémero. A vida é um caminho rico de significância, mas não uma ponte. Não é isto para atingir aquilo. É caminho. E aqui aproximamo-nos da reflexão de Giorgio Agamben sobre os estudantes. O qual discorrendo sobre a importância do estudo, e sobre como pé ante pé esta palavra vai sendo substituída pela palavra investigação, sublinha a importância do mesmo enquanto forma de vida. O estudo é desejo. E só neste sentido é que podemos falar do estudo enquanto forma de vida. O estudo furta-se a qualquer utilidade, visto ser um caminho. Aqui, diz-nos o filósofo, “é preciso inverter o lugar comum segundo o qual todas as actividades humanas são definidas pela sua utilidade”, acrescentando que “a condição estudantil é para muitos a única ocasião para fazer a experiência, hoje cada vez mais rara, de uma vida que se subtrai a fins utilitários”. [3]

Quando nos pedem mais resultados num menor espaço e tempo possíveis, pedem-nos que nos privemos deste tempo único que é o tempo do estudo. Pedem-nos e privam-nos de escolha, sob o manto utilitário. E novamente, a fornalha a sair.

3. Giorgio Agamben, “Estudantes”, Stones Against Diamonds, ex-curso, série a, #1.

 

 

Diogo Simões

Estudante de Arquitectura na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra, onde, de momento, inicia os seus estudos para a tese de mestrado. É membro da associação cultural Linha de Fuga – Festival e Laboratório Internacional de Artes Performativas, sediada em Coimbra.

 

Imagens

1. Fotografia de Atenas por Jean-François Bonhmme (in Jacques Derrida, Athens, Still Remains, Nova Iorque, Fordham University Press, 2010, p.62).

2. São Jerónimo no seu estúdio, Antonello da Messina, c.1474-75.

 

Ficha Técnica

Data de publicação: 07.10.2020

Edição #29 • Outono 2020 •