Tentarei ordenar aqui um conjunto de ideias relativamente bem conhecidas sobre a mecânica interna da cidade capitalista. Serão
brevemente exploradas quatro grandes dinâmicas responsáveis pela evolução e o
funcionamento do território urbano tal como hoje o conhecemos e cuja
articulação assegura o cumprimento da função vital do capitalismo: a reprodução mercantil.
1. Separação – é a vida privada que se reproduz no espaço público
Historicamente, a cidade constituiu uma rede orgânica de comunicações
entre os membros de uma comunidade. Era por isso vista como o meio natural do
homem socializado. Para Aristóteles, era a forma mais elevada de comunidade,
aquela onde o homem melhor podia desenvolver a sua natureza de animal político.
Foi o longo desenvolvimento histórico da cidade capitalista que veio colocar em
cheque a comunidade citadina e a rede de comunicações sobre as quais ela
assentava, mediante um conjunto de técnicas de separação, que se multiplicaram
ao longo da história contemporânea. Vejamos algumas das mais eficazes no
presente.
circulação automóvel
A imposição da circulação automóvel e das infraestruturas rodoviárias à
paisagem urbana é um dos mecanismos através dos quais a cidade capitalista
promove a separação na vida das colectividades. As ruas tornam-se espaços
mortos que apenas se atravessam, sem serem habitados ou apropriados. As
rotundas tomam o lugar das praças e os parkings
o dos parques. Em vez de arquitectos paisagistas, o desenho do espaço
exterior requer apenas especialistas em mobilidades e transportes. A vida
social torna-se dependente da mobilidade que o automóvel gera e, por sua vez,
essa mobilidade, em vez de conferir a liberdade prometida pelo marketing,
torna-se coerciva: enquanto confere ao automobilista a flexibilidade de a
qualquer hora se deslocar a qualquer lugar, impõe-lhe os constrangimentos do
congestionamento, da poluição, dos riscos de acidente e do isolamento social e
afectivo.
zoneamento
Intimamente ligada à ditadura do automóvel, o zoneamento do território
constitui outra técnica de separação amplamente usada no espaço urbano
capitalista. Graças à divisão do território em zonas, esferas que estavam
historicamente vinculadas fragmentam-se em pólos distantes e autónomos, criando
áreas estritamente comerciais, residenciais, empresariais, industriais ou
turísticas. Esta racionalização taylorista do território aumenta a eficiência
na sua gestão, ao mesmo tempo em que desagrega a comunidade urbana, ao aumentar
a extensão dos trajectos diários e a dependência do automóvel.
blocos densos de apartamentos
Neste território altamente racionalizado, encontramos um terceiro
mecanismo de separação na propagação de arquitecturas densas e monolíticas que
promovem a atomização da comunidade. A super eficiente e proto-brutalista máquina para habitar de Le Corbusier,
com a sua escala que reduz os habitantes a miniaturas de seres humanos,
continua a ser o modelo de referência para a criação de blocos de apartamentos
densos, especialmente para as classes baixas, historicamente tornados possíveis
pela banalização do uso do elevador e do betão armado. Tal como os restantes
espaços que definem a vida urbana capitalista, estas unidades residenciais
austeras, apesar de agregarem multidões, incitam à anonimidade. Também elas dão
razão a Debord quando, nos anos sessenta, afirmava que "todas as forças
técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como operando
separações".
privatização do espaço público
A invasão do espaço público por espaços vocacionados, não para encontros
e partilhas colectivas, mas para consumos individuais é outro dos processos que
contribuem para disseminar a separação pela vida urbana. A política dos
municípios de estímulo à privatização deste espaço pelo sector comercial,
principalmente através de grandes cadeias multinacionais, tem vocacionado
praças inteiras, estações de comboio, mercados municipais e outros espaços
públicos diariamente percorridos por milhares de pessoas para a estrita
comercialização de mercadorias e serviços. A rápida substituição, nestes
espaços, da socialização informal pelo consumo individualizado faz com que se
tornem palcos de reprodução da vida privada de massas anónimas. É através de
técnicas de separação como esta que a cidade capitalista destrói tudo o que
liga, de um modo contínuo e livre, os seus habitantes. Neste ponto, ela
assemelha-se plenamente à cidade fascista. Como esta, também ela constrói um
espaço disciplinar onde as relações sociais devem ser provisórias e precárias,
devendo ocorrer unicamente em espaços autorizados para o efeito, onde cada
indivíduo se dilui numa massa informe. A regra de ouro, para quem desenha e gere a cidade capitalista
contemporânea, foi desenvolvida e testada pelos dirigentes do fascismo:
qualquer aglomeração de pessoas deverá ser governável.
2. Segregação – as classes não se misturam, isolam-se
Durante milénios, a cidade foi por excelência o espaço social dos
cruzamentos e das misturas. Nela, a colectividade afirmava-se enquanto um todo
heterogéneo, num espaço de relativa liberdade, que estimulava ao questionamento
das identidades e das hierarquias. Com o advento dos estados modernos, no
dealbar do capitalismo, o seu território passou a ser ordenado segundo os
interesses dos administradores da nova economia. A cidade tornou-se uma
manifestação dos seus desejos, que não eram guiados por princípios de justiça
social. O simples facto de os terrenos e edifícios urbanos passarem a ser
concebidos como puras mercadorias contribuiu para que cedo irrompessem os
bairros de miséria e, com eles, a pequena criminalidade, de que estão ainda
hoje sobrelotadas as prisões. Foi tendo em conta o aparecimento destas
condições de desigualdade, propícias à ocorrência do conflito social, que a
gestão capitalista do território urbano procurou isolar, geograficamente, as
classes desfavorecidas, criando uma cidade dividida. Várias técnicas de
segregação social foram empregues para esse fim. Eis as mais frequentes nos
dias de hoje.
bairros de exclusão
A principal é sem dúvida a constituição de bairros de exclusão, por
oposição aos condomínios fechados, outro dos enclaves territoriais que definem
a metrópole capitalista. Naqueles bairros estrategicamente dispostos longe do
centro das cidades, em áreas tendencialmente isoladas da rede de serviços,
acessibilidades e equipamentos urbanos, é marginalizada a população mais pobre
da metrópole, aquela a quem a economia capitalista deixou de dar oportunidades.
Os média burgueses chamam-lhes por isso bairros
problemáticos. O seu equivalente nas metrópoles do sul são as favelas, que
ocupam geralmente zonas geologicamente instáveis, junto a refinarias, minas,
esgotos, unidades de indústria química, lixo tóxico, auto-estradas ou leitos de
cheia, que as deixam à mercê de um conjunto de calamidades que os mesmos média
geralmente ignoram. Nestas metrópoles, as classes médias não se refugiam em
meros condomínios fechados mas em micro-cidades vedadas, as chamadas gated communities, que, para lá das
zonas residenciais, incluem clínicas, shoppings, lares de idosos, casinos e
áreas de desporto, vigiados em permanência por polícias privadas.
vídeo-vigilância
Outro poderoso mecanismo de segregação é a instalação, nas ruas e
avenidas onde se concentram os locais de consumo burgueses, de dispositivos de
vídeo-vigilância. Instaladas por governos e municípios, as câmaras, que têm uma
finalidade essencialmente dissuasora, sacrificam a dimensão pública das principais artérias das cidades. São por isso um
instrumento de privatização de geografias que até há bem pouco tempo eram
comuns e populares. Esta crescente supressão do espaço público tem uma clara
meta anti-democrática: expulsar do território da cidade todos aqueles que não
são consumidores.
design hostil
Neste território marginalizador, o policiamento inscreve-se igualmente
no design urbano do espaço público: barreiras em volta do lixo de restaurantes
e supermercados para torná-lo inacessível a mexidas; bancos onde não é possível
alguém deitar-se; paragens de autocarro onde é impossível abrigar-se da chuva;
obstáculos colocados ao nível do solo em zonas cobertas para impedir alguém de
aí pernoitar; gradeamentos impedindo o acesso a lugares abrigados; etc. A
finalidade deste novo design é a mesma das câmaras de vídeo-vigilância:
hostilizar grupos indesejáveis, como drogados, gangues, alcoólicos, refugiados
ou sem-abrigo. Ele é complementado pela sistemática eliminação de
infra-estruturas e elementos paisagísticos que servem as necessidades de quem
vagueia pelas cidades, como balneários públicos ou sombras em praças. Estas diferentes técnicas de
segregação social visam purificar os centros das cidades da presença de pobres
e, de um modo geral, de todos aqueles que são considerados inúteis para o
desenvolvimento da economia capitalista. Elas servem para assegurar a
valorização de mercadorias nas quais o sistema financeiro investe cada vez mais
capital, como é o caso do imobiliário ou da hotelaria. A mera presença de
pobres, mesmo que inofensivos, choca com a exploração turística e comercial das
cidades, porque a visibilização da pobreza dissuade o consumo burguês. Os
pobres tornaram-se o inimigo predilecto da cidade capitalista.
cidades criativas
Recentemente, os municípios implementaram um novo método para
seleccionar o tipo de população que deve habitar o centro das cidades. Foi
também com esse intuito que incluíram na sua agenda o tema das cidades criativas. Ao mobilizarem formas
várias de dinamização cultural, os municípios procuram valorizar os seus
centros enquanto ambientes inovadores e criativos, favoráveis à atracção de
empreendedores e startups, que são
hoje vistos como um pilar imprescindível para o crescimento económico. Este
processo pressupõe a fuga dos residentes bem como o encerramento de associações
populares e pequenos comércios que deixam de conseguir pagar as suas rendas,
subitamente inflaccionadas pela chegada de novos habitantes e comerciantes com
maior poder de compra. Este exemplo demonstra que a segregação social se tornou
um processo subtil e complexo, determinado pela acção conjunta de agentes
públicos e privados. O direito à cidade fica reservado aos assalariados
considerados mais competentes, ficando excluídos aqueles que a moderna
organização da economia tornou insignificantes ou supérfluos. A cidade
capitalista revela-se assim como um território classista que faz incidir o
regime de segregação do seu apartheid,
já não sobre comunidades negras ou ciganas, mas sobre todos aqueles que
deixaram de ser produtivos.
3. Funcionalização
– toda a vida é gerida em função da
eficiência e da produtividade
Ao capitalismo corresponde um modelo urbanístico que se começou a
desenhar quando a fragmentação medieval deu
lugar à centralização moderna.
Dependente de um poder absoluto, este modelo impôs-se no período barroco,
ordenando geografias urbanas que até aí se caracterizavam pela informalidade e
o caos. Desta forma, veio responder, por um lado, às exigências de mobilidade e eficiência da produção e do consumo
capitalistas; e, por outro, à necessidade de policiamento e controlo de
populações politicamente cada vez menos submissas. As formas geométricas que
definem a cidade barroca permitiram vigiar e disciplinar os corpos de uma forma
nova. O seu modelo de ruas rectilíneas, avenidas largas, praças rectangulares e
quarteirões uniformes, visível por exemplo na baixa pombalina e mais tarde nos boulevards de Haussmann, seria
aprofundado pelo programa funcionalista do século xx.
funcionalismo
Foi na reconstrução do pós-guerra que a planificação funcionalista,
teorizada nos anos trinta, pôde ser amplamente implementada, tornando-se até
aos dias de hoje o principal modelo utilizado na organização territorial das
metrópoles. Disciplinar e racionalizar a vida urbana é a missão deste austero
programa. Apoiado sobre a eficiência e o utilitarismo, dividiu o território
urbano em zonas, funcionando cada uma como uma unidade individual separada.
Enquanto uma dispendiosa rede de circulação estabelece o contacto entre elas, a
velha rua, outrora favorável aos encontros, às partilhas e à conservação da
vida colectiva, torna-se obsoleta. Toda a cidade está agora desenhada para
impedir que possam germinar espontaneamente relações sociais e que os
habitantes ocupem o seu tempo com actividades anti-utilitárias.
mobilidades & organização logística
Neste território fragmentado pelo racionalismo utilitário do capital,
são as necessidades económicas do sistema que estimulam os habitantes a um
movimento pendular constante. Num contexto em que a produção e o consumo de
massas não podem abrandar em nome do sucesso do projecto capitalista, as
mobilidades e a velocidade tornam-se vitais para articular as diferentes zonas
num todo orgânico, produtivo e eficiente. A organização logística converte-se
assim numa actividade central na gestão do território. É ela que deve assegurar
a eficiência e a optimização das redes de circulação das quais depende o fluxo
ininterrupto de matérias-primas, bens, serviços, informações e pessoas,
essenciais para a reprodução mercantil. Esta organização material e tecnológica
contribui fortemente para o desenho estandardizado de arquitecturas, avenidas,
áreas comerciais e vias de circulação, tornando possível a gestão racional de
todo o processo económico. É assim que o território urbano se torna
superplanificado.
smart cities
O desenvolvimento das chamadas smart
cities visa o aperfeiçoamento desta superplanificação, de forma a que absolutamente nada seja deixado ao
acaso. A sua evolução está a mostrar que o futuro da vida nas cidades passará
pela sua cuidadosa monitorização, através de painéis de comando de alta
precisão. Segundo o porta-voz da smart city que o governo egípcio está a
construir a 40km do Cairo, para receber 5 milhões de pessoas vindas da velha
capital, poluída, insegura e congestionada, “uma smart city significa uma cidade segura, com câmaras e sensores por
todo o lado. Irá ter um centro de comando para controlar a cidade
inteira." Na cidade do futuro, que é já cada vez mais a cidade do
presente, cada habitante viverá completamente isolado do tecido social, mas
estará integrado em sistemas inteligentes que raciocinam por si. O
capitalismo prossegue assim um processo que inaugurou quando o urbanismo
geométrico da cidade barroca veio retirar espontaneidade e liberdade à vida
urbana. A smart city é um passo em
frente neste longo processo de racionalização e normalização urbanas. A sua
grande inovação é fazer o objecto da governação transferir-se do homem para o
seu ambiente tecnológico, tornando praticamente desnecessárias as patrulhas da
polícia e do exército.
governabilidade
Neste território cada vez mais ordenado e eficiente, não é deixado
espaço para a sociabilidade, a liberdade, nem sequer o imprevisto. Ele encontra
por isso o seu inconcebível inimigo no bêbedo que vagueia livremente pelas
ruas, sem rumo definido, dono do tempo e, em boa medida, também do espaço. Pelo
contrário, o consumidor, que se submete docilmente à ordem inscrita no
território, é o habitante protótipo da smart
city. E ninguém melhor do que o obediente turista desempenha hoje esse
papel. Ao identificar plenamente a sua própria actividade com o consumo de
mercadorias e serviços e ao estar habituado a cumprir escrupulosamente roteiros
predefinidos, ele revela uma predisposição inata para ser guiado e integrado em
sistemas de controlo. O turista pode assim ser considerado o cidadão modelo da smart city totalitária. Reúne em si o
vasto conjunto de propensões que o capitalismo gostaria de ver disseminadas por
cada um de nós. Ele é individualista, é passivo, é espectador, submetendo-se
voluntariamente a todas as normas de segurança e vigilância. Trata-se, em suma,
do mais governável dos actores urbanos.
4. Mercantilização – a cidade não se habita,
consome-se
Lewis Mumford observa que, desde o século XVII, o estímulo para a
expansão urbana vem essencialmente de comerciantes, investidores e
proprietários. Desde este período, a cidade, outrora favorável à vida
colectiva, foi gradualmente sendo concebida como um negócio privado, estranho
às relações pessoais de natureza associativa que até aí lhe eram naturais. Os seus
terrenos e edifícios, longe de se distribuírem pelos habitantes em função das
suas necessidades de habitação, passaram a transaccionar-se enquanto
mercadorias.
origem da metrópole
É precisamente a afirmação desta natureza mercantil que explica o facto
mais relevante na história recente da cidade: a sua diluição na metrópole, ou
seja, a explosão dos subúrbios. A supressão de limites quantitativos ao
crescimento da cidade explica-se menos por uma qualquer necessidade expressa
pela colectividade do que pelo mero crescimento do capital. Se no capitalismo
os lucros devem crescer incessantemente, também na geografia da cidade
capitalista se devem multiplicar permanentemente os investimentos. Esta
integração da cidade no desenvolvimento incessante da economia capitalista
representa a sua dissolução na metrópole. Encontrando-se num estado de expansão
permanente, a metrópole é a expressão perfeita do gigantismo do projecto
capitalista.
regresso à cidade
No entanto, nas últimas décadas, no seio das classes mais abastadas,
surgiu um movimento de reacção às paisagens globais resultantes do urbanismo
austero e funcionalista que caracteriza as metrópoles. Com
a brutal uniformização das paisagens suburbanas, desenhadas em função de
critérios estritamente funcionais, os bairros citadinos mais antigos, que
entretanto se chamam históricos,
seduzem agora uma burguesia que passou a valorizar o pitoresco, o local e o típico. Os investidores têm sabido
surfar melhor do que ninguém esta onda de redescoberta neo-romântica dos encantos
da velha cidade. Descobriram que, para poderem explorá-la devidamente, deveriam
dotá-la, não apenas de higiene, conforto e segurança, mas também de prestígio,
carisma e glamour. Doutro modo, não
seria possível torná-la uma mercadoria única, competitiva e exclusiva,
inacessível à maioria, mas que confere status
e distinção a quem a consome. A mercantilização da velha cidade tem
ocorrido mediante dois processos que se tornaram indissociáveis: a
gentrificação e a turistificação.
gentrificação e turistificação
Enquanto a gentrificação é espoletada quando uma parte da classe média
crescida na periferia urbana, mas com aspirações culturais, se deixa seduzir
pelo ambiente espontâneo, liberal e carismático dos bairros populares do
centro, a turistificação resulta da atracção que estes mesmos bairros, repletos
de história, exercem sobre viajantes ávidos de representações consumíveis de
identidades locais. Tanto a gentrificação como a turistificação fazem disparar
os investimentos especulativos no comércio, no património e na habitação,
inflaccionando os seus preços. Visto que ambos os processos tendem a convergir
para as mesmas zonas das cidades onde dinamizam os mesmos negócios, torna-se
por vezes difícil distinguir quem, numa dada zona que fora subitamente
mercantilizada, faz parte do processo de turistificação e quem, por sua vez,
participa da gentrificação.
actuação estatal
Acresce notar que os poderes públicos não assistem passivos a esta
revalorização mercantil da velha cidade e que contribuem decisivamente para
torná-la menos um bem comum, apropriável pelas pessoas, do que um espaço
dirigido à pura circulação de capital, que exclui e marginaliza quem não
integre o mercado. Ao contrário do que se costuma afirmar, a cidade
mercantilizada resulta, não apenas do livre funcionamento do mercado
neoliberal, mas de uma autêntica parceria público-privada,
já que articula autarquias, banca, ministérios diversos, fundos imobiliários e
instituições europeias de financiamento. As autarquias, por exemplo, apostam
hoje fortemente no marketing das suas cidades, publicitando-as como autênticas
marcas registadas, enquanto política de promoção turística e de captação de
investimento externo. Paralelamente, são criados programas de requalificação
urbana, como foi o célebre Polis, que
adaptam as zonas mais privilegiadas das cidades às exigências paisagísticas,
ambientais, arquitectónicas e infraestruturais das classes gentrificadoras e
turísticas. Outro campo de acção da administração pública para levar novos
bairros ao roteiro burguês tem sido a estratégica criação de grandes projectos
dinamizadores, como pólos culturais junto de bairros populares ou hubs empresariais em zonas industriais
abandonadas. Importa finalmente salientar que, enquanto implementa estes
programas e projectos, o poder público não coloca paralelamente
em prática políticas de fixação de populações com menos recursos junto das
zonas intervencionadas, as quais se tornam por isso, inevitavelmente, parte do
território gentrificado e turistificado.
Metrópole versus
cidade? – qualquer geografia
capitalista será sempre uma expressão da nossa impotência
A situação urbana actual, onde as quatro grandes dinâmicas descritas –
separação, segregação, funcionalização, mercantilização – se interseccionam e
retroalimentam é definida por duas tendências contraditórias. Por um lado, a
metrópole estende os seus longos tentáculos a periferias cada vez mais
distantes, aí criando novas centralidades residenciais, comerciais e laborais,
num processo de homogeneização do território iniciado durante a reconstrução
funcionalista do pós-guerra. Por outro, assiste-se por toda a parte à
reemergência glamourosa da velha cidade que, depois de um longo período de
esvaziamento e desprezo, atrai agora, enquanto mercadoria exclusiva, uma
burguesia romântica que se fartou do ambiente deprimente da periferia
metropolitana. A metrópole monótona e difusa e a velha cidade requalificada
constituem-se assim como os dois fragmentos de um mesmo mundo urbano dividido.
Enquanto que a metrópole exige aos habitantes que se entreguem à
vertigem da circulação solitária e frenética entre não-lugares igualmente
despersonalizados, nos quais deverão sobretudo realizar consumos anónimos
e instantâneos, a cidade, por sua vez, apresenta-se como sendo contrária ao
isolamento social e afectivo e ao deserto cultural que reinam na metrópole.
Explora por isso o património, a memória e a identidade de modo a criar um
território carismático, fotogénico e criativo, repleto de animação; uma mercadoria
vendável a uma classe média que encontrou no acesso à cultura a sua última
fonte de distinção e prestígio. De um lado da
vida urbana temos assim a rápida dissolução da
colectividade, fomentada pela autoestrada, o hipermercado, os blocos densos de
apartamentos, o fast food ou o shopping. Do outro, a ilusão de cultura,
cosmopolitismo e comunidade que promovem a ciclovia, a praça repleta de
esplanadas, a mercearia gourmet, o restaurante de autor e o comércio de
proximidade. Em suma, se a metrópole deve apenas ser rápida e friamente
atravessada, a cidade pode ser cuidadosamente admirada e fotografada.
Esta contradição entre cidade e metrópole é, no entanto, mais frágil do
que parece pois, como vimos ao longo do texto, ambas são hoje mobilizadas pelo mesmo
projecto capitalista de impor unilateralmente à geografia e à sociedade as
dinâmicas que perpetuam a sua reprodução. Conforme atribui retorno aos investimentos que são realizados
nestes territórios, a sua gestão público-privada
dispensa a participação da comunidade, à qual fixa autoritariamente cada um
dos trajectos quotidianos que a impedem de se
apropriar do espaço-tempo, enquanto
promovem a grande festa do marketing, da
especulação e do consumo. É exactamente aqui, nesta alucinada sobreposição do
júbilo egoísta da mercadoria às diferentes necessidades do bem-estar colectivo,
que qualquer geografia capitalista revela a sua implacável coerência.
•
Nota da edição
Este texto serviu de base a uma comunicação feita durante as II
Jornadas “Cidade em Revolta - Entradas e Saídas da Ruína Capitalista”, que
decorreram no Porto a 8 e 9 de Dezembro de 2018.
Pedro Duarte
Historiador e autor no blog l'obéissance
est morte
Ficha Técnica
Data de publicação: 05.06.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •