Se, em
1840, Pierre-Joseph Proudhon dizia no seu famoso libélo que “A propriedade é um
roubo”, hoje, talvez afirmasse, antes, que “A finança é um roubo”. Nesta última
década, descobrimos, um tanto ou quanto amargamente, que o nosso destino
político estava, afinal de contas, nas mãos de uma estranha e misteriosa
entidade a que chamavam os “Mercados”. Abruptamente, a nossa linguagem
quotidiana foi invadida por um aparato terminológico que desconheciamos em
absoluto: “agências de rating”, “activos tóxicos”, “défice”, “dívida”. Descobrimos,
então, que aquilo a que se chamava finança não era apenas o movimento exótico
das bolsas, mas um “jogo” infinitamente complexo e omnipresente cujas peças,
afinal, eramos nós próprios, cada um de nós. Como é que foi possível uma tal articulação
e inscrição minuciosa da vida nos sistemas financeiros, como foi o caso evidente
(e trágico) da crise do subprime nos
EUA?
Ora,
se a finança é essencialmente uma forma de obter lucro fora dos processos
produtivos tradicionais, isto significa que já não é apenas na relação capital-trabalho, mas no terreno da
própria vida (da re-produção biológica
e da produção social) que se joga, hoje, a acumulação
de capital (ou melhor, onde se dá a intensificação dos mecanismos de
exploração): isto é, no terreno da
habitação, da saúde, da educação, da segurança social. Aí bem no centro da vida
privada e da vida colectiva. Talvez, assim, se possa perceber melhor a guerra
em curso pela privatização dos serviços do Estado social, pela individualização
das protecções sociais, pela desregulação permanente de sectores, como o
mercado imobiliário.
Mas
desenganem-se todos aqueles que pensam que a finança é apenas um excesso ou um desvio
que se pode corrigir, regular ou moralizar. As instituições democráticas não só
estão, hoje, totalmente absorvidas pela lógica de funcionamento do mercado e da
concorrência, como estão absolutamente capturadas pelo ciclo infinito de
reprodução de dívida e pelas dependências de capital estrangeiro cujos fluxos offshore não conseguem controlar.
Ora,
Maurizio Lazzarato tem vindo a dar um contributo extraordinariamente valioso
para compreender essa inscrição minuciosa da vida na finança, ao encontrar na
relação credor-devedor e no mecanismo
da dívida, precisamente, o modo fundamental
de operação da máquina financeira. Como o próprio escreve, em «La
fabrique de l'homme endetté» – um livro cuja tradução para português se impõe
–, devemos ver a finança como uma “economia da dívida”, um enorme mecanismo de
gestão das dívidas públicas e privadas.
Mas,
sobretudo, Lazzarato, mostra-nos que a dívida, longe de ser uma mera relação
económica, é uma relação de poder (isto é, de dominação) que implica formas
específicas de controlo e exploração da subjectividade e onde está em causa a
produção de um sujeito específico: o homem
endividado, com todos os seus deveres, obrigações, com toda a sua moralidade
implícita.
Quer
seja a dívida soberana do Estado (que nos prende colectivamente a um pagamento
irrealizável), quer seja a dívida individual do crédito à habitação (com a
flutuação sempre imprevisivel das taxas), a dívida é sempre uma forma de
assegurar um controlo biopolítico da população. E, mais, a dívida, ao comprar antecipadamente
o tempo por vir, o “tempo futuro”, como escreve Lazzarato, “cria aquela
estranha sensação que vivemos numa sociedade sem tempo, sem possibilidade, sem
uma ruptura previsível”.
Torna-se,
agora, mais claro o verdadeiro objectivo dos reptos infatigáveis de “menos
Estado” que não pretendem libertar a economia do peso inaudito do Estado (como se
este não fosse já e sempre uma função da economia), mas que servem apenas para
fazer proliferar e generalizar os mecanismos de extracção de renda (na saúde,
na educação, na habitação). O Estado tem de ser mínimo para que a dívida do homem endividado possa ser máxima. A finança é, por isso, podemos dizer, a conversão da totalidade da vida
(biológica e social) em possibilidade de renda (através da dívida).
Assim,
ao colocar a luta de classes no
terreno da relação entre devedor-credor
e não, exclusivamente, na relação trabalho-capital,
Lazzarato oferece-nos uma ferramenta conceptual essencial para compreender a
economia financeira. Mas oferece-nos, ainda, a possibilidade de pensar uma
forma de resistência e de acção política capaz de interpelar as condições colocadas
pelo Neoliberalismo. Na era em que capital
e vida coincidem absolutamente, em que a vida está totalmente integrada e
consumida numa máquina de reprodutibilidade financeira, numa máquina produtiva
permanente e sem fim, a recusa do homem
endividado não poderá deixar de ser uma recusa
do trabalho. E, por isso, não será coincidência que um dos mais recentes
livros de Maurizio Lazzarato seja, precisamente, “Marcel Duchamp and the refusal of work”. Diz o artista francês,
citado por Lazzarato:
“Eu não sou
fascista, mas penso que a democracia não nos trouxe algo de muito racional... É
uma vergonha que sejamos ainda obrigados a trabalhar para sobreviver...,
obrigados a trabalhar para existir – é, de facto, uma desgraça.”
E Lazzarato
comenta, logo a seguir:
“A Casa para
Adultos Preguiçosos, que Duchamp queria abrir, onde o estipulado era que ninguém
podia trabalhar, pressupõe uma reconversão da subjectividade e um trabalho sobre
o “eu”, porque a preguiça representa uma forma diferente de habitar o tempo e o
mundo”.
Precisamente,
esse tempo e esse mundo que, na «economia da dívida» em
que vivemos, já estão sempre pressupostos, já estão sempre comprados, isto é,
já estão sempre encerrados.
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Nota da edição
Texto
de apresentação da conferência de Maurizio Lazzarato “O Império da Dívida”, no
Fórum do Futuro, Porto, dia 5 de Novembro de 2018.
Imagem
Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal
Punkto, investigador no CEAU e assistente convidado na FAUP.
Ficha Técnica
Data de publicação: 08.11.2018
Etiqueta:
Pensamento
\ Crítica