Universidade • Ana Bigotte Vieira






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O texto que abaixo se republica foi escrito em 1999, a convite de José Neves, para uma edição especial - 25 anos do 25 de Abril - da revista da Associação de Estudantes do ISCTE. Então com 19 anos, acabada de sair da escola secundária e recém-entrada na Universidade como estudante de Sociologia (curso que viria a trocar por História Moderna e Contemporânea na mesma faculdade), nele procurava esboçar a minha desilusão com a Universidade, de onde não mais viria a sair. Se na altura era da condição de estudante que dava conta, as linhas então traçadas delineiam ainda algumas das críticas que hoje, como investigadora e docente precária, teço à mesma instituição. Do mesmo modo, e em negativo, é talvez possível encontrar as razões da insistência - porque compreender talvez seja, de facto, uma parte da ternura se sente pelas coisas que existem.
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UNIVERSIDADE. OS MALEFÍCIOS DA AERÓBICA DE MANUTENÇÃO E REPRODUÇÃO DAS COISAS
...uma não resposta ao que fazer com os seus dias - em todo o tempo do mundo.
No final das férias, quando foram afixados os resultados das candidaturas na reitoria, naquela noite em que, ano após ano, magotes de gente se acotovela a ver se entrou ou não na Universidade, podiam-se ver folhetos e cartazes com um discurso bizarro espalhado pelas paredes, chão e mão das pessoas:
 “Não queremos ser os melhores, queremos que nos caiba o melhor da vida."
 “Como pode ainda a energia juvenil suportar a escola?"
"Que continuam os jovens a fazer numa escola destas? Não terão mesmo nada de melhor a fazer das suas vidas?"
“Criação intensiva de estudantes consumíveis no mercado."
“SOU UM MENTECAPO E A PROVA VIVA DISSO MESMO É O FACTO DE AQUI ESTAR A PROCURAR RESPOSTAS PARA COMO PASSAR OS MEUS DIAS NOS PRÓXIMOS ANOS E DEPOIS NA VIDA.
NÃO TENHO IMAGINAÇÃO, MARAVILHO-ME POUCO COM AS COISAS E AFINAL DE CONTAS TAMBÉM NÃO TENHO GRANDES AMIGOS, não concebo sequer alternativa ao que é previsto.”
“Sou um chato, sou muito construtivo, TENHO MUITOS PROJECTOS E ACREDITO MUITO POUCO NELES."
"SOU ESTUDANTE. SOBREVIVO."
"ÀS VEZES, COM SORTE, EM CONCERTOS, FESTIVAIS, FÉRIAS E FINS-DE-SEMANA VENDEM-ME MOMENTOS EM QUE ME SINTO A VIVER: SERVEM COMO COMPENSAÇÃO E AJUDAM-ME A SUPORTAR UMA VIDA QUE NÃO TENHO CORAGEM DE REINVENTAR TODOS OS DIAS."
"REPITO: SOU UM MENTECAPTO."
“DEFINHO ACADEMICAMENTE”
"PORQUE É QUE EU QUERO MESMO ENTRAR NA FACULDADE?"
"SOU TÃO ESTÚPIDO!"
"Por que é que tenho de comprar um curso-pacote-de-futuro-em-pó se isso não é o que me apetece e se as garantias que ele dá são mínimas? Quais são as garantias que um mundo em decomposição oferece? Será que quero ajudar o mundo a criar bolor?"
“TENHO VONTADE DE CONTINUAR DE FÉRIAS”
"QUEM É QUE NÓS ESTAMOS A COPIAR?"
"QUERES MESMO ESPECIALIZAR-TE NUM ASSUNTO? QUAL DELES?"
"És mesmo imbecil."
"BESTA ACADÉMICA.''
"LIBERTAR DA SUJEIÇÃO O DESEJO DE SABER."
"UMA ESCOLA ONDE A VIDA SE ABORRECE.


E, no entanto, os resultados das candidaturas saíram, depois deixou de haver Verão, passou a ser Outono e no Outono as aulas começaram. Mesmo que seja a faculdade. Mesmo que se vá pouco as aulas. É que, embora não devesse ser assim, parece que o ritmo dos dias muda.
E agora isto: a propósito do 25 de Abril ou de outra coisa qualquer pedem-me dentro da faculdade um texto sobre a faculdade. Que há lugar previsto para a critica toda a gente sabe, aliás toda a gente tem opiniões concretas sobre assuntos concretos, e assuntos e explicações sobre as coisas é o que não falta. E tudo muito explicadinho e somos todos muito bem informados e estamos abertos a críticas. Então a crítica fica vazia como um copo sem vinho e depois usam o mesmo copo para beber groselha e se calhar até alguém dentro da universidade vai gostar deste texto a dizer tão mal dela.
A crítica é aplaudida e invalidada, deixa de fazer tropeçar aquilo que contesta e passa, bem comportada, a ajudar o seu alvo atravessar a rua. É de manutenção.

- quando eu souber o que quer dizer holístico e heurístico devo andar para aí no terceiro ano do meu curso.
- gostava de diariamente descobrir uma faculdade nova; uma mulher no autocarro gritou ao motorista que estava na posse de todas as suas faculdades mentais.
- se não estudas, trabalhas e se não trabalhas, estudas.
- ou isso ou outra coisa qualquer.
- as coisas são assim e se as queres mudar tens de aprender como são as coisas.
- afinal de contas queres ou não aprender?
- queres aprender o quê?
- para quê?
- de que forma?

Mas por altura dos 25 anos do 25 de Abril
o 25 de Abril (ou não)
... da universidade como um ninho de ratos comovedoramente humanos. A política na escola. Jogos de interesses muito pouco interessantes.
-  Ainda te interessa aprender?
- Sei lá... sim...
- E o que é que queres aprender?
- Calma...
- Em função de quê?
- Para quê? Que é que vais fazer depois?
- Ainda e aprender que queres?
- Sei lá...
- Trata-se de adquirir competências, só aqui está quem quer, não te esqueças. Estás na Universidade. Edifício + cursos + professores + alunos + fotocopiadoras + biblioteca+ bar + casa de banho + Internet + festas universitárias + associação de estudantes + tuna ou - tuna + isso tudo e muitos mais serviços a servirem para andarem todos muito atarefados. Ensino de massas. Aeróbica de manutenção e reprodução das coisas.
- obrigada pelo jeitinho...
- Não. O estudante universitário é efectiva e freneticamente moderno e cooperativo, faz compulsivamente trabalhos de grupo, existem iniciativas “que o seduzem, estímulos, as preocupações do dia a dia são por ele estudadas, relaciona-se com o presente... não parece, no entanto, vivê-lo (...) o estudante é um ser partilhado entre um estatuto presente e um futuro claramente distintos (...) está como que suspenso num presente transitório ao abrigo da história"
- “conceda-se: o ridículo prestígio do Sr. Doutor – como, satisfeito, se deixa chamar entre nós o detentor do diploma universitário - não chega para ocultar a feroz banalização do mundo, onde a situação do estudante é cada vez menos mistificável. Situação que tende a desesperar todo o estudante que ainda se leva a sério e a sério assume a imagem grave e sedutora de um mundo que perdeu, há muito, toda a seriedade e só seduz os reles”
- “Este seu papel consiste pois em interiorizar a inevitabilidade, quão grata, de obter, da charlatanice geral, uma valia acima da comum. Porque comummente a miséria do estudante começa pelo facto de dificilmente ser capaz de a reconhecer. É muito capaz de identificar a "miséria" dos outros (a dos operários e dos camponeses ou a dos pobrezinhos), mas fá-lo para confirmar, assim, que deles se demarca, através daquilo que julga ser prestígio e que não passa de um lastimável preconceito."

E então numa manifestação, uma vez alguém tinha tido não sei onde que se não apontava para lado nenhum e se não ofereciam alternativas, soluções, nem modelos, e que aprender era o contrário de ser ensinado. E que a vontade de destruir, quando toda a gente se empenha em arranjar e parece satisfazer-se com limar arestas mantendo a mesma ordem, corresponde à expressão real da vida, é a única que não faz cedências. Mas depois ouvem-se outras opiniões e lêem-se (ou não se leem) mais textos e acontecem outras iniciativas, porque também há tantas coisas. Estão sempre a passar filmes e há debates a acontecer e pessoas com mais opiniões e tantas coisas. E eu às vezes vou a uns lados e outras vezes a outros lados, e fala-se de umas coisas e de outras coisas e às vezes aprofunda-se e outras vezes fica tudo muito no ar; e eu vou continuando a saber das minhas coisinhas, e a ouvir falar das coisinhas deles e é sempre a mesma coisinha. Só que eu detesto diminutivos e pensava que havia uma certa quantidade de magia em aprender. E sentia, em aprender a fazer o poder mágico da transformação e cada coisa feita por mim era uma prova disso mesmo. Depois via nas palavras e nas explicações que elas me ofereciam o dom da compreensão. Então achava que compreender é uma parte da ternura se sente pelas coisas que existem. Ainda acho isso tudo. E é por isso que acho a Universidade tão feia.

Notas da edição
Um texto publicado originalmente na revista da Associação de Estudantes do ISCTE edição especial 25 de Abril / 25 Anos, Lisboa 1999.

Ana Bigotte Vieira
Licenciou-se em História Moderna e Contemporânea (ISCTE). Especializou-se nas áreas da Cultura e Filosofia Contemporâneas (FCSH-UNL), e em Estudos de Teatro (UL). A sua tese de Doutoramento NO ALEPH, para um olhar sobre o Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1984 e 1989 recebeu uma Menção Honrosa em História Contemporânea pela Fundação Mário Soares. É fundadora de baldio |Estudos de Performance e dramaturgista. Integra a Associação BUALA onde edita a secção Jogos Sem Fronteiras. Traduziu vários autores, sobretudo de teatro e filosofia, como Luigi Pirandello, Giorgio Agamben e Maurizio Lazzarato.

Ficha Técnica
Data de publicação: 31.01.2018