• Mapa Crédulo, Mulher Artista, Realidade Cruel • Mariana Morais & Sofia Ponte





Este texto incide sobre o Mapa de Arte Pública do Porto (MAPP) publicado em julho 2017. Este mapa-roteiro impresso e distribuído gratuitamente por iniciativa da sua entidade promotora, a Câmara Municipal do Porto (CMP), reúne um conjunto significativo de esculturas, monumentos, painéis e murais instalados na cidade desde o século XIX. Considerando que cartografar qualquer dimensão da realidade é frequentemente um desafio, que porções da cidade do Porto vemos representadas neste mapa-roteiro? Tendo igualmente em conta que nos encontramos cada vez mais familiarizados com mapas e roteiros, seja qual o seu propósito, que sistemas de valores se propôs este mapa organizar? Esta reflexão problematiza a reduzida participação de mulheres artistas no panorama de arte pública da cidade e espera contribuir para um questionamento da presumida neutralidade deste tipo de documentos. 

Presentemente, assistimos a transformações importantes na esfera pública levadas a cabo por fenómenos sociais como Time's Up (f. 2018), Black Lives Matter (f. 2013) ou #Me Too (f. 2006). Trata-se de fenómenos que na transição do ano de 2017 para 2018 contribuíram para agitar a opinião pública sobre o abuso de poder e a assimetria de oportunidades existentes entre homens e mulheres. Apesar da imprevisível visibilidade que este tema adquiriu na nossa sociedade, as mudanças em concreto fazem-se sentir muito lentamente. Quando nos propusemos a analisar o MAPP, a reduzida participação de mulheres artistas era um resultado mais ou menos esperado.

De acordo com a Câmara Municipal do Porto, o MAPP é um prolongamento do seu Programa de Arte Pública instituído, em 2015, pelo então vereador da cultura Paulo Cunha e Silva (2013-2015). É um programa que tem como objectivos a valorização da cultura da cidade e a promoção das suas esculturas e painéis públicos (Andrade 2017). Pretende ainda contribuir para “uma eficaz gestão e divulgação deste património, testamentário da passagem do tempo e da história” através de cinco rotas temáticas: a Rota Histórica, a Rota da Água, a Rota das Letras, a Rota da Escola das Belas Artes e a Rota da Arte Contemporânea (CMP 2017). O mapa-roteiro organiza dois séculos de produção de arte pública na cidade, sendo “O Porto” (1818) do escultor João Joaquim Alves de Sousa Alão (s/d-1837) na Praça da Liberdade, a escultura mais antiga e “Self-Portrait as a Fountain (Fat Chance Bruce Nauman)” (2017) de Julião Sarmento (n.1946) nos jardins da sede da empresa Águas do Porto, a escultura mais recente. Em 2018, foi instalado o conjunto escultórico, “Três Metáforas de Árvore para uma Árvore Verdadeira” (2018), de Alberto Carneiro (1937-2017) no Largo de São Domingos.


Imagem de capa e imagem 2: Frente e verso do Mapa de Arte Pública do Porto. Fonte: Câmara Municipal do Porto.

O Mapa de Arte Pública do Porto, propriamente dito, é um mapa-roteiro em papel que mede 100 cm × 67 cm quando estendido, e que, quando dobrado em harmónio reduz para 12,5 cm × 1cm × 22cm, aproximadamente. Não cabe facilmente num bolso. Uma das suas faces é preenchida por uma porção geográfica da cidade onde se encontram distribuídas as cinco rotas temáticas propostas. Na outra face, existe um índice das esculturas seleccionadas com indicação da autoria, ano, título, localização, material e um breve texto para as obras que integram os eixos temáticos (imagens 1 e 2). A informação está em português e, segundo a Câmara Municipal do Porto, será disponibilizada uma versão em inglês em breve. Os textos que acompanham o MAPP e as suas rotas são descritivos e vagos na indicação quanto às opções que levaram à organização das obras em rotas para “perdermo-nos nas ruas e praças recheadas de arte, das várias épocas” (CMP 2017). Que ruas ? Que praças ? Que épocas? Que ideia de cidade?
Embora tenhamos conhecimento de ter havido outras obras instaladas no espaço urbano da cidade, este texto foca-se apenas nos dados incluídos no MAPP. Em números, este lista um total de duzentas e dezanove obras [1]. Este conjunto de trabalhos envolve cento e trinta e quatro artistas dos quais cento e dezasseis são homens, doze são mulheres e seis não foram identificados e, por isso, surgem indicados como desconhecidos. Os cinco itinerários temáticos destacam cinquenta obras onde estão incluídos quatro trabalhos realizados por mulheres, sendo que dois se referem a co-autorias com artistas homens. Diante desta realidade, fomos procurar compreender com maior rigor por que existe uma participação tão assimétrica entre artistas mulheres e homens na arte pública da cidade. Por outras palavras, como é a relação entre as mulheres artistas e a arte pública no Porto?

1. Sobre os trabalhos que não estão indicados neste mapa por terem sido objecto de remoção ou de destruição, consultar José Guilherme Abreu (2005).

A invisibilidade da mulher artista na arte não é uma questão recente. Constatamos que a desequilibrada participação entre artistas homens e mulheres reflecte a pouca valorização que tem sido dada ao trabalho e aos escassos incentivos à formação artística das mulheres. A presença reduzida de mulheres em programas de arte pública não acontece apenas em Portugal. Ao examinarmos as cinco edições da emblemática exposição internacional Skulptur Projekte Münster (f.1977), na Alemanha, damos conta de idêntico desequilíbrio. Embora as suas duas últimas edições tenham contado com perto de 40% de mulheres artistas, no total das cinco edições, participaram cento e vinte e oito artistas homens e quarenta e nove mulheres artistas (Skulptur Projekte Archiv, s.d.).

Temos noção que o enquadramento social das mulheres em Portugal mantém-se, em geral, mais conservador e tradicionalista. Filipa Vicente (2012) lembra que um factor que pode ter contribuído para isso, é o facto dos movimentos e teorias feministas terem demorado a propagar-se na nossa sociedade, onde os direitos mínimos das mulheres só começaram a ser assegurados com o fim do regime ditatorial (1933-1974). Portanto conhecer, estudar e compreender a actuação das mulheres nas artes plásticas em Portugal, ou em qualquer outro domínio, começou tardiamente em relação a outros países. Apesar de se ter vindo a produzir alguma historiografia sobre as actividades das mulheres, apenas em 2015 se inaugura um programa doutoral sobre Estudos Feministas no país. Este programa, da iniciativa do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, pretende, por um lado, “gerar consciência crítica do sujeito no processo de conhecimento” e “dos discursos normativos”, por outro, “adquirir conhecimento sobre a pluralidade de vivências de mulheres”. Aguardamos com expectativa e interesse os resultados das investigações em curso.

Mapa crédulo
De acordo com Antonis Antoniou (2013), o mapa é uma ferramenta secular que ajuda a compreender conceitos amplos, perceber padrões e descobrir camadas de significados da realidade. É muito comum sentirmo-nos familiarizados com os seus símbolos e convenções sem os questionar. Antoniou refere que  até para um observador mais imparcial “mapear é sujeitar a verdade a preceitos e ideologias” (2013: 3). Uma leitura atenta ao MAPP, conduz à percepção de que o convite optimista da CMP para um transeunte “se perder pelas cenográficas ruas do Porto” incide sobre a área considerada Património Mundial pela Unesco, desde 1996, e a área a oeste da cidade, mais abastada. O MAPP não propõe, por exemplo, “desvendar” as paisagens mais a oriente da cidade, ligadas à importante história industrial da cidade. A única escultura que aparece dentro dos limites geográficos da freguesia de Campanhã, e que está próxima da fronteira com a freguesia do Bonfim, é “Pásion” (2007) de Acácio Carvalho (n.1952) no Complexo Desportivo Monte Aventino. Qual é, então, o conceito de arte pública veiculado por este mapa-roteiro?

A definição de arte pública proposta pelo MAPP inclui estatuária, monumentos, esculturas e painéis cerâmicos – obras de carácter permanente realizados em betão armado, pedra, bronze, granito, cimento, mármore, azulejo, madeira, ferro, entre outros. Segundo o extenso levantamento realizado por José Guilherme de Abreu (2005), as obras instaladas entre 1818 e 1950 são predominantemente figurativas, de carácter decorativo e comemorativo de heróis portugueses – chefes militares e de estado, navegadores, escritores e médicos. Um número considerável destas obras foi produzido no âmbito da política cultural do Estado Novo, mais precisamente sessenta e duas. Estas, segundo Abreu, têm uma índole nostálgica alinhada com o carácter imperialista do regime de António Oliveira Salazar (1889-1970). A ditadura em Portugal conduziu a sua comunidade artística a um grande isolamento, tornando-a refém do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), mais tarde Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), coordenado por António Ferro (1895-1956). Este departamento funcionava de forma idêntica a outros regimes fascistas europeus, nomeadamente o italiano, que tinha como objectivos “conciliar” aquilo que considerava serem as suas bases ideológicas, tais como, Deus, Pátria, Família e Trabalho com o progresso industrial (Matos 2007). Materializando a política cultural de acordo com estas funções cabia às câmaras municipais a organização da produção e instalação de obras de arte pública (Elias 2005).

Foi neste contexto que se deu a primeira participação de uma mulher na produção de arte pública que o MAPP regista e que não foi, sem surpresa, a de uma escultora. Em 1947, a arquitecta Maria José Marques da Silva (1914-1996) assume, juntamente com o arquitecto David Moreira da Silva (1909-2002), a responsabilidade de finalizar a construção do “Monumento aos Heróis das Guerras Peninsulares”, 1909-1952, na Rotunda da Boavista. Este monumento iniciado pelo seu pai, o arquitecto José Marques da Silva (1869-1947), e o escultor Alves de Sousa (1884-1922), contou ainda com a participação dos escultores Sousa Caldas (1894-1965) e Henrique Moreira (1890-1979) (Matos 2012). [2] Segundo o MAPP, somente em 1971 surge outra contribuição de uma mulher artista na cidade. Irene Vilar (1931-2008), com um forte percurso profissional como escultora, executou a estátua de homenagem ao médico Garcia de Orta, instalada no Largo de Tomé Pires. Vilar é a artista mais prolífica neste documento com cinco contribuições, das dezoito realizadas por mulheres. [3] O MAPP identifica obras de apenas doze mulheres no espaço urbano da cidade e estas obras surgiram nos últimos sessenta e sete anos, entre 1950 e 2017. São elas, para além das mencionadas, Lídia Vieira (n. 1936); Lika Mutal (Peru, 1939-2016); Graça Costa Cabral (1939-2016); Coojse Van Bruggen (Holanda-EUA, 1942-2009); Clara Menéres (1943-2018); Maria Nordman (Alemanha-EUA, 1943); Janet Echelman (EUA, 1966); Joana Vasconcelos (n.1971), Ana Carvalho (n.1973) e Dalila Gonçalves (n.1982).

2. Em 1955, Marques da Silva e Moreira da Silva, em conjunto com Henrique Moreira (1890-1979), concluem uma outra escultura para a cidade: “O Triunfo da Indústria”, 1947-1955, instalada na Rua de Sá da Bandeira (Matos 2007).
3. Na década de 1980 são instalados outros três trabalhos de Vilar: “Luís de Camões”, 1980, escultura encomendada pela CMP para as comemorações dos 400 anos da morte do poeta; “Universo 3+4”, 1987, nos jardins da Empresa Águas do Porto; e “Guilhermina Suggia”, 1989, uma encomenda da Fundação do Engenheiro António de Almeida (Abreu, 2005). Em 2001, Irene Vilar faz uma última contribuição para a estatuária pública da cidade com a escultura em bronze “Anjo Mensageiro” ou “Anjo Gabriel”, localizada no Jardim da Foz do Douro.

Mulher artista
Segundo o MAPP, a instalação de esculturas na cidade intensificou-se a partir de 1950, sendo produzidas vinte e três obras, em contraponto com as cinco obras realizadas na década de 1940 (imagem 3). Estas por sua vez foram realizadas por vinte e cinco artistas, em contraste com os dez escultores envolvidos na década anterior. Este aumento de esculturas e de artistas na cidade deve-se ao ingresso de Salvador Barata Feyo (1899-1990) na Escola de Belas Artes do Porto (ESBAP), em 1949, que criou “condições pedagógicas e culturais necessárias à modernização do ensino artístico” promovendo “responsabilidade artística, mas também profissional, social e cultural” (Abreu 2005: 216).

Imagem 3: Total de obras da arte pública instaladas no Porto entre 1818 e 2017. Fonte: Mapa de Arte Pública do Porto.

Ainda de acordo com o MAPP, foi na década de 1980 que se assistiu a uma maior produção de esculturas e um maior envolvimento de artistas no espaço urbano da cidade. Neste período foram instaladas trinta e cinco obras, realizadas por vinte e seis artistas. A década com maior presença de esculturas no espaço urbano da cidade é também a década que assinala um maior envolvimento de artistas mulheres nesta actividade (imagem 4). Em 1985, conta-se a instalação de obras de três mulheres, Lika Mutal, Graça Costa Cabral e Lídia Vieira, e este maior número de artistas mulheres é atribuído à realização do Simpósio Internacional de Escultura em Pedra, promovido pela CMP e o AR.CO – Centro de Arte de Comunicação Visual, uma reconhecida associação cultural sem fins lucrativos dedicada ao ensino e à experimentação artística em Lisboa. Este simpósio nasceu do esforço da CMP em requalificar o seu espaço urbano, através de um formato mais inovador do que as iniciativas tradicionalmente dinamizadas por si (Abreu 2005). Não sendo por acaso que Paulo Vallada (1924-2006), então presidente da Câmara Municipal do Porto, sublinha que neste evento os escultores foram convidados a produzir um “acto de livre expressão do poder criativo” para o espaço público (AR.CO 1985).

Imagem 4: Participação de artistas na produção de arte pública na cidade do Porto, entre 1810 e 2017. Fonte: Mapa de Arte Pública do Porto.

As obras de Mutal, ambas “Sem título”, encontram-se no Jardim Paulo Vallada, a escultura de Vieira, “Sem título”, está nos jardins do Palácio de Cristal e “As Sete Partidas do Mundo” de Costa Cabral no Largo de António Cálem. Apesar de a década de 1990 também reflectir uma intensa actividade de produção e instalação de esculturas na cidade, com vinte e seis obras realizadas por dezassete artistas, apenas uma foi produzida por uma mulher, neste caso, Clara Menéres. Em 1993, a Fundação Friedrich Ebert encomendou a esta artista o “Monumento a Willy Brandt”, que se situa na Avenida do Marechal Gomes da Costa e que contou com a colaboração do arquitecto Clemente Menéres Semide (n.1963).

A produção e instalação de obras de arte pública no Porto no século actual conta para já com quarenta e nove obras. Oito são de artistas mulheres. A partir do ano 2001, o MAPP aponta três trabalhos instalados por ocasião de Porto Capital Europeia da Cultura, nomeadamente, “For a New City – Para uma Cidade Nova”, de Maria Nordman, “Plantoir [Colher de Jardineiro]”, de Claes Oldenburg (n.1929) e Coosje Van Bruggen, ambos no Parque de Serralves, e o conjunto escultórico “Treze a Rir uns dos Outros”, de Juan Muñoz (1953-2001) nos jardins da Cordoaria. Aparentemente na definição de arte pública da CMP enquadram-se duas obras que estão localizadas nas instalações da Fundação de Serralves e que só podem ser visitadas mediante aquisição de bilhete. Existem ainda outros três trabalhos de artistas mulheres instalados na cidade por iniciativa privada e um trabalho por iniciativa municipal. As encomendas do Boavista Futebol Clube aos artistas José Rodrigues (1936-2016) e Ana Carvalho que resultou na escultura “Panteras” (2001); do Hotel Sheraton a Ana Carvalho que se materializou no “O Guardião” (2004); e a do restaurante Steak’n Shake a Joana Vasconcelos que executou um painel cerâmico para a sua fachada lateral, em 2017. As Câmaras Municipais do Porto e de Matosinhos encomendaram a Janet Echelman, a propósito da requalificação urbana viabilizada pelos Programas Polis, um projecto que deu origem à instalação “She Changes” (2005) na Rotunda da Foz (Porto 2017).

Através do MAPP, podemos compreender que os incentivos mais comuns para a produção de arte pública realizada por mulheres são fruto de encomendas de associações, da CMP e de convites à participação em simpósios, enquanto que a maioria das solicitações aos artistas homens, vieram ainda do Estado e de alguns grupos políticos. Os três simpósios que deram a origem a obras instaladas na cidade do Porto foram o de 1985, já mencionado, o Simpósio de Escultura Soares da Costa, realizado no Campo 24 de Agosto, em 2010, e o Simpósio de Escultura em Granito realizado no Jardim das Virtudes, em 2013, os dois últimos promovidos pela Cooperativa Árvore (Abreu 2013: 11), onde apenas foram convidados a participar artistas homens.

A “desatenção” que curadores, directores e personalidades ligadas às artes plásticas em geral, têm dado à actividade de artistas mulheres tem sido analisada por diversas historiadoras e investigadoras. Estas frequentemente concordam que apesar dos desafios profissionais comuns a ambos os géneros, para as mulheres há muito mais barreiras a serem superadas (Esteves & Castro 2003; Robinson 2015). Também o reduzido número de referências historiográficas sobre as práticas artísticas das mulheres na história e crítica da arte em Portugal é, ainda, de acordo com Filipa Vicente (2012), a forma mais frequente de defender a ideia de que a relação de género não interfere na identidade nem na prática das artistas. Constatamos que as restrições sociais impostas às mulheres, tais como a necessidade de escolher entre o trabalho e a família, a pouca aceitação das mulheres profissionalmente obstinadas, a pouca aceitação das que optam por se manter solteiras e das que não concretizam uma maternidade continuam fortes. Não é à toa que Marina Abramovic (n.1946) menciona, em entrevista ao jornal Tagesspiegel, em 2016, que ter filhos teria sido um “desastre” para sua carreira de artista plástica (s/autor 2016). Filipa Vicente nota outro aspecto que tende a reflectir uma desvalorização da produção artística da iniciativa de mulheres. Segundo a autora, o uso do termo “mulher-artista” esteve durante muito tempo imbuído de preconceito, pois referia-se “a generalizações por parte da crítica em relação à criação artística feminina – uma mulher-artista tendia a representar ‘as’ mulheres artistas, enquanto um homem artista representava-se apenas a si próprio” (Vicente 2016: 16).

Lembramos que embora fosse permitido às mulheres participar em exposições promovidas pela Academia Portuense de Belas-Artes, somente em 1881 é que foram aceites enquanto estudantes de pleno direito nesta instituição. Contudo, o “pleno direito” pressupunha algumas ressalvas. Por exemplo, era-lhes vedada a participação nas aulas de modelo nu, o que, por sua vez, produzia uma série de limitações no desenvolvimento do seu conhecimento e prática na representação figurativa. Os incentivos que levariam as mulheres a dedicar-se à escultura eram ainda menores. Este ofício que exige trabalhar com materiais geralmente pesados e que requerem grande esforço físico, não era considerado apropriado para o “sexo frágil” (Nochlin 1989: 166). Susana Moncóvio indica que estes impedimentos também contribuíram para a fixação da “categoria de ‘amadora’ na base do processo de construção social da figura da ‘mulher artista’” (2016: 135). Uma análise à participação de mulheres artistas e de homens artistas no MAPP traz à luz, portanto, esta realidade cruel à qual muitas artistas têm sido submetidas.

Realidade cruel
Estamos diante de um mapa-roteiro realmente crédulo? Pensamos que sim, e confiante na promoção de uma narrativa florescente da cidade, sem perceber que as vozes ausentes estão a falar mais alto. Embora reconheçamos o importante empenho da Câmara Municipal do Porto em impulsionar a presença das artes plásticas na cidade, o MAPP tal como está trouxe à luz do dia, sem ter sido essa sua intenção, algumas questões que nos aventurámos a reflectir. Pensamos que a criação de um mapa-roteiro de arte pública pode ser uma boa oportunidade para produzir um documento mais flexível, interactivo e agregador sobre o património de uma cidade. Um documento que contribua simultaneamente para três debates.

o debate do conceito de arte pública
Será que impulsionar uma aproximação das mulheres artistas à cidade não contribuirá para avançar com uma representação mais síncrona com a “memória das gentes, das histórias do trabalho e das lutas” (CMP 2017) da diversidade dos membros da sua sociedade? Pensamos que a morte prematura de Paulo Cunha e Silva, em 2015, pode ter adiado o desenvolvimento de um conceito de arte pública onde “o funcionamento real da cidade é debatido” (Mari 2001) e a cidade “redescoberta” (Sociedade Porto 2001). Contudo, pensamos que se a CMP continuar a apoiar práticas artísticas, como as que encontramos em “Memória Amassada” (2004-15) de Dalila Gonçalves e em “She Changes” de Janet Echelman, estará a fazer um contributo admirável para ampliar o conceito de arte pública em Portugal (imagens 5 e 6).



Imagem 5: “Memória Amassada” de Dalila Gonçalves. Foto: Mariana Morais.
Imagem 6: “She changes” de Janet Echelman. Fonte: Câmara Municipal de Matosinhos.

o debate dos conceitos de cidade e cidadania
Para quem se dirige o esforço produzido pela CMP para organizar este mapa-roteiro? O MAPP apresenta uma imprudência pouco condizente com o empenho da CMP na promoção de eventos como o Fórum do Futuro (também da iniciativa de Cunha e Silva), cujo objectivo passa por “reflectir sobre questões fundamentais para as sociedades contemporâneas” (Fórum do Futuro 2014). Na verdade, o MAPP reúne várias obras produzidas e instaladas durante e de acordo com o regime ditatorial sem contextualizar historicamente esses objetos. O MAPP está mais próximo dos convencionais roteiros turísticos (CMP 1949; 1996; 2000; 2001; 2002; 2003; 2008; 2010) do que de um “museu a céu aberto”.

o debate para a igualdade entre géneros e um reconhecimento das artistas
É certo que a CMP, em conjunto com a Câmara Municipal de Matosinhos, tem alguma iniciativa em resgatar a memória de artistas como Aurélia de Sousa (1866-1922) (Vicente 2016). Fora isso é evidente que os números do Mapa de Arte Pública do Porto não são promissores. Pensamos que é primordial prestar atenção para a produção de arte pública a partir do novo paradigma que se está a formar, cada vez mais plural e menos universalista e não-binário. Precisamos atentar para o trabalho de mulheres, como Rosa Kliass (São Paulo, 1932), Maren Hassinger (Los Angeles, 1947) ou Huma Bhabha (Carachi, 1962) com a consciência de que os seus percursos espelham as suas lutas.


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Mariana Morais e Sofia Ponte
Mariana Morais é natural do Recife. Licenciada em Arquitectura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco, no âmbito do qual realizou o programa de mobilidade em Architectural Design na Parsons The New School for Design, em Nova Iorque. Frequenta o Mestrado em Arte e Design para o Espaço Público na Universidade do Porto. Vive no Porto.

Sofia Ponte é natural de Lisboa. Doutorada em Arte e Design, especialidade Estudos Museais, com o projeto de investigação “Transformar Arte Funcional em Objeto Museal” (2016). Leciona na Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, desde 2010. Membro integrado do i2ADS - Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Vive no Porto.

Ficha Técnica
Data de publicação: 20.11.2018
Etiqueta: artes \ escritas