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A questão que se colocou aos meus amigos
americanos depois da vitória de Trump foi sempre a mesma: “Quem será o próximo? Será que Le Pen vai ganhar as eleições Francesas?”.
Os cenários antecipavam tanto uma espécie de efeito dominó como um contágio, tendo
como pano de fundo o desmantelamento das políticas redistributivas levadas a
cabo pelo Neoliberalismo. O Brexit foi um aviso. A queda de Renzi e o anúncio
da não recandidatura de Hollande ecoavam a derrota de Clinton. A questão se
Merkel seria capaz de se “aguentar” perante a extrema direita tornou-se uma
variável estratégica. Agora, descobri que essas mesmas questões agitam a imprensa
e a opinião pública europeia. E, nos dois lados do Atlântico, o “populismo” é a
categoria que continua a polarizar todas as análises e especulações.
É
verdade que a União Europeia e o Estados Unidos da América são o espelho de um
e de outro. Mesmo tomando em conta todas as diferenças relevantes, a interacção
das duas situações e a luz que cada um lança sobre o outro permite-nos
compreender que aquilo que está em curso nos dois lados do Atlântico é uma crise
das instituições políticas. Isto é particularmente verdade na medida em que, do
lado europeu, a escala continental é o nível decisivo: a paralisação que está
gradualmente a tomar conta dos sistemas de representação, expondo-os às
receitas demagógicas do nacionalismo e do proteccionismo é apenas a outra face da
decomposição do projecto Europeu como um projecto político e cultural. E,
paralelamente, no caso da América, os efeitos do declínio da hegemonia imperial
começam a ser sentidos não apenas no “contrato social” – que constituía uma das
suas bases materiais – mas sobre o próprio edifício constitucional, apesar
deste ser um dos mais antigos e mais bem “regulados” em todo o mundo.
Para nós, Europeus, o episódio Americano comporta
pelo menos três lições úteis, às quais nos devíamos adaptar tendo em conta a nossa
história e as nossas práticas.
Primeiro – e isto é o que a derrota de
Hillary Clinton nos diz – é inútil procurar neutralizar
a política (e assim prolongar indefinidamente o status quo da governança pós-democrática), negando a profundidade
das divisões que o capitalismo neoliberal produziu e reactivou. Isto inclui
divisões de classe (que são simultaneamente divisões territoriais, económicas e
culturais), divisões étnico-raciais (por vezes duplicadas por descriminação
religiosa) e divisões morais (intensificando conflitos acerca de valores sexuais
e da família). E isso sem esquecer a camuflagem institucional da violência estrutural
em todas as suas formas que Trump tomou para si em nome da “cólera”.
Mas, em segundo lugar – e isso é a lição que
podemos tirar da comparação entre os movimentos de Sanders e de Trump – temos de
abandonar de uma vez por todas a categoria de “populismo”, que amalgama os discursos
da esquerda à direita. A crise do “sistema”, crise de legitimidade assim como de representatividade,
é um facto político objectivo e não uma doutrina. As conclusões que se podem
retirar – tanto no sentido de um nacionalismo xenófobo como na busca de um “povo
que falta”, isto é uma nova síntese de aspirações democráticas e de resistência
–, mesmo se elas permitem todas as amálgamas, vão em direcções opostas.
Por fim, e terceiro, os modelos institucionais divergentes, enraizados
na história oferecem sem dúvida condições diferentes para a política. Mas eles
não podem continuar a mascarar, nestas duas regiões do mundo (as mesmas que
inventaram o modelo democrático da era burguesa, adaptaram-se depois aos
movimentos de libertação e às lutas sociais do século vinte), a emergência de
um problema constitucional generalizado.
Em causa, aqui, está a oscilação entre a de-democratização irreversível e a “democratização da democracia”.
Democratizar a democracia é dar espaço às formidáveis exigências de
participação popular, mesmo à custa de confrontos entre partidos (ou concepções
do mundo). É a invenção de uma cidadania activa, um “conflito civil”. É limitar ou contrabalançar o poder do dinheiro,
da tecnocracia e da herança (seja ela cultural ou patrimonial).
As escolhas de sociedade ou de valores que
nos são apresentadas, em ambos os continentes, têm consequências poderosas não
apenas “mundialmente”, mas “globalmente”. Globalmente, no sentido em que elas
irão gradualmente contaminar tudo, formando por vezes uma espécie de condição
de impossibilidade para qualquer avaliação racional das suas próprias
premissas. É o caso do aquecimento global, atingindo um nível que ameaça as
condições de vida de populações inteiras. É o caso da desregulação do
capitalismo financeiro, onde à corrida pela liquidez corresponde a explosão da
precariedade social. É o caso do “choque de civilizações”, um fantasma
auto-realizado cuja base real é constituída pelo novo regime das migrações e
das mestiçagens culturais. Em cada momento de intersecção, a violência extrema está
virtualmente presente, mesmo quando esta é desencadeada abertamente, agitada
por nostalgias imperiais, pelas pretensões a universalismos seculares ou
religiosos ou pelos interesses do comércio de armas e pelos medos securitários.
Dia após dia vemos que as estruturas do
estado ditas “soberanas” permanecem impotentes perante esses desafios (e essa “impotência
dos todos-poderosos” gera pânicos colectivos, que se podem tornar
incontroláveis). Inversamente, as assembleias espontâneas que fazem renascer a
ideia da acção e da deliberação popular (Occupy Wall Street, Syntagma Square,
Gezi Park, Nuit debout…) testemunham as energias que, de facto, existem para
uma renovação da democracia. Porém, estão desarmadas face à acumulação e à concentração
dos poderes que a oligarquia monopoliza.
Precisamos de algo mais. O populismo
nacionalista não tem nenhuma resposta tanto ao nível da protecção e da regulação
como ao nível da participação e da representação. Pois, coloca em termos discriminatórios
e irreais a questão do lugar; isto é,
dos espaços onde vivemos, trabalhamos, onde nos encontramos e lutamos. Um mundo
globalizado deve providenciar a cada pessoa esses espaços, começando por
aqueles que suportam e cuidam da vida de outros. Aquilo que eu tenho chamado,
um tanto ou quanto arriscadamente, um “contra-populismo”
transnacional (aquando da explosão da crise grega) não constitui nenhuma solução,
nem mesmo um projecto. Porém, penso que este é o nome apropriado, se queremos
juntar forças e identificar os elementos do problema, porque o que está em jogo
é o renascimento da política feita pelo
povo e para o povo.
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Étienne
Balibar
Étienne Balibar (Avallon, Yonne, 23 de abril
de 1942) é um filósofo e professor universitário francês. Ensinou Filosofia
Política na Universidade Paris Nanterre La Défense, da qual é professor emérito.
Notas
da edição
Artigo publicado originalmente no jornal
Francês Libération a 3 de Janeiro de 2017. A tradução foi feita pelo Punkto
a partir da versão francesa e da versão inglesa publicada no site da editora
inglesa Verso.
Ficha
Técnica
Data
de publicação: 11.01.2017
Etiqueta:
Pensamento \ Crítica; Étienne Balibar
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