Cidade e mercadoria: quatro notas • Pedro Duarte






Tentarei ordenar aqui um conjunto de ideias relativamente bem conhecidas sobre a mecânica interna da cidade capitalista. Serão brevemente exploradas quatro grandes dinâmicas responsáveis pela evolução e o funcionamento do território urbano tal como hoje o conhecemos e cuja articulação assegura o cumprimento da função vital do capitalismo: a reprodução mercantil.

1. Separação – é a vida privada que se reproduz no espaço público
Historicamente, a cidade constituiu uma rede orgânica de comunicações entre os membros de uma comunidade. Era por isso vista como o meio natural do homem socializado. Para Aristóteles, era a forma mais elevada de comunidade, aquela onde o homem melhor podia desenvolver a sua natureza de animal político. Foi o longo desenvolvimento histórico da cidade capitalista que veio colocar em cheque a comunidade citadina e a rede de comunicações sobre as quais ela assentava, mediante um conjunto de técnicas de separação, que se multiplicaram ao longo da história contemporânea. Vejamos algumas das mais eficazes no presente.

circulação automóvel
A imposição da circulação automóvel e das infraestruturas rodoviárias à paisagem urbana é um dos mecanismos através dos quais a cidade capitalista promove a separação na vida das colectividades. As ruas tornam-se espaços mortos que apenas se atravessam, sem serem habitados ou apropriados. As rotundas tomam o lugar das praças e os parkings o dos parques. Em vez de arquitectos paisagistas, o desenho do espaço exterior requer apenas especialistas em mobilidades e transportes. A vida social torna-se dependente da mobilidade que o automóvel gera e, por sua vez, essa mobilidade, em vez de conferir a liberdade prometida pelo marketing, torna-se coerciva: enquanto confere ao automobilista a flexibilidade de a qualquer hora se deslocar a qualquer lugar, impõe-lhe os constrangimentos do congestionamento, da poluição, dos riscos de acidente e do isolamento social e afectivo.

zoneamento
Intimamente ligada à ditadura do automóvel, o zoneamento do território constitui outra técnica de separação amplamente usada no espaço urbano capitalista. Graças à divisão do território em zonas, esferas que estavam historicamente vinculadas fragmentam-se em pólos distantes e autónomos, criando áreas estritamente comerciais, residenciais, empresariais, industriais ou turísticas. Esta racionalização taylorista do território aumenta a eficiência na sua gestão, ao mesmo tempo em que desagrega a comunidade urbana, ao aumentar a extensão dos trajectos diários e a dependência do automóvel.

blocos densos de apartamentos
Neste território altamente racionalizado, encontramos um terceiro mecanismo de separação na propagação de arquitecturas densas e monolíticas que promovem a atomização da comunidade. A super eficiente e proto-brutalista máquina para habitar de Le Corbusier, com a sua escala que reduz os habitantes a miniaturas de seres humanos, continua a ser o modelo de referência para a criação de blocos de apartamentos densos, especialmente para as classes baixas, historicamente tornados possíveis pela banalização do uso do elevador e do betão armado. Tal como os restantes espaços que definem a vida urbana capitalista, estas unidades residenciais austeras, apesar de agregarem multidões, incitam à anonimidade. Também elas dão razão a Debord quando, nos anos sessenta, afirmava que "todas as forças técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como operando separações".

privatização do espaço público
A invasão do espaço público por espaços vocacionados, não para encontros e partilhas colectivas, mas para consumos individuais é outro dos processos que contribuem para disseminar a separação pela vida urbana. A política dos municípios de estímulo à privatização deste espaço pelo sector comercial, principalmente através de grandes cadeias multinacionais, tem vocacionado praças inteiras, estações de comboio, mercados municipais e outros espaços públicos diariamente percorridos por milhares de pessoas para a estrita comercialização de mercadorias e serviços. A rápida substituição, nestes espaços, da socialização informal pelo consumo individualizado faz com que se tornem palcos de reprodução da vida privada de massas anónimas. É através de técnicas de separação como esta que a cidade capitalista destrói tudo o que liga, de um modo contínuo e livre, os seus habitantes. Neste ponto, ela assemelha-se plenamente à cidade fascista. Como esta, também ela constrói um espaço disciplinar onde as relações sociais devem ser provisórias e precárias, devendo ocorrer unicamente em espaços autorizados para o efeito, onde cada indivíduo se dilui numa massa informe. A regra de ouro, para quem  desenha e gere a cidade capitalista contemporânea, foi desenvolvida e testada pelos dirigentes do fascismo: qualquer aglomeração de pessoas deverá ser governável.


2. Segregação – as classes não se misturam, isolam-se
Durante milénios, a cidade foi por excelência o espaço social dos cruzamentos e das misturas. Nela, a colectividade afirmava-se enquanto um todo heterogéneo, num espaço de relativa liberdade, que estimulava ao questionamento das identidades e das hierarquias. Com o advento dos estados modernos, no dealbar do capitalismo, o seu território passou a ser ordenado segundo os interesses dos administradores da nova economia. A cidade tornou-se uma manifestação dos seus desejos, que não eram guiados por princípios de justiça social. O simples facto de os terrenos e edifícios urbanos passarem a ser concebidos como puras mercadorias contribuiu para que cedo irrompessem os bairros de miséria e, com eles, a pequena criminalidade, de que estão ainda hoje sobrelotadas as prisões. Foi tendo em conta o aparecimento destas condições de desigualdade, propícias à ocorrência do conflito social, que a gestão capitalista do território urbano procurou isolar, geograficamente, as classes desfavorecidas, criando uma cidade dividida. Várias técnicas de segregação social foram empregues para esse fim. Eis as mais frequentes nos dias de hoje. 

bairros de exclusão
A principal é sem dúvida a constituição de bairros de exclusão, por oposição aos condomínios fechados, outro dos enclaves territoriais que definem a metrópole capitalista. Naqueles bairros estrategicamente dispostos longe do centro das cidades, em áreas tendencialmente isoladas da rede de serviços, acessibilidades e equipamentos urbanos, é marginalizada a população mais pobre da metrópole, aquela a quem a economia capitalista deixou de dar oportunidades. Os média burgueses chamam-lhes por isso bairros problemáticos. O seu equivalente nas metrópoles do sul são as favelas, que ocupam geralmente zonas geologicamente instáveis, junto a refinarias, minas, esgotos, unidades de indústria química, lixo tóxico, auto-estradas ou leitos de cheia, que as deixam à mercê de um conjunto de calamidades que os mesmos média geralmente ignoram. Nestas metrópoles, as classes médias não se refugiam em meros condomínios fechados mas em micro-cidades vedadas, as chamadas gated communities, que, para lá das zonas residenciais, incluem clínicas, shoppings, lares de idosos, casinos e áreas de desporto, vigiados em permanência por polícias privadas.   

vídeo-vigilância
Outro poderoso mecanismo de segregação é a instalação, nas ruas e avenidas onde se concentram os locais de consumo burgueses, de dispositivos de vídeo-vigilância. Instaladas por governos e municípios, as câmaras, que têm uma finalidade essencialmente dissuasora, sacrificam a dimensão pública das principais artérias das cidades. São por isso um instrumento de privatização de geografias que até há bem pouco tempo eram comuns e populares. Esta crescente supressão do espaço público tem uma clara meta anti-democrática: expulsar do território da cidade todos aqueles que não são consumidores.

design hostil
Neste território marginalizador, o policiamento inscreve-se igualmente no design urbano do espaço público: barreiras em volta do lixo de restaurantes e supermercados para torná-lo inacessível a mexidas; bancos onde não é possível alguém deitar-se; paragens de autocarro onde é impossível abrigar-se da chuva; obstáculos colocados ao nível do solo em zonas cobertas para impedir alguém de aí pernoitar; gradeamentos impedindo o acesso a lugares abrigados; etc. A finalidade deste novo design é a mesma das câmaras de vídeo-vigilância: hostilizar grupos indesejáveis, como drogados, gangues, alcoólicos, refugiados ou sem-abrigo. Ele é complementado pela sistemática eliminação de infra-estruturas e elementos paisagísticos que servem as necessidades de quem vagueia pelas cidades, como balneários públicos ou sombras em  praças. Estas diferentes técnicas de segregação social visam purificar os centros das cidades da presença de pobres e, de um modo geral, de todos aqueles que são considerados inúteis para o desenvolvimento da economia capitalista. Elas servem para assegurar a valorização de mercadorias nas quais o sistema financeiro investe cada vez mais capital, como é o caso do imobiliário ou da hotelaria. A mera presença de pobres, mesmo que inofensivos, choca com a exploração turística e comercial das cidades, porque a visibilização da pobreza dissuade o consumo burguês. Os pobres tornaram-se o inimigo predilecto da cidade capitalista.

cidades criativas
Recentemente, os municípios implementaram um novo método para seleccionar o tipo de população que deve habitar o centro das cidades. Foi também com esse intuito que incluíram na sua agenda o tema das cidades criativas. Ao mobilizarem formas várias de dinamização cultural, os municípios procuram valorizar os seus centros enquanto ambientes inovadores e criativos, favoráveis à atracção de empreendedores e startups, que são hoje vistos como um pilar imprescindível para o crescimento económico. Este processo pressupõe a fuga dos residentes bem como o encerramento de associações populares e pequenos comércios que deixam de conseguir pagar as suas rendas, subitamente inflaccionadas pela chegada de novos habitantes e comerciantes com maior poder de compra. Este exemplo demonstra que a segregação social se tornou um processo subtil e complexo, determinado pela acção conjunta de agentes públicos e privados. O direito à cidade fica reservado aos assalariados considerados mais competentes, ficando excluídos aqueles que a moderna organização da economia tornou insignificantes ou supérfluos. A cidade capitalista revela-se assim como um território classista que faz incidir o regime de segregação do seu apartheid, já não sobre comunidades negras ou ciganas, mas sobre todos aqueles que deixaram de ser produtivos.


3. Funcionalização – toda a vida é gerida em função da eficiência e da produtividade
Ao capitalismo corresponde um modelo urbanístico que se começou a desenhar quando a fragmentação medieval deu lugar à centralização moderna. Dependente de um poder absoluto, este modelo impôs-se no período barroco, ordenando geografias urbanas que até aí se caracterizavam pela informalidade e o caos. Desta forma, veio responder, por um lado, às exigências de mobilidade e eficiência da produção e do consumo capitalistas; e, por outro, à necessidade de policiamento e controlo de populações politicamente cada vez menos submissas. As formas geométricas que definem a cidade barroca permitiram vigiar e disciplinar os corpos de uma forma nova. O seu modelo de ruas rectilíneas, avenidas largas, praças rectangulares e quarteirões uniformes, visível por exemplo na baixa pombalina e mais tarde nos boulevards de Haussmann, seria aprofundado pelo programa funcionalista do século xx.

funcionalismo
Foi na reconstrução do pós-guerra que a planificação funcionalista, teorizada nos anos trinta, pôde ser amplamente implementada, tornando-se até aos dias de hoje o principal modelo utilizado na organização territorial das metrópoles. Disciplinar e racionalizar a vida urbana é a missão deste austero programa. Apoiado sobre a eficiência e o utilitarismo, dividiu o território urbano em zonas, funcionando cada uma como uma unidade individual separada. Enquanto uma dispendiosa rede de circulação estabelece o contacto entre elas, a velha rua, outrora favorável aos encontros, às partilhas e à conservação da vida colectiva, torna-se obsoleta. Toda a cidade está agora desenhada para impedir que possam germinar espontaneamente relações sociais e que os habitantes ocupem o seu tempo com actividades anti-utilitárias.

mobilidades & organização logística
Neste território fragmentado pelo racionalismo utilitário do capital, são as necessidades económicas do sistema que estimulam os habitantes a um movimento pendular constante. Num contexto em que a produção e o consumo de massas não podem abrandar em nome do sucesso do projecto capitalista, as mobilidades e a velocidade tornam-se vitais para articular as diferentes zonas num todo orgânico, produtivo e eficiente. A organização logística converte-se assim numa actividade central na gestão do território. É ela que deve assegurar a eficiência e a optimização das redes de circulação das quais depende o fluxo ininterrupto de matérias-primas, bens, serviços, informações e pessoas, essenciais para a reprodução mercantil. Esta organização material e tecnológica contribui fortemente para o desenho estandardizado de arquitecturas, avenidas, áreas comerciais e vias de circulação, tornando possível a gestão racional de todo o processo económico. É assim que o território urbano se torna superplanificado.

smart cities
O desenvolvimento das chamadas smart cities visa o aperfeiçoamento desta superplanificação, de forma  a que absolutamente nada seja deixado ao acaso. A sua evolução está a mostrar que o futuro da vida nas cidades passará pela sua cuidadosa monitorização, através de painéis de comando de alta precisão. Segundo o  porta-voz da smart city que o governo egípcio está a construir a 40km do Cairo, para receber 5 milhões de pessoas vindas da velha capital, poluída, insegura e congestionada, “uma smart city significa uma cidade segura, com câmaras e sensores por todo o lado. Irá ter um centro de comando para controlar a cidade inteira." Na cidade do futuro, que é já cada vez mais a cidade do presente, cada habitante viverá completamente isolado do tecido social, mas estará integrado em sistemas inteligentes que raciocinam por si. O capitalismo prossegue assim um processo que inaugurou quando o urbanismo geométrico da cidade barroca veio retirar espontaneidade e liberdade à vida urbana. A smart city é um passo em frente neste longo processo de racionalização e normalização urbanas. A sua grande inovação é fazer o objecto da governação transferir-se do homem para o seu ambiente tecnológico, tornando praticamente desnecessárias as patrulhas da polícia e do exército.

governabilidade
Neste território cada vez mais ordenado e eficiente, não é deixado espaço para a sociabilidade, a liberdade, nem sequer o imprevisto. Ele encontra por isso o seu inconcebível inimigo no bêbedo que vagueia livremente pelas ruas, sem rumo definido, dono do tempo e, em boa medida, também do espaço. Pelo contrário, o consumidor, que se submete docilmente à ordem inscrita no território, é o habitante protótipo da smart city. E ninguém melhor do que o obediente turista desempenha hoje esse papel. Ao identificar plenamente a sua própria actividade com o consumo de mercadorias e serviços e ao estar habituado a cumprir escrupulosamente roteiros predefinidos, ele revela uma predisposição inata para ser guiado e integrado em sistemas de controlo. O turista pode assim ser considerado o cidadão modelo da smart city totalitária. Reúne em si o vasto conjunto de propensões que o capitalismo gostaria de ver disseminadas por cada um de nós. Ele é individualista, é passivo, é espectador, submetendo-se voluntariamente a todas as normas de segurança e vigilância. Trata-se, em suma, do mais governável dos actores urbanos.


4. Mercantilização  a cidade não se habita, consome-se
Lewis Mumford observa que, desde o século XVII, o estímulo para a expansão urbana vem essencialmente de comerciantes, investidores e proprietários. Desde este período, a cidade, outrora favorável à vida colectiva, foi gradualmente sendo concebida como um negócio privado, estranho às relações pessoais de natureza associativa que até aí lhe eram naturais. Os seus terrenos e edifícios, longe de se distribuírem pelos habitantes em função das suas necessidades de habitação, passaram a transaccionar-se enquanto mercadorias.

origem da metrópole
É precisamente a afirmação desta natureza mercantil que explica o facto mais relevante na história recente da cidade: a sua diluição na metrópole, ou seja, a explosão dos subúrbios. A supressão de limites quantitativos ao crescimento da cidade explica-se menos por uma qualquer necessidade expressa pela colectividade do que pelo mero crescimento do capital. Se no capitalismo os lucros devem crescer incessantemente, também na geografia da cidade capitalista se devem multiplicar permanentemente os investimentos. Esta integração da cidade no desenvolvimento incessante da economia capitalista representa a sua dissolução na metrópole. Encontrando-se num estado de expansão permanente, a metrópole é a expressão perfeita do gigantismo do projecto capitalista.

regresso à cidade
No entanto, nas últimas décadas, no seio das classes mais abastadas, surgiu um movimento de reacção às paisagens globais resultantes do urbanismo austero e funcionalista que caracteriza as metrópoles. Com a brutal uniformização das paisagens suburbanas, desenhadas em função de critérios estritamente funcionais, os bairros citadinos mais antigos, que entretanto se chamam históricos, seduzem agora uma burguesia que passou a valorizar o pitoresco, o local e o típico. Os investidores têm sabido surfar melhor do que ninguém esta onda de redescoberta neo-romântica dos encantos da velha cidade. Descobriram que, para poderem explorá-la devidamente, deveriam dotá-la, não apenas de higiene, conforto e segurança, mas também de prestígio, carisma e glamour. Doutro modo, não seria possível torná-la uma mercadoria única, competitiva e exclusiva, inacessível à maioria, mas que confere status e distinção a quem a consome. A mercantilização da velha cidade tem ocorrido mediante dois processos que se tornaram indissociáveis: a gentrificação e a turistificação.

gentrificação e turistificação
Enquanto a gentrificação é espoletada quando uma parte da classe média crescida na periferia urbana, mas com aspirações culturais, se deixa seduzir pelo ambiente espontâneo, liberal e carismático dos bairros populares do centro, a turistificação resulta da atracção que estes mesmos bairros, repletos de história, exercem sobre viajantes ávidos de representações consumíveis de identidades locais. Tanto a gentrificação como a turistificação fazem disparar os investimentos especulativos no comércio, no património e na habitação, inflaccionando os seus preços. Visto que ambos os processos tendem a convergir para as mesmas zonas das cidades onde dinamizam os mesmos negócios, torna-se por vezes difícil distinguir quem, numa dada zona que fora subitamente mercantilizada, faz parte do processo de turistificação e quem, por sua vez, participa da gentrificação.

actuação estatal
Acresce notar que os poderes públicos não assistem passivos a esta revalorização mercantil da velha cidade e que contribuem decisivamente para torná-la menos um bem comum, apropriável pelas pessoas, do que um espaço dirigido à pura circulação de capital, que exclui e marginaliza quem não integre o mercado. Ao contrário do que se costuma afirmar, a cidade mercantilizada resulta, não apenas do livre funcionamento do mercado neoliberal, mas de uma autêntica parceria público-privada, já que articula autarquias, banca, ministérios diversos, fundos imobiliários e instituições europeias de financiamento. As autarquias, por exemplo, apostam hoje fortemente no marketing das suas cidades, publicitando-as como autênticas marcas registadas, enquanto política de promoção turística e de captação de investimento externo. Paralelamente, são criados programas de requalificação urbana, como foi o célebre Polis, que adaptam as zonas mais privilegiadas das cidades às exigências paisagísticas, ambientais, arquitectónicas e infraestruturais das classes gentrificadoras e turísticas. Outro campo de acção da administração pública para levar novos bairros ao roteiro burguês tem sido a estratégica criação de grandes projectos dinamizadores, como pólos culturais junto de bairros populares ou hubs empresariais em zonas industriais abandonadas. Importa finalmente salientar que, enquanto implementa estes programas e projectos, o poder público não coloca paralelamente em prática políticas de fixação de populações com menos recursos junto das zonas intervencionadas, as quais se tornam por isso, inevitavelmente, parte do território gentrificado e turistificado.


Metrópole versus cidade? – qualquer geografia capitalista será sempre uma expressão da nossa impotência
A situação urbana actual, onde as quatro grandes dinâmicas descritas – separação, segregação, funcionalização, mercantilização – se interseccionam e retroalimentam é definida por duas tendências contraditórias. Por um lado, a metrópole estende os seus longos tentáculos a periferias cada vez mais distantes, aí criando novas centralidades residenciais, comerciais e laborais, num processo de homogeneização do território iniciado durante a reconstrução funcionalista do pós-guerra. Por outro, assiste-se por toda a parte à reemergência glamourosa da velha cidade que, depois de um longo período de esvaziamento e desprezo, atrai agora, enquanto mercadoria exclusiva, uma burguesia romântica que se fartou do ambiente deprimente da periferia metropolitana. A metrópole monótona e difusa e a velha cidade requalificada constituem-se assim como os dois fragmentos de um mesmo mundo urbano dividido.

Enquanto que a metrópole exige aos habitantes que se entreguem à vertigem da circulação solitária e frenética entre não-lugares igualmente despersonalizados, nos quais deverão sobretudo realizar consumos anónimos e instantâneos, a cidade, por sua vez, apresenta-se como sendo contrária ao isolamento social e afectivo e ao deserto cultural que reinam na metrópole. Explora por isso o património, a memória e a identidade de modo a criar um território carismático, fotogénico e criativo, repleto de animação; uma mercadoria vendável a uma classe média que encontrou no acesso à cultura a sua última fonte de distinção e prestígio. De um lado da vida urbana temos assim a rápida dissolução da colectividade, fomentada pela autoestrada, o hipermercado, os blocos densos de apartamentos, o fast food ou o shopping. Do outro, a ilusão de cultura, cosmopolitismo e comunidade que promovem a ciclovia, a praça repleta de esplanadas, a mercearia gourmet, o restaurante de autor e o comércio de proximidade. Em suma, se a metrópole deve apenas ser rápida e friamente atravessada, a cidade pode ser cuidadosamente admirada e fotografada.

Esta contradição entre cidade e metrópole é, no entanto, mais frágil do que parece pois, como vimos ao longo do texto, ambas são hoje mobilizadas pelo mesmo projecto capitalista de impor unilateralmente à geografia e à sociedade as dinâmicas que perpetuam a sua reprodução. Conforme  atribui  retorno aos investimentos que são realizados nestes territórios, a sua gestão público-privada dispensa a participação da comunidade, à qual fixa autoritariamente cada um dos trajectos quotidianos que a impedem de se apropriar do espaço-tempo, enquanto promovem a grande festa do marketing, da especulação e do consumo. É exactamente aqui, nesta alucinada sobreposição do júbilo egoísta da mercadoria às diferentes necessidades do bem-estar colectivo, que qualquer geografia capitalista revela a sua implacável coerência.


Nota da edição
Este texto serviu de base a uma comunicação feita durante as II Jornadas “Cidade em Revolta - Entradas e Saídas da Ruína Capitalista”, que decorreram no Porto a 8 e 9 de Dezembro de 2018.

Pedro Duarte
Historiador e autor no blog l'obéissance est morte

Ficha Técnica
Data de publicação: 05.06.2019
Edição #23 • Primavera 2019 •