Metropolis • Giorgio Agamben




Há alguns anos atrás, Guy Debord e eu discutíamos questões que eu pensava serem de filosofia política, até que num determinado momento Guy interrompe-me e diz: ‘Eu não sou um filósofo, sou um estratega’. Esta frase chocou-me porque eu considerava-o um filósofo, assim como me considerava a mim um filósofo e não um estratega. Mas creio que aquilo que Guy Debord queria dizer é que todo pensamento, por mais puro, por mais geral e por mais abstracto que seja, é sempre marcado por assinaturas históricas, temporais e, portanto, está sempre preso, de alguma maneira, a uma estratégia e a uma urgência. Fiz esta introdução porque as minhas considerações serão necessariamente gerais e não entrarão no tema específico dos conflitos. No entanto, espero que estas considerações gerais transportem de algum modo a assinatura de uma estratégia.

Gostaria de começar por algumas considerações banais em torno da etimologia da palavra metrópole. Como devem saber o termo metrópole significa em grego “Cidade Mãe”, e refere-se à relação entre cidade e colónias. Os cidadãos de uma polis que partiam para fundar uma colónia eram chamados por um curioso termo: en apoikia, distantes de casa e da cidade – que perante a colónia tomava o carácter de Cidade Mãe, Metrópole. Como sabem, o significado desse termo permaneceu até hoje e exprime a relação entre o território da pátria metropolitana e as colónias. A primeira observação instrutiva, que essa etimologia me parece sugerir, é que o termo metrópole implica e traz consigo a ideia de um deslocamento, de uma forte heterogeneidade espacial e política, como a que define a relação entre cidade – ou o estado – e as colónias. E isso levanta uma série de dúvidas acerca da ideia actual de metrópole como um tecido urbano, contínuo e relativamente homogéneo. Esta é a primeira consideração: a isonomia (que define, por exemplo, a polis grega como modelo de uma cidade política) é excluída no caso da relação metrópole/colónia e, portanto, o termo metrópole, quando é usado para descrever um tecido urbano, transporta consigo essa heterogeneidade fundamental. Assim, proponho reservar o termo metrópole para algo substancialmente outro em relação à cidade, na concepção tradicional da polis, isto é, de algo politicamente e espacialmente isonómico. Proponho reservar o nome metrópole para designar o novo tecido urbano que emerge paralelamente aos processos de transformação que Michel Foucault definiu como passagem do poder territorial, do ancien régime, da antiga soberania, ao biopoder moderno, que é, na sua essência, segundo Foucault, governamental.

Isso significa que para compreender o que é uma metrópole é necessário compreender o processo que progressivamente levou o poder a assumir a forma de um governo dos homens e das coisas, ou, se preferirem, de uma economia. A palavra economia não significa nada mais que governo, o que claramente se mostra no século XVIII: o governo dos homens e das coisas. A cidade do sistema feudal do ancien régime, que estava sempre em situação de excepção em relação aos grandes poderes territoriais, era o modelo da cidade franca, relativamente autónoma dos poderes de governo das grandes entidades territoriais. Por outro lado, diria que a metrópole é o dispositivo, ou o conjunto de dispositivos, que toma o lugar da cidade quando o poder assume a forma de um governo dos homens e das coisas.

Não podemos entrar na complexidade da transformação do poder em governo. Como é óbvio, governo não significa simplesmente domínio e violência, mas sim uma configuração muito mais complexa do poder que pretende passar através da própria natureza dos governados e que, portanto, implica a liberdade destes. É um poder que não é transcendente, mas imanente e, por isso, no fundo, o seu carácter essencial é ser sempre, nas suas manifestações mais específicas, um efeito colateral, algo que que vem de uma economia geral e cai no particular. Quando os estrategas norte-americanos falam de collateral damages, efeitos colaterais de seus bombardeios, como, por exemplo, aqueles das cidades iraquianas, estes devem ser compreendidos literalmente: o governo tem sempre um esquema de uma economia geral com efeitos colaterais sobre as particularidades, sobre os sujeitos.

Voltemos agora à metrópole. Eu penso que não estamos perante um processo de crescimento e desenvolvimento da antiga cidade, mas da instituição de um novo paradigma, cujo carácter deve ser analisado. Certamente um dos seus traços evidentes é que há uma passagem do modelo da polis fundada sobre um centro, no qual há um espaço público, uma ágora, para uma nova espacialização metropolitana na qual ocorre um processo de “des-politização”, cujo resultado é uma curiosa zona na qual não é possível decidir o que é privado e o que é público.

Michel Foucault tentou definir algumas características essenciais desse novo espaço urbano ligado à governabilidade. Segundo Foucault, há aqui a convergência de dois paradigmas que até então permaneciam distintos: a lepra e a peste. O paradigma da lepra é, claro, a exclusão, e tratava-se de “colocar fora”, de excluir da cidade os leprosos. É o modelo de uma cidade pura, que mantém fora de si os estranhos; é também o modelo daquilo que Foucault chama de grand enfermement, isto é, o “grande fechamento”, o “grande aprisionamento”; portanto, fechar e excluir. Foucault sugere que o modelo da peste é completamente diferente e dá lugar a um outro paradigma. Quando a epidemia se instaura na cidade é evidente que é impossível deslocar as vítimas para fora. Pelo contrário, trata-se de criar pela primeira vez um modelo de vigilância, controlo e articulação dos espaços urbanos. Estes são divididos em sectores e, no interior destes, cada rua é tornada autónoma e colocada sob a vigilância de um intendente; ninguém pode sair de casa e, mesmo assim, todos os dias os habitantes de cada casa são controlados: quantos são, se ainda estão lá, quem morreu e quem não morreu, etc. Em suma, um quadrillage do território urbano vigiado pelos intendentes, médicos e soldados. Enquanto o leproso era tomado por uma prática de rejeição e exclusão, o pestilento é enclausurado, vigiado, controlado e assistido através de uma complexa rede de dispositivos que dividem e individualizam e que, desse modo, articulam também a eficácia do controlo do poder.

Assim, enquanto a lepra é o paradigma de uma sociedade de exclusão, a peste é o paradigma de técnicas disciplinares, tecnologias que irão operar a transição da sociedade do ancien régime para um paradigma disciplinar. Segundo Foucault, o interessante é que o espaço político da modernidade, a partir do século XVIII até hoje, é resultado da fusão desses dois paradigmas. Isto é, em certo ponto o poder começa a tratar o leproso como um contagioso, e vice-versa. Começa-se a projectar sobre o esquema de exclusão e de separação da lepra o esquema da vigilância, do controlo, da individualização e articulação do poder disciplinar. Trata-se agora de individualizar, subjectivar e corrigir o leproso tratando-o como uma vítima da peste. Desse modo cria-se um duplo esquema: de um lado a simples divisão binária, como por exemplo, doente/sadio, louco/não-louco, normal/anormal e, do outro lado, ao contrário, toda uma complicada série de repartições diferenciais de dispositivos e de tecnologias que subjectivam, individualizam e controlam os sujeitos. Este é um primeiro esquema que poderia ser útil para a definição geral e sumária do espaço metropolitano actual. E isso explica muitas das coisas que aqui foram ditas: a impossibilidade de definir univocamente os limites, os muros, a espacialização, justamente porque estes são o resultado da acção de um duplo paradigma: não apenas simples divisão binária, mas projecção sobre essa divisão de uma complexa série de procedimentos e de tecnologias individualizantes e articuladoras. Lembro-me dos fatos que ocorreram em Génova em 2001. Pensei que fossem experiências para tratar o centro histórico de uma cidade velha (que ainda conservava a sua estrutura arquitectónica antiga) para ver se nesse centro poderiam ser repentinamente criados muros, portões etc., que não tinham apenas a finalidade de excluir e separar, mas de articular espaços diversos, de individualizar espaços e sujeitos.


Esta análise, brevemente e sumariamente esboçada por Foucault, pode ser posteriormente desenvolvida e aprofundada. Mas eu gostaria, antes,  de terminar num outro registo e de me concentrar sobre um outro ponto. Disse que a cidade é um dispositivo, ou um grupo de dispositivos. A teoria a que lhes remeti anteriormente era a ideia, muito sumária, segundo a qual se pode dividir a realidade em duas: a primeira parte, os homens (os seres-vivos, os seres humanos) e, a outra, os dispositivos nos quais os seres-vivos são continuamente capturados e presos. No entanto, como terceiro, um ponto fundamental para definir o que é um dispositivo (e creio que também segundo Foucault) são os processos de subjectivação que resultam do corpo-a-corpo dos indivíduos e dos dispositivos. Chamarei, portanto, sujeito o que resulta do corpo-a-corpo, da relação entre os homens e os dispositivos. Não há dispositivo sem processo de subjectivação e para que se possa falar de um dispositivo deve haver um processo de subjectivação. Naturalmente sujeito tem dois significados: de uma parte, é o que leva um indivíduo a ligar-se e a assumir uma individualidade, uma singularidade; mas significa também, de outra parte, sujeição a um poder externo. Não há processo de subjectivação que não tenha estes dois aspectos (de um lado, assunção de uma individualidade e de uma subjectividade, de outro, sujeição a um poder externo). A consciência dessa relação é exactamente o que frequentemente falta. Aos movimentos falta justamente essa consciência de que toda assunção de uma identidade também é sempre uma sujeição.

Naturalmente, talvez seja complicado o facto de os dispositivos modernos não implicarem apenas a criação de uma subjectividade, mas frequentemente, e na mesma medida, processos de dessubjectivação. Toda a subjectivação é hoje uma dessubjectivação. Talvez sempre tenha sido assim, coexistindo desde sempre estes dois aspectos em qualquer dispositivo. Pensem na confissão, que formou a subjectividade ocidental (o grande instituto da confissão dos pecados ou da confissão judiciária, que ainda vivemos hoje): implicava sempre, juntamente com a criação de um novo sujeito, a negação de um sujeito. Na figura do confesso e do arrependido é claríssima a ideia de que a assunção de uma nova subjectividade se dá juntamente com um acto de dessubjectivação.

Hoje os dispositivos são sempre mais dessubjectivantes, portanto é sempre mais difícil analisar e individualizar os processos de subjectivação que se criam. No entanto, a metrópole pode ser vista como um imenso lugar onde um grande processo de criação de subjectividade está em marcha, do qual creio que não sabemos o bastante. Quando digo que precisamos tentar conhecer esses processos de subjectivação, não me refiro apenas a análises, ainda que muito importantes, sobre a natureza sociológica, económica e social desses processos, mas refiro-me, por assim dizer, a um nível quase ontológico, no qual se coloca em questão “espinosamente” a capacidade de agir dos sujeitos. Isto é, o que nos processos em que o sujeito se liga a uma identidade subjectiva leva a uma modificação, a um aumento ou a uma diminuição da sua capacidade de agir. Parece-me que essa consciência está hoje muito carente e que talvez seja isso que torne os conflitos metropolitanos aos quais assistimos hoje tão opacos.

Parece-me que um verdadeiro confronto com os dispositivos metropolitanos só será possível quando penetrarmos nos processos de subjectivação, que neles estão implicados, de um modo mais articulado e mais profundo. Isso, porque penso que o êxito dos conflitos dependerá exactamente disso: da capacidade de intervir e agir sobre os processos de subjectivação, justamente para atingir o ponto que eu chamaria de “ingovernabilidade”. O ingovernável sobre o qual pode fracassar o poder na sua figura de governo; e este ingovernável é também para mim o início e o ponto de fuga de toda política.

Giorgio Agamben
Filósofo. Nasceu em Roma em 1942. É fundamentalmente conhecido pela sua obra magna Homo Sacer, publicada parcialmente em português, nomeadamente “Poder Soberano e Vida Nua” e “Estado de Excepção”. É autor também de “Ideia da prosa” e “A comunidade que vem”.

Notas da edição
Este texto resulta da intervenção de Giorgio Agamben no segundo, e penúltimo, acto do seminário “Nomade” Metropoli/Moltitudine, realizado a 11 de Novembro de 2006, na IUAV, em Veneza, com o tema “Novos conflitos sociais na metrópole”. Esta tradução foi realizada a partir da versão brasileira realizada por Vinícius N. Honesko publicada na Revista Sopro 26 (Abril 2010).

Imagem
Imagem do cenário do Filme “Metrópolis” de Fritz lang.

Ficha Técnica
Data de publicação: 29.12.2017