No dia 14 de novembro de 2017,
chegamos ao cinquentenário da publicação de
A sociedade do espetáculo (1967), obra magna de Guy Debord (1931-94), o diretor
da revista Internacional Situacionista
(1958-69), publicada pela organização homônima que ajudou a fundar em 1957 e
que se dissolveria em 1972, no refluxo gerado pela derrota da greve geral com
ocupação de fábricas e universidades de maio-junho de 1968 na França. Para o
filósofo italiano Giorgio Agamben, a obra do situacionista* francês (de quem
era, além de interlocutor, um amigo) possui a rara assinatura da “inatualidade”
característica de um pensamento que não coincide perfeitamente com seu tempo e
é, por isso, nesse sentido, inatual, mas que, justamente através deste
anacronismo, “ele é mais capaz que os outros de perceber e agarrar o seu tempo”
(2011, p. 8). Debord, é claro, tinha plena consciência dessa característica de
seu pensamento. N’A sociedade do
espetáculo, ele adverte que “a crítica que vai além do espetáculo deve
saber esperar” (1997, p. 141) e, em seu Panegírico,
desvia o sentido do famoso imperativo modernista lançado por Rimbaud em 1873 [1]: “quando ‘ser
totalmente moderno’ tornou-se uma lei especial proclamada pelo tirano, o que o
escravo honesto teme, acima de tudo, é que possa ser suspeito de saudosismo” ([1989]
2002, p. 75).
1. “É
preciso ser absolutamente moderno” [Il
faut être absolument moderne], no aforismo de “Adieu”, texto final de Une Saison en Enfer, no/pelo qual Rimbaud
se despede, aos dezenove anos, da literatura.
Com efeito, desde o início dos anos
1960, Debord e os situacionistas apostavam no retorno das tentativas de
revolução proletária ocorridas em diversos países europeus no primeiro quarto
do século XX [2], na contramão da maior parte dos teóricos críticos e
marxistas ocidentais contemporâneos, como o alemão Herbert Marcuse, que se
mostrava pessimista, em O homem
unidimensional (1964), quanto às possibilidades de uma transformação
revolucionária das sociedades tardoburguesas [3], ou como Theodor Adorno que, na introdução
de sua Dialética negativa (1966),
afirmava que a “práxis transformadora” encontrava-se “adiada por um tempo
indeterminado” (2009, p. 11). Publicado na França em 1967, mesmo ano, portanto,
de A sociedade do espetáculo de Guy
Debord, Posição contra os tecnocratas,
de Henri Lefebvre, criticava frontalmente o prognóstico revolucionário dos
situacionistas: «Ora, eles [os situacionistas] não propõem uma utopia concreta,
mas sim uma utopia abstrata. Acreditam de fato que um belo dia, ou numa noite
decisiva, as pessoas irão se olhar de frente e dizer: “Basta! Chega de trabalho
e de tédio! Acabemos com isso!“ e que eles entrarão para a Festa Imortal, na
criação e situações? Se isso aconteceu uma vez em 18 de março de 1871, ao
alvorecer, essa conjuntura não se reproduzirá mais». (1969, p. 169)
2. Entre
1917-21, em países como Rússia, Ucrânia, Hungria, Áustria, Alemanha e Itália.
3. Todavia,
em seu “Prefácio político” (1966) a Eros e Civilização, Marcuse avança em
relação à sua própria tese da integração total do proletariado nas sociedades
tardoburguesas, passando a perceber que “o conflito pode tornar-se explosivo se
for acompanhado e agravado por perspectivas de mudança na própria base da
sociedade industrial avançada” (1968, p. 22). De fato, como nota Maria Ribeiro
do Valle, “o ceticismo presente nos escritos de 1964 de Marcuse começa a ser
superado com a emergência de protestos que envolvem ‘novos atores sociais’ –
por um lado, as revoluções contra a ‘intolerável herança do colonialismo’ e seu
prolongamento pelo neocolonialismo, e, por outro, a revolta da juventude”
(2005, p. 103).
Tal aposta
revolucionária seria, para a surpresa do professor Lefebvre, verificada no/pelo
movimento que, iniciado no fim de 1967 em diversos câmpus universitários
franceses, eclodiria com a gravidade que se conhece em maio de 1968. De acordo
com o veredicto (pós-68) do situacionista italiano Gianfranco Sanguinetti, «Marcuse,
o iludido, pretendia ainda demonstrar-nos o desaparecimento do proletariado,
que alegremente se teria dissolvido na burguesia; e Henri Lefebvre, o
desiludido, já perorava sobre ‘o fim da história’ [...] Mas a partir de 1968,
tiveram que submeter-se à percepção dolorosa da estupidez de que enfermavam:
Marcuse resignou-se ao silêncio, e Lefebvre resignou-se a voltar ao redil,
falando por conta dos stalinistas franceses». (1981, p. 52)
Em um artigo
consagrado à questão das relações entre os intelectuais franceses e o Maio de
68, o sociólogo Pierre Grémion diz que “nenhum deles antecipou os eventos, para
todos foi uma surpresa” (2008, p. 24). Com exceção, como vimos, do
diagnóstico/prognóstico debordiano de 1967, que acabaria por desempenhar, durante
a crise revolucionária de maio-junho de 1968, uma influência considerável que,
guardadas as respectivas particularidades históricas, restaurava a relação
entre crítica e crise sociopolítica
herdada da tradição revolucionária do movimento operário moderno, tal como ela
havia sido inscrita, primeiramente, no/pelo Manifesto
do Partido Comunista (1847), de Marx e Engels, às vésperas da revolução
alemã que eclodiria em fevereiro de 1848, como também nas/pelas Teses de Abril de Lênin, no decurso da
crise revolucionária russa, que meses depois culminaria com a tomada do poder
estatal pelos bolcheviques em outubro de 1917.
Mas, além de um
preciso prognóstico revolucionário da crise de Maio de 68, o diagnóstico
apresentado por Debord em Novembro de 1967 se revelaria, com o passar dos anos,
também uma acertada previsão de alguns problemas e questões que, ainda em germe
no capitalismo welferizado dos anos 1960, tomariam proporções inauditas neste
início de século XXI. Em seu Prefácio à
quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo (1979), Debord lista
uma série de advertências sobre a história do livro de 1967 e de seu conteúdo
real, nas quais diversos comentadores costumam identificar traços de grandiloquência
e megalomania, dentre elas, a seguinte: «Posso me gabar de ser um raro exemplo
contemporâneo de alguém que escreveu sem ser imediatamente desmetido pelos
acontecimentos. Não estou me referindo a ser desmentido cem ou mil vezes, como
os outros, mas a nem uma única vez. Não duvido que a confirmação encontrada por
todas as minhas teses continue até o fim do século, e além dele». (1997, p.
152)
Isso porque, no
livro A sociedade do espetáculo, Debord
apresenta conceitualmente a lógica estrutural de toda uma época histórica:
aquela na qual o modus operandi da
alienação do trabalho se estende ao conjunto da vida cotidiana. Dentre outros
fenômenos contemporâneos, o regime de “pós-verdade” – em que as distinções
clássicas entre verdade e mentira, original e cópia, verdadeiro e falso, parecem
perder sentido –, recebia, já em 1967, um tratamento histórico (materialista e
dialético), no qual era percebido pelo situacionista como conexo ao processo de
perda da realidade engendrado pelo
desenvolvimento das formas mais avançadas de exploração e dominação do
capitalismo.
O conceito debordiano de espetáculo representa, no plano teórico,
um terceiro estágio da crítica da economia política, quando esta passa a
incorporar a crítica da linguagem herdada das vanguardas estéticas (sobretudo
do dadaísmo e do surrealismo do entreguerras) à crítica marxiana do fetichismo mercantil (1872) e à crítica
lukacsiana (1923) da reificação
capitalista [4]. Representa também, nesse sentido, uma alternativa
radical às narrativas idealistas e apocalípticas do sociólogo francês Jean
Baudrillard [5] em torno da noção de hiperrealidade
[6], na
qual o processo histórico real, por ele misteriosamente chamado de “princípio
de realidade”, aparece substituído por uma enigmática “precessão de simulacros”.
Baudrillard simplesmente inverte causa e efeito quando toma tais fenômenos da
aparência fetichista do sistema tardocapitalista pela sua essência. Desse modo,
o processo histórico, ao qual diversos especialistas se referem ora como de
“desrealização do mundo” (Lipovetsky e Virilio), ora como “desmaterialização da
realidade” [7], e que aqui chamamos de “perda da realidade”, ao invés
de ser explicado, é tomado por Baudrillard como a própria explicação.
4. Cf. Livro de João Emiliano Fortaleza de Aquino, Reificação e linguagem em Guy Debord
(2006); de Celso Frederico, o ensaio “Guy Debord: um novo capítulo na história
do fetichismo” (2010).
5. Jean Baudrillard (ex-aluno de Henri Lefebvre em Nanterre, com
quem se doutorou) foi membro do Colégio
de Patafísica de Paris, que em sua época reunia figuras ímpares da
intelectualidade europeia, como Umberto Eco, Fernando Arrabal e o
ex-situacionista Enrico Baj. Concebida como uma “ciência das soluções
imaginárias”, para o ex-situacionista Asger Jorn, tal qual escreve no artigo
“La pataphysique. Une religioin em formation”, publicado no sexto número da Internationale Situationniste, a
patafísica é “a religião adaptada exatamente para a moderna sociedade do
espetáculo: uma religião da passividade, da ausência pura” (IS, [1961] 1997, p.
229. Tradução nossa). Em uma nota anexada a esse texto de Jorn, a IS reitera
uma “hostilidade equivalente a todas as religiões, mesmo as de ficção
científica” (Idem, p. 32).
6. Sobretudo a partir das obras Efeito Beaubourg (1977), A
sombra das maiorias silenciosas (1978) e Simulacros e Simulação (1981).
7. Cf. Artigo de Celso Frederico, publicado no número 26 da
revista Margem Esquerda, “A
desmaterialização da realidade: recursos do pensamento social” (2016, pp.
57-76).
Já o espetáculo seria pensado e apresentado
por Debord desde um ponto de vista materialista e dialético, ao mesmo tempo como o resultado e o projeto
do modo de produção existente. O espetáculo “não é um suplemento do mundo
real, uma decoração que lhe é acrescentada, é o âmago do irrealismo da
sociedade real” (1997, p. 14) [8]. É justamente dessa falsificação mais forte
do real, desta mentira originária, em que “o homem separado de seu produto [...]
vê-se cada vez mais separado de seu mundo” (1997, p. 25), que decorre a
possibilidade de falsificação desta ou daquela mercadoria em particular: da
carne e da cerveja à informação jornalística, das estatísticas e documentos estatais
à história das revoluções modernas: “há vinte anos nada é tão dissimulado com
mentiras dirigidas quanto a história de maio de 1968” ([1988] 1997: 177).
8. O espetáculo não constitui, no sentido original de Debord,
algo separado da realidade, diferentemente do sentido restrito (de
“espetacularização”) que o conceito adquiriu no senso comum e nos meios
propriamente midiáticos, como os jornalísticos e publicitários: “O espetáculo
produz uma representação superior ao mundo real. Cria-se dessa forma um mundo à
parte, onde a relação entre os indivíduos é mediada por imagens”, tal qual
Thomaz Wood Jr. disse recentemente no artigo escrito em 25 de janeiro de 2017 para
a revista Carta Capital, “Para entender a pós-verdade: dois livros do século XX,
contundentes e proféticos, ajudam a desvendar a sociedade da imagem e do
espetáculo do século XXI”.
Vinte anos depois
de 68, Guy Debord atualiza suas teses de 1967 nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo (1988), em que os
problemas da fusão entre as máfias, os Estados e mercados, da mentira como
técnica normal de governo das democracias espetaculares, ou ainda do crescente
poder de influência do segredo e dos serviços secretos nos arranjos
econômico-estatais encontram-se tematizados de um modo inédito, que se
anteciparia à posterior proliferação, a partir dos anos 1990 (principalmente na
França e na Itália), de diversas abordagens sociológicas especializadas justamente
nestas temáticas, que muitos, porém, julgaram “paranoicas” no momento de sua
publicação. Diferentemente de Agamben que, num texto de 1990 sobre as teses
debordianas de 1988, reconhece que o decurso dos acontecimentos históricos
havia transcorrido como “uma encenação paródica do roteiro traçado pelo livro”:
«Os serviços secretos, habituados desde sempre a agir sem levar em conta os
limites das soberanias nacionais se tornaram, ‘em tal contexto’, o modelo mesmo
da organização e da ação política real. Pela primeira vez na história do
século, as duas grandes potências mundiais são dirigidas por duas emanações dos
serviços secretos: Bush (antigo chefe da CIA) e Gorbatchov (o homem de
Andropov); e quanto mais eles concentram o poder em suas mãos, mais isto é
saudado, pelo novo ciclo do espetáculo, como uma vitória da democracia».
([1990] 2002, pp. 99-100).
A propósito, as
teses agambenianas sobre o “estado de exceção permanente” encontram-se
formuladas de modo embrionário por Debord já desde o Prefácio de 1979, no qual ele realiza uma análise da crise italiana
de 1968-78. Esse texto antecipa em quase dez anos as teses apresentadas nos Comentários
de 1988 sobre a modernização da repressão econômico-estatal. O “compromisso
histórico” costurado na Itália entre democratas-cristãos e comunistas, nas
palavras de Debord, uma “Santa Aliança repressiva do poder de classe, burguês e
burocrático-totalitário” (2004, p. 159), encontra-se nas origens da formação
espetacular integrada que se
consolidaria como paradigma de governo dominante em nível global a partir do
final dos anos 1980. Sob o impacto direto da chamada Strategia della tensione (adotada pelo Estado italiano na repressão
ao “outono quente” de 1969, que culminaria nos atentados a bomba, no dia 12 de
dezembro, no centro de Milão), numa correspondência com o situacionista
italiano Paolo Salvadori, Debord observa que, “sendo no momento o país mais
avançado no movimento em direção à revolução proletária, a Itália é também o
laboratório mais moderno da contrarrevolução internacional” (2004, p. 159).
Se lidos de modo contínuo, os textos
debordianos de 1967, 1979 e 1988 revelam as bases históricas concretas da
passagem para o estágio integrado da
sociedade do espetáculo, no qual, em termos agambenianos, o paradigma da cidade
e da cidadania é substituído por aquele do campo concentracionário e da
desumanização, e a exceção passa a constituir a regra – agora não apenas no
exterior, nas antigas e novas colônias, como também, internamente, nas próprias
metrópoles capitalistas. A crise de 1968 marca, segundo Debord, o ponto de
virada em que países governados pelo espetáculo difuso passaram a incorporar as
técnicas de governo autoritárias típicas de países governados pelo espetáculo
concentrado, na batalha interna contra o
retorno das tentativas de revolução social, principalmente na França e na
Itália, mas também de modo decisivo em outros países europeus como Tchecoslováquia
e Alemanha, e não europeus, como Estados Unidos, Japão, Brasil e México. As
soluções encontradas pelo Estado e pelo capital para um desfecho que lhes fosse
favorável no embate com a radicalização proletária que explode em 1968 combinou
elementos regressivos (coercitivos) e progressivos (coesitivos) [9] que dariam origem a
um novo ciclo histórico da sociedade do espetáculo, inicialmente registrado
pelos abalos do período crítico de 1988-89. Já a crise de 1989 assinala, além
de uma unificação substancial do capitalismo em escala global, o ponto de
virada em que a exceção já não mais se distinguiria da regra, a ditadura do
Estado de direito, a guerra da paz, a barbárie da civilização: agora também em escala planetária. Na
síntese debordiana: “quando o espetacular era concentrado, a maior parte da
sociedade periférica lhe escapava; quando era difuso, uma pequena parte; hoje
nada lhe escapa” ([1988] 1997, p. 173).
9. As demandas gestadas na dinâmica do processo revolucionário,
como das mulheres e dos novos setores do trabalho qualificado por maior
autonomia e liberdade, ignoradas pelas rígidas instituições partidárias e
sindicais da esquerda comunista e socialista, acabaram sendo incorporadas e
neutralizadas pelo próprio capitalismo vitorioso, na forma de uma inserção
subordinada da mulher no mercado de trabalho e de uma desregulamentação
predatória das legislações trabalhistas – uma tese desenvolvida pelo marxista
heterodoxo português João Bernardo em Economia dos conflitos sociais (1991),
como também pelos sociólogos franceses Luc Boltanski e Ève Chiapello em O novo espírito do capitalismo (1999).
As eleições presidenciais
norte-americanas de 2016 parecem ter fundido em um único evento exemplar algumas
das principais características identificadas por Debord nos Comentários acerca do governo da
sociedade do espetáculo em seu estágio mais avançado, quando um especulador
multimilionário do setor hoteleiro, além de ex-apresentador de um famoso “reality
show” televisivo, chegaria ao exercício do poder federal com a colaboração dos
serviços secretos russos [10], numa campanha baseada na profusão e
repetição (goebbeliana) de mentiras [11] e na guerrilha de contrainformação e desinformação
[12]. Ora, pelo
menos desde a eleição do ator e militar Jimmy Carter em 1976 para a presidência
dos Estados Unidos, ou do ator e fisiculturista Arnold Schwarzenegger para o
governo da Califórnia nos anos 2000, a potência hegemônica do ciclo integrado
da sociedade do espetáculo (pós-89) não tem cessado de apresentar à história seu
cortejo de “exemplos pitorescos” que, nas palavras de Debord, “significam
também que não se pode confiar em mais ninguém quanto à sua profissão” (1997,
p. 174). Nos Comentários, adverte
seus contemporâneos de que:
Em tais condições, de repente se
desencadeia, com júbilo carnavalesco, o arremedo do fim da divisão do trabalho;
que vem a calhar, pois coincide com o movimento geral de desaparecimento de
toda competência verídica. Um homem de finanças põe-se a cantar, um advogado
torna-se investigador de polícia, um confeiteiro apresenta suas preferências
literárias, um artista de cinema vira presidente, um cozinheiro filosofa sobre
as fases do cozimento como etapas da história universal. [...] Quando a posse
de um “status midiático” assume importância muitíssimo maior que o valor
daquilo que se foi capaz de fazer realmente, é normal que esse status seja
transferível com facilidade e confira o direito de brilhar, de modo idêntico,
em qualquer lugar. (1997, p. 174)
10. Cf. Artigo de Cristina Pereda, “Así funcionó el espionaje orquestrado por Russia a favor
de Donald Trump”, publicado no jornal El País em 7 de janeiro de 2017 .
11. Cf. Artigo de Joshua Marcus escrito para a revista Vice em 10 de outubro de 2017: “Desde a posse do presidente norte-americano já foram mais
de 1381 mentiras”
12. Cf. Artigo de Jan Martínez Ahrens, escrito para o jornal El País em 7 de maio de 2017: “Trump e as ‘fake news’ atacam de novo”
Teriam os marqueteiros da campanha
de Donald Trump [13] aprendido algumas lições com os escritos oitentistas de
Guy Debord? Pergunta meramente retórica. Contudo, tal hipótese está contida nas
advertências introdutórias dos próprios Comentários,
onde se lê que “dessa elite que vai se interessar pelo texto, quase a metade é
formada pelos que se esforçam por manter o sistema de dominação espetacular” e
que, por isso, seu autor devia “ter cautela para não ensinar demais” (1997, p.
167).
13. Assim como os articuladores políticos do referendo que
decidiu pela saída da Grã-Bretanha da União Europeia, apelidada de “Brexit”:
“Ambas as campanhas fizeram uso indiscriminado de mentiras, como a de que a
permanência na União Europeia custava à Grã Bretanha US$ 470 milhões por semana
no caso do Brexit, ou de que Barack Obama é fundador do Estado Islâmico no caso
da eleição de Trump”, conforme André Cabette Fábio em artigo escrito para o Nexo Jornal em 16 de novembro de 2016, “O que é a ‘pós-verdade’, a palavra do ano segundo a
Universidade de Oxford”. Cf. Artigo de David Alandete, “Noticias falsas e injerencias también en Cataluña”,
publicado no jornal El País, em 1 de
outubro de 2017.
Recentemente, pudemos ver algumas
das principais advertências do antigo situacionista penetrarem até mesmo no
senso comum, ainda que isso ocorra frequentemente sem referência ao texto
debordiano de 1967 e distante de suas origens situacionistas. Num discurso proferido
em uma visita à Palestina ocupada em 2009, o Papa Bento XVI “protestou” contra
“as influências negativas do mundo do espetáculo”. Segundo vossa santidade, tal
sociedade “de forma desumana explora em nosso mundo globalizado a inocência e a
sensibilidade dos jovens e das pessoas mais vulneráveis” [14]. Também a então presidenta
do Brasil, Dilma Roussef, em seu discurso no plenário do Senado no dia 29 de Setembro
de 2016 (durante a última fase do julgamento de seu impeachment), “protestou” contra o que chamou de “mundo das
aparências”, supostamente responsável, em suas palavras, por “encobrir
hipocritamente o mundo dos fatos” [15].
14. Cf. “Mundo do espetáculo é influência negativa, diz Bento XVI”.
In: Terra, 09/05/2009.
15. Cf. “Confira a íntegra do discurso de Dilma em julgamento do
impeachment no Senado”. In: Agência
Brasil, 29/08/2016.
No já lembrado Prefácio de 1979, Guy Debord previa que “se alguém publica em
nossos dias um autêntico livro de crítica social, com toda a certeza não irá à
televisão [...]; de modo que, dez ou vinte anos depois, ainda se falará do
livro” (1997, p. 147). Dito e feito! Pois já não chegamos aos cinquenta anos da
publicação d’A sociedade do espetáculo
e aqui estamos ainda a debater sua extraordinária atualidade? Ou inatualidade, no sentido de Agamben,
para quem, afinal, “os livros de Debord constituem a análise mais lúcida e
severa das misérias e da servidão de uma sociedade que estendeu hoje seu
domínio sobre todo o planeta” (2002, p. 83).
≡
Notas
da edição
Tendo em conta a nacionalidade do
autor optou-se por manter o texto na
versão original em português do Brasil.
Notas
do texto
*Relativo
à teoria e à prática da Internacional Situacionista – IS – (1957-72),
organização revolucionária que, em Maio de 68, assumiria as posições mais
radicais do movimento junto ao Conseil
pour le Mantien des Occupations [Conselho para a Manutenção das Ocupações]
– CMDO, e que, entre 1958 e 1969, publicou na França 12 números da revista de
crítica social Internationale
Situationniste. O termo “situacionista” aparece pela primeira vez em
novembro de 1956, em um ensaio do então jovem Guy-Ernest Debord (aos vinte e
cinco anos) chamado “Teoria da deriva”, publicado no nono número da revista
pós-surrealista belga Les Lèvres Nues:
“Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se define como uma
técnica de passagem veloz através de ambiências variadas” (apud BOURSEILLER,
2003, p. 407). Já no sentido da IS, o termo “exprime exatamente o contrário
daquilo a que, em português, se chama [...] um partidário da situação
existente” (“Le questionnaire”. In: Internationale
Situationniste, n° 9, [1964] 1997, p. 388). É curioso notar como o termo
“situacionista” ganharia, em língua portuguesa, contemporaneamente, um sentido
dissociado daquele formulado pela IS e, particularmente, por Debord, porém
igualmente oriundo do universo artístico de vanguarda, na obra do brasileiro
Hélio Oiticica: “Agora, nessa fase da arte na situação, de arte antiarte, de
‘arte pós-moderna’ [...] os valores propriamente plásticos tendem a ser
absorvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionistas”
(PEDROSA, [1965] 1986, p. 9. Grifos nossos). Entretanto, para os
situacionistas, os happenings e performances artísticas não se apresentavam
senão como imagem invertida da construção de situações perseguida pela IS:
“Falamos de recuperação do jogo livre, quando ele é isolado no único terreno da
dissolução artística vivida” (IS, [1963] 1997, p. 316).
Imagens
1. Rua Gay-Lussac na manhã do dia 11
de maio de 1968, após a “noite das barricadas”, que impôs a retirada das forças
policiais da Sorbonne e do Quartier Latin, em Paris.
2. Assembleia Geral da Sorbonne, na
noite do dia 17 de maio de 1968. No centro, delegados (entre enragés e
situacionistas) do Comitê de Ocupação decidem deixar a Assembleia, “onde a
democracia direta acabara de ser estrangulada pelos burocratas” (IS, [1968]
1998, p. 104). Debord aparece no centro da imagem, de camisa branca.
3. Cena de They Live, filme de John Carpenter, de 1988.
4. Donald
Trump They Live (2016), imagem détournée
por Nick Casales.
5. Imagem détournée. Autoria
desconhecida
Referências
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Erick
Corrêa
Erick Corrêa é graduado, mestre e
doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista/Faculdade de
Ciências e Letras de Araraquara (UNESP/FCLAr). Trabalha particularmente com os
seguintes temas: revoluções de 1968, Revolução dos Cravos (1974-75),
esquerdismo, conselhismo, situacionismo, marxismo heterodoxo.
Ficha
Técnica
Data de publicação:
17.11.2017