O arquivo de destruição \ Pedro Lagoa entrevistado por Elisa Adami




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O arquivo de destruição
Pedro Lagoa
entrevistado por Elisa Adami

[ EA ] Vamos começar com uma pergunta bastante directa. O que é o arquivo de destruição?
[ PL ]  O arquivo de destruição é uma estrutura em desenvolvimento que, como o título sugere, se dedica à colecção de documentos relativos a formas específicas de destruição. Ao assumir como âmbito de estudo determinados tipos de actos destrutivos, o arquivo de destruição reinveste a significação desses actos num movimento contrário à sua natureza. Preserva artificialmente aquilo que atenta contra a memória. 
Em relação à sua estrutura pode-se talvez distinguir entre um núcleo principal do arquivo e os seus departamentos e ramificações.
O núcleo principal dedica-se à pesquisa, colecção e apresentação dos documentos que constituem o seu acervo, encontrando-se este estruturado em torno de duas linhas-mestras que orientam a escolha dos documentos adicionados ao arquivo. Nomeadamente: destruição entendida num sentido físico i.e., destruição dirigida contra objectos, estruturas, etc.; e destruição entendida num sentido mais abstracto destruição dirigida contra ideias. Se aquilo que pode ser entendido como destruição num sentido físico dispensa grandes explicações, já no que respeita ao seu sentido mais abstracto, o que pode ser encontrado são documentos que se focam em práticas mais imateriais e subjectivas de ruptura com sistemas ideológicos estabelecidos, códigos, práticas, valores, teorias, etc. ... o que abarca coisas que vão desde movimentos de vanguarda até revoluções políticas, ou rupturas teóricas em áreas tão diversas como arte, filosofia, política ou ciência. Fora do âmbito do arquivo encontra-se destruição dirigida directamente contra seres vivos.
Os departamentos surgiram mais tarde, como forma de permitir ao arquivo desenvolver-se para além do seu âmbito inicial, mais restrito, de colecção e apresentação de documentos, e de permitir que o conjunto de referências que constitui a colecção do arquivo seja activado na criação de novos trabalhos que gravitam em torno de algumas das ideias com que o arquivo tenta lidar. Estas ramificações do arquivo começaram a desenvolver-se através de secções, depois departamentos e, mais recentemente, passou a incluir um pequeno selo editorial, as Edições do Arquivo.
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[ EA ] Quando começaste a trabalhar neste projecto e qual a motivação por trás dessa decisão?
[ PL ] O arquivo teve a sua primeira apresentação pública em 2007 e como frequentemente acontece com as ideias, a sua origem é algo nebulosa. Por essa altura encontrava-me já a trabalhar sobre algumas ideias de destruição. Uns meses antes tinha organizado a primeira record breaking party em Frankfurt e estava bastante interessado no conceito de potlatch e em mecanismos de criação de valor simbólico onde se pode incluir a iconoclastia que estiveram de certa forma na base desse projecto.
Para além disso, tenho uma certa tendência para coleccionar coisas, ainda que não de maneira particularmente organizada, e a ideia do arquivo surgiu nessa altura como uma boa forma de organizar e recontextualizar uma série de documentos que tinha vindo a reunir tendo como denominador comum estas ideias de destruição. Partindo do paradoxo básico de um arquivo dedicado à colecção de gestos e acções contrários à memória um arquivo que se foca na negação da ideia de arquivo em si o seu funcionamento e estrutura foram delineados tendo em vista a constituição de uma ferramenta de pesquisa não apenas para mim, mas também para eventuais interessados, o que me pareceu ser um ponto de partida suficientemente interessante e com potencial para permitir lidar e trabalhar com uma série muito ampla de assuntos. Dada a falta de limites temporais ou fronteiras 'disciplinares', aliados à 'elasticidade' da ideia de destruição particularmente no seu sentido mais abstracto abria-se a possibilidade de trabalhar de uma forma que não fosse demasiado restrita ou limitada, deixando em aberto um potencial de desenvolvimento futuro que fosse além do contexto específico da exposição para a qual foi originalmente criado.
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[ EA ] Um dos traços distintivos deste arquivo é o facto de todos os documentos aí coleccionados serem cópias. Queres comentar?
[ PL ]  De facto, os documentos coleccionados no arquivo consistem maioritariamente em fotocópias, impressões, cópias de CDs e DVDs. O facto de estes documentos serem cópias leva a que, por um lado, o conteúdo seja privilegiado em detrimento dos aspectos formais dos documentos originais, como o design de embalagem ou encadernação, e por outro, a que se efectue um nivelamento das hierarquias estabelecidas com base nesses mesmos aspectos ao mesmo tempo que se rejeita a aura do objecto único.
Recentemente foram introduzidos alguns objectos na colecção, mas dificilmente os consideraria como objectos únicos. São produzidos industrialmente e são portanto, em princípio, indistinguíveis de muitos outros. Para dar alguns exemplos, numa apresentação recente do arquivo era possível encontrar um Atlas Mundial de 1939 3, uma garrafa de vinho Italiano produzido numa herdade anarquista 4, ou uma amostra de um padrão de tapeçaria desenhado por William Morris 5, entre outros. Apenas no contexto dos departamentos do arquivo existe uma possibilidade maior de aparecerem objectos únicos.
Relativamente às cópias e ao seu uso no arquivo podemos distinguir duas abordagens diferentes. Por um lado, no contexto da apresentação física do arquivo, os documentos são geralmente apresentados na sua forma completa. Por outro lado, e enquadrado na tradição da colagem e apropriação, excertos dos mesmos documentos textos, imagens, sons são reordenados e recontextualizados em novos trabalhos, como acontece por exemplo no vídeo a cut through the archive of destruction 6 ou na colagem de textos intitulada arquivo 7. No entanto, diria que mesmo no primeiro caso, e dada a tendência do arquivo para enfatizar as relações que se estabelecem entre os documentos, estes são utilizados de uma forma semelhante à utilização dos seus excertos, quando utilizados numa lógica de colagem, para produzir novas significações a partir do leque de possíveis variações das suas combinações. 
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[ EA ] O arquivo de destruição não tem morada fixa. Disseste-me que alguns dos seus conteúdos se encontram geograficamente dispersos por entre os diferentes locais onde foi apresentado: Londres, Seul, ... De certa forma podemos dizer que o arquivo carece de um domicílio, esse famoso archeion, que é a raiz etimológica do termo 'arquivo'. A domiciliação assegura ao arquivo a possibilidade de um crescimento e a segurança física de um depósito. Portanto, a minha questão é: o que acontece a um arquivo sem domicílio permanente? Quais são as consequências desta configuração deslocalizada, dispersa?
[ PL ]  A natureza do arquivo faz com que seja algo difícil falar em termos de localização e domiciliação, uma vez que se pode dizer que tem várias localizações ao mesmo tempo que não tem nenhuma. Mas ainda antes disso, talvez fosse importante começar por especificar a qual dos significados da palavra 'deslocalizado' nos estamos a referir: se estamos a falar de algo que "é removido de uma localização específica", ou se de algo que se encontra "liberto das limitações da localidade" 9. Para falar em termos de localização teríamos que partir do princípio que o arquivo existe apenas ou maioritariamente como uma entidade física. Os conteúdos que mencionas como dispersos são alguns documentos que foram deixados para trás após apresentações do arquivo nesses locais, o que daria sentido à primeira definição. Mas, como referi antes, os documentos do arquivo não são originais, não são objectos únicos, o que faz com que esse abandono não afecte por aí além a integridade do arquivo já que, em princípio, é sempre possível voltar a reproduzir esses mesmos documentos. O arquivo pode, em teoria, ser recriado em qualquer local onde exista a tecnologia necessária e, neste sentido, o arquivo aproxima-se mais da segunda definição.
Dizer que o arquivo não tem morada fixa, significa que o arquivo não tem uma sede, uma localização física onde esteja permanentemente instalado e disponível para consulta, e que nem todos os seus documentos existem numa forma materializada. Ou pelo menos não na forma em que são apresentados no arquivo. O acesso a uma ideia aproximada do conteúdo do arquivo pode ser feito através de um inventário dos seus documentos, que é mantido sob a forma de fichas de leitura que, por sua vez, tornam possível a reconstituição do arquivo. Por isso, se se assumir que o arquivo existe mais como enunciação, como ideia e possibilidade de materialização da mesma, do que como uma manifestação física constante, pode-se afirmar que este existe para além das limitações da localidade. No entanto, e de forma a existir como um arquivo que pode de facto ser utilizado e consultado enquanto tal, as suas manifestações físicas tornam-se indispensáveis. Dada a possibilidade de reprodução dos documentos do arquivo em praticamente qualquer local ou momento, eu diria que a consequência derradeira desta dispersão, como tu lhe chamas, será que esses documentos as suas esporádicas e efémeras materializações adquirem o carácter de provas, forçosamente descontextualizadas, da existência do arquivo.    
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 [ EA ] Há ainda uma outra manifestação do arquivo, que pode ser encontrada online. A primeira vez que tive contacto com este projecto na web, lembro-me de percorrer as diferentes secções Department of Stuffed Geniuses, Quagmire Fields Section, etc. e não conseguir evitar pensar no Musée d'Art Moderne, Départment des Aigles, de Marcel Broodthaers. O trabalho de Broodthaers é frequentemente associado à crítica institucional [Institutional Critique] e o seu Museu pode, na verdade, ser considerado como uma instituição de crítica em si mesmo. Até que ponto, se algum, houve uma tentativa de alcançar algo semelhante com o teu arquivo quero dizer, uma desconstrução da instituição 'Foucauldiana' do arquivo através do estabelecimento de uma contra-instituição?  
[ PL ]  Há uma entrevista de 1972 11 em que Broodthaers, quando questionado sobre a relação entre o seu Musée d'Art Moderne e os museus tradicionais, discorre sobre a maneira como uma obra de arte se desenvolve de forma semelhante a um processo biológico: começa com uma intenção precisa mas acaba por se desenvolver de uma forma tal que adquire vida própria, escapando à ideia e intenção originais, uma vida sobre a qual ele não tem já praticamente nenhum controlo, as ideias multiplicando-se como células vivas 12 e tomando direcções inesperadas. De forma bem mais modesta, eu diria que o arquivo de destruição começou com uma intenção relativamente definida que se foi tornando mais difusa com o tempo, abrindo progressivamente espaço para novas direcções e possibilidades, mas que desde o seu início nunca teve a pretensão de assumir um papel semelhante, em relação a outros arquivos, como o que o Musée d'Art Moderne de Broodthaers assumiu em relação à instituição Museu do seu tempo. 
A concepção do arquivo foi seguramente informada por uma abordagem crítica a uma ideia geral do papel e funcionamento dos arquivos, mas isto adveio mais de uma tentativa de modelar a sua estrutura e funcionamento através de uma abordagem conceptual que tentou criar uma coerência entre o arquivo e o seu objecto, do que de uma intenção de efectivar uma 'crítica institucional' do Arquivo.
Os esforços iniciais concentraram-se em reunir um núcleo de documentos que ajudasse a definir o âmbito do arquivo e ao mesmo tempo testar as limitações e elasticidade da noção de destruição abstracta, e como isto poderia encontrar um eco na própria estrutura do arquivo.
Assim, ao tentar lidar com a noção de destruição como objecto de preservação arquivista houve uma série de pequenos desvios que foram introduzidos na estrutura e funcionamento do arquivo, que o distinguem da maioria dos arquivos institucionais. Para dar apenas alguns exemplos, mencionaria o facto de que todos os documentos se encontram disponíveis para ser consultados e manuseados sem mediação do arquivista; ou que não existem hierarquias ou imposições de categorizações ou classificações rígidas aos documentos, sendo estes conscientemente organizados através de sistemas que variam a cada apresentação, e sem que pistas óbvias referentes a esses sistemas sejam dadas ao utilizador, assim limitando a capacidade do arquivo de impor formas de interpretação ao mesmo tempo que sublinha a irredutibilidade dos documentos a categorias rígidas.
Ainda que consciente de alguns constrangimentos inevitáveis numa situação desta natureza a apresentação de um determinado conjunto de documentos e referências dentro de um contexto definido o arquivo tenta ser o menos impositivo possível sobre o visitante/utilizador, deixando um grande número de decisões nas suas mãos, desde como aceder ou não ao arquivo, até aos usos que podem ser feitos dele e do seu conteúdo.
A expansão do arquivo em departamentos e outras ramificações foi algo que começou a acontecer numa fase mais tardia.
Juntamente com a tomada de consciência das limitações que a mera pesquisa, selecção, organização e apresentação de documentos comportavam em si, houve também a necessidade de encontrar forma de acomodar, dentro do projecto, trabalho que se afastava já destas acções arquivistas, trabalho que era gerado pelo arquivo mais do que simplesmente coleccionado. A decisão de expansão através de departamentos abria possibilidades de jogar com o material coleccionado com uma maior liberdade permitindo criar novas lógicas e conjuntos de regras para cada um deles, bem como evitar repetições e desenvolver linhas de trabalho e ideias mais concisas e específicas, de uma forma que afastava o arquivo de um mero repositório de documentos, cujo potencial de gerar novas ideias e trabalho não me parecia estar a ser totalmente aproveitado.


 [ EA ] O acto destrutivo pode assumir muitos significados diferentes. Por exemplo, o mesmo gesto de queimar livros adquire uma significação diferente de acordo com o contexto em que é executado. Enquanto que os rituais públicos de John Latham, em que este procede à queima de torres de livros entre 1964 e 1968, devem ser interpretados como um acto liberatório, de emancipação, o mesmo gesto quando executado por um poder político ou religioso, como a Inquisição Espanhola, a Alemanha Nazi ou as brigadas de bombeiros em Fahrenheit 451, torna-se um acto opressivo, de censura. O reverso da destruição como resistência e revolução é a destruição como forma de opressão. Como lidas com esta contradição? Esta faceta reaccionária da destruição encontra-se representada também no arquivo? 
[ PL ] Na verdade, todos os exemplos que mencionas fazem parte da colecção do arquivo, pelo que eu diria que sim, que o lado que apelidas de 'reaccionário' se encontra representado. No entanto, mais do que em preceitos morais, o processo de selecção dos documentos baseia-se maioritariamente em critérios de análise subjectiva que tentam reconhecer criticamente se certos actos destrutivos são suficientemente relevantes ou simbólicos para se encontrarem investidos de um carácter de interesse para o contexto do arquivo, ou não.
Analisar coisas em termos de 'progressivo' ou 'reaccionário' poderia tornar-se um exercício particularmente esgotante. Mesmo se os exemplos que mencionas podem ser analisados de forma bastante consensual nesses termos, muito frequentemente, gestos destrutivos contêm em si uma complexidade e subjectividade que não são redutíveis a dualidades simplistas, coexistindo em cada gesto várias características, muitas vezes contraditórias entre si.
Daí que, porquanto o arquivo tente manter uma diversidade nos seus documentos que lhe permita evitar tornar-se demasiado unidireccional no seu conteúdo e manter um certo grau da complexidade inerente ao seu sujeito, existe também um esforço em evitar a produção ou a imposição de julgamentos morais, ou outras categorizações do mesmo tipo, sobre os documentos seleccionados. Isso é algo que é deixado em aberto para o utilizador do arquivo decidir se quer ou tem necessidade de efectuar isso, ou não.
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[ EA ] A tua pesquisa abarca um período de tempo alargado, desde as vanguardas históricas do início do séc. XX, passando pelas neo-vanguardas dos anos 60, até ao presente. Estou curiosa: detectas algumas tendências ou padrões na evolução e uso programático da ideia de destruição na arte contemporânea?
[ PL ] Essa é uma questão algo difícil porque basicamente não penso muito nesses termos... regra geral, a organização dos documentos do arquivo não obedece a uma ordem cronológica. Para mim é mais interessante criar associações que são transversais ao tempo e ver como certas coisas são apropriadas ou ressurgem em diferentes épocas e contextos, sob diferentes formas.
Produzir uma análise como a que tu pedes seria sempre demasiado parcial, porque põe em jogo certas simplificações e generalizações de narrativas que, apesar de úteis até um certo ponto, dão uma impressão falsa e limitada de um determinado tempo e da sua relação com o passado através da ideia de 'evolução'. Em última análise, poderia dizer-nos mais acerca dos processos em curso na selecção do que se decide tornar visível e do que se decide deixar ao esquecimento ou à obscuridade...
Apesar de tudo, tendo consciência do quão limitada e generalista uma análise destas forçosamente será, é ainda possível admitir que determinados momentos no tempo e coordenadas no espaço vêem certos tipos de acções emergir com uma aparentemente maior consistência ou persistência. Para isso, convém ter presente que um acto destrutivo deliberado e consciente implica sempre, na sua raiz, uma forma de recusa ou de negação. Recusa de aceitação, de conformismo, recusa de sujeição a um tempo específico: o Presente. Estas acções são influenciadas por, e rebelam-se contra, o tempo que as gerou, apontando directamente ao momento cultural, social e político em que são produzidas.
Logo, se olharmos para momentos específicos da História recente, como a Europa do séc. XIX, a I e II Guerras Mundiais, os anos 60 ou 70 do século passado, talvez não seja de admirar que se encontrem neles uma série de rejeições radicais.
Outros factores entrarão certamente em jogo, mas é de suspeitar que não será apenas por acaso que a desumanização do trabalhador, trazida no século XIX pela Revolução Industrial e pelo início da produção em massa, é acompanhada pela emergência em Londres, Berlim e Paris de pinturas que representam cidades devastadas, ruínas, paisagens queimadas ou até mesmo invasões bárbaras, ecoando também os desejos ocultos de uma burguesia incapaz de imaginar outro escape para o imenso tédio que havia produzido para si mesma; ou que o Dadaísmo surja aparentemente como uma recusa veemente dos valores elevados dessa Europa 'civilizada' que tinha acabado de dar à luz o modelo racional-científico da guerra química e de trincheiras na I Guerra Mundial, uma sombria antecipação da transposição dos modelos de produção em massa para a destruição em massa posta em marcha durante a II Guerra Mundial, que por seu lado fomentou uma nova vaga de vanguardas artísticas e políticas, com um conjunto de trabalhos e práticas de cariz fortemente  iconoclasta; ou que a seguir à rejeição da perspectiva e do figurativo na pintura, que evoca uma rejeição da antiga ordem simbólica e estruturas de poder, vem a Revolução Russa, que abre caminho, até aos anos 30, a uma série de revoluções artísticas e científicas, de cariz fortemente experimental, tão extraordinárias e admiráveis, quanto por vezes esquecidas; ou que o contexto dos anos 60 e 70 traga consigo um considerável número de trabalhos onde televisões, automóveis ou pianos, símbolos de consumo e estatuto social das sociedades ocidentais da época, são destruídos; culminando depois na reacção contra o 'objecto' artístico trazida pela arte conceptual; ou que o tipo de acções produzidas durante o DIAS 15 seguramente não fossem estranhas a um mundo polarizado pela Guerra Fria, com a memória da II Guerra Mundial em fundo e a ameaça de uma catástrofe nuclear iminente;...  e no entanto, nada disto constitui uma análise minimamente precisa, ou sequer razoavelmente meticulosa ou representativa que nos permita falar em termos de 'tendências' ou 'evolução', uma vez que exclui uma quantidade enorme de contextos e geografias, cada qual com as suas especificidades, e que coexistiram com os exemplos mencionados.
Continuando, apesar de tudo, com esta espécie de exercício e ainda consciente das suas limitações, arriscaria dizer que ao chegar aos anos 80 a produção de trabalho com um carácter 'destrutivo' abranda, o que possivelmente reflecte um alinhamento mais próximo dos artistas com o poder político e económico da altura bem como a gradual absorção da arte pelo campo da 'cultura' e das 'indústrias culturais'…
Para olhar para o presente, e mesmo se nos últimos anos parece haver um interesse renovado pelo tema da destruição patente nalgumas exposições que ocorreram a nível institucional, tal como o renovado interesse por Gustav Metzger e o DIAS, ou as reconstituições recentes das Skoob Towers de John Latham em Frankfurt, a exposição Damage Control no Hirshhorn Museum, ou Film at the End of Art na Nottingham Contemporary, para nomear apenas algumas, o foco parece estar colocado em trabalhos produzidos nos anos 60 e 70, mais do que em trabalhos de novas gerações de artistas. 
Esta impressão embora apressada deixa contudo algumas questões a pairar, tais como: será que nos encontramos numa altura em que a destruição em arte é apenas merecedora de interesse historiográfico, arquivista? Ou será simplesmente que as expressões de rejeição mais fortes se encontram fora do campo da arte contemporânea, e as que são produzidas no seu seio não alcançam visibilidade? Estaremos nós num momento em que existe um alinhamento dos artistas com o momento presente não existindo, portanto, sentimentos de recusa a ser expressados através da arte? A ser verdade, poder-se-á eventualmente especular também que, com a presente crise de pensamento utópico sufocado por aquilo que Perniola denomina de 'cinismo niilista' 16 e com a colonização de praticamente todos os espaços livres da vida e da imaginação pela esfera económica, talvez mais do que um alinhamento dos artistas com o presente o que aconteceu foi que o espaço da destruição tanto simbólica como real foi completamente tomado pelos poderes político e económico, não deixando aos artistas grande margem para competir com eles...
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 [ EA ] No ensaio Archive Fever, Derrida fala sobre o impulso de destruir o arquivo e, apoiando-se em Freud, relaciona-o com a pulsão de morte. Esta pulsão de morte, diz, "está sempre presente, mas como opera de forma silenciosa, nunca deixa arquivos próprios. Destrói por antecipação o seu próprio arquivo" 21. O arquivo que estás a construir move-se na direcção exactamente oposta; não destrói nada, ao invés, preserva a memória dos mesmos actos de destruição que ameaçaram a sua existência em primeiro lugar. Vês o arquivo de destruição como uma instituição destrutiva ou de preservação? Ou, por outras palavras, definirias o impulso que está na base do teu trabalho como arquívico ou anarquivico? 22
 [ PL ] Como mencionei antes, a minha motivação para começar o arquivo não correspondeu exactamente a um impulso de preservação, apesar de este traço se encontrar obviamente presente e dar origem a uma das questões que considero interessantes, que é o paradoxo de preservar aquilo que, em si, trabalha contra a memória.
Na forma como preserva os veículos de transmissão da memória mesmo que não se trate de documentos originais pode-se falar de um claro impulso arquívico.
No entanto, acredito que o arquivo tem também um potencial destrutivo, que é de uma natureza abstracta, mais do que física. O arquivo não tenta apagar a memória, mas tem presente a possibilidade de dar origem a pensamento e acções que possam ser de uma natureza destrutiva mais do que efectuar uma destruição directa. E talvez isto, aliado à forma como opera contrariando certos procedimentos de arquivos convencionais e à maneira como o arquivo trabalha no sentido de preservar a memória dos gestos destrutivos destruindo assim as intenções originais por trás desses actos, a única forma de ser consequente com o conceito de destruição em si, ainda que por contraposição permite-me especular que talvez o impulso anarquívico não esteja totalmente ausente do arquivo.
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[ EA ] Talvez o gesto derradeiro do arquivo de destruição deva ser a sua própria aniquilação a fase extrema em que o arquivo cumpre a sua inerente vocação auto-destrutiva. Já alguma vez pensaste em destruir o teu próprio arquivo?
[ PL ]  Ainda não, apesar de essa parecer ser, a avaliar pela quantidade de vezes que a pergunta surge, uma preocupação muito presente num número considerável de pessoas que têm contacto com o arquivo... a meu ver o projecto encontra-se ainda numa fase bastante inicial, e pelo menos até eu sentir que a ideia se encontra esgotada e que começa a cair em repetição em si mesma uma forma de destruição não me parece que me vá preocupar muito com isso. 
A possibilidade de destruir o arquivo levanta também algumas questões acerca de que tipo de destruição é que estamos a falar, já que, como eu propus algures acima, o arquivo existe não só enquanto entidade física mas também como ideia. E se uma coisa é destruir uma materialização física de uma ideia, já destruir uma ideia em si, é toda uma outra coisa.
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 [ EA ] Tens alguns exemplos favoritos de trabalhos sobre destruição que gostasses de partilhar connosco?
[ PL ]  Demasiados, na verdade, o que não facilita uma selecção... e considerando que esta entrevista já vai bastante longa, deixo apenas um nome, o grupo de noise Japonês Hanatarash, e referência a duas das suas performances 'Bulldozer Gig' e 'Cock Aktion' que surgem no contexto político e económico do colapso da 'bolha' económica do Japão nos anos 80. Acho que a intensidade e radicalidade extremas das duas performances dispensam a necessidade de mais retórica.
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Referências
1. The London Branch of the archive of destruction, Gasworks, Londres, 2014
2. Record breaking party, Haus Nummer Elf, Frankfurt am Main, 2007
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6. A cut through the archive of destruction, vídeo, duração variável, The Educational Service of the archive of destruction, 2007-2014 https://vimeo.com/40118017
7. Arquivo, 2012.
 
Versão impressa: pasta de arquivo, carimbo, impressão digital sobre papel.
Publicado em 2013 por: the Editions of the Archive
8. Archive of destruction: The Quagmire Fields Section, Tschoperl, Frankfurt am Main, 2007
9. Em inglês, a palavra 'delocalized' assume dois significados, de acordo com o dicionário Merriam-Webster: « something that "is removed from a particular location", or something that is "free from the limitations of locality"»
10. The Archaeological Department of the archive of destruction, 2014
11. Interview with Jürgen Harten and Katharina Schmidt, 1972, in BROODTHAERS, Marcel, Writings, Interviews, Photographs, MIT Press, Cambridge, Massachussets, 1988
12."You conceive something which you believe is intimately connected with a determined event that has taken place in society, and then this thing all of a sudden starts to live its own life, to grow and to produce cells. At that moment a kind of biology is born out of art, over which the artist himself has practically no control. After this I think that the artist will only be able to control this process for a short time and, moreover, only in a very general way. Then, he loses his hold. The ideas begin to multiply themselves like living cells." Marcel Broodthaers in Interview with Jürgen Harten and Katharina Schmidt, 1972
13. Apreensão de livros proibidos, Alemanha, 1933, Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz
14. Skoob Tower Ceremony, John Latham, South Bank, Londres, Junho 1966 (com Gustav Metzger)
15. DIAS : Destruction in Art Symposium, organizado por Gustav Metzger em Londres, em 1966
16. A Arte e a sua Sombra, PERNIOLA, Mario, Assírio & Alvim, 2006
17. Imagens no quadro, de cima para baixo, da esquerda para a direita:
Algemeene Atlas, de ROECK, M., TILMONT, J., Uitgeverszaak Wermael-Charlier (N.V.) Namen, 1939;
Hiob auf dem Misthaufen (Job on the Mound of Manure), Albrecht Dürer, ca. 1505;
3 Stoppages Étalon, Marcel Duchamp, 1913-14;
capa do livro Voyage au Bout de la Nuit, CÉLINE, Louis-Ferdinand, ed. Denoël et Steele, 1932;
pág. de Fin de Copenhague, Asger Jorn, Guy Debord, Editions Bauhaus Imaginiste, 1957;
mapa do Kingdom of Elgaland Vargaland (anexação do Bodensee), Carl-Michael von Hausswolff, Leif Elggren, 2008.
18. Imagens no quadro, de cima para baixo, da esquerda para a direita:
From Cubism and Futurism to Suprematism. New Painterly Realism. The Third Edition. MALEVICH, Kasimir, Moscow: Obshestvenya Pol’za Janeiro 1916;
jogo de xadrez, Marcel Duchamp, Pasadena Art Museum, 18 Outubro 1963;
fotograma do filme À Nous la Liberté, René Clair, 1931;
fotograma do filme Sur le Passage de Quelques Personnes à Travers Une Assez Courte Unité de Temps, Guy Debord, 1959;
fotograma do filme À Nous la Liberté, René Clair, 1931;
Homem Vende-se / trata: Divisão de Recursos Humanos do Estado, performance de Alberto Pimenta, Lisboa, 27 Maio 1991;
gravura do livro: La Nouvelle Justine, ou Les Malheurs de la Vertu, de SADE, D. A. F., 1797;
Figure 2: 7d, 7e, 7f, 7g (Andy, Stu, Seve, Nick) threatening to topple Max Webber’s model of bureaucratic structure within the modern workplace, by spending every afternoon drinking in the Red Lion, Scott King, 2005.
19. Imagens no quadro, de cima para baixo, da esquerda para a direita:
ilustração para edição inglesa de Thesis on the Paris Commune [DEBORD, KOTÁNYI, VANEIGEN, 1962], King Mob;
poster a anunciar a abertura da Antiuniversity of London, 1968;
Art and Culture, John Latham, 1966-69;
capa de revista Plastic Man nº14 [Plastic Man erases words, symbol of crime!], Novembro 1948;
poster Destruction in Art Symposium, Londres, design: John Sharkey, 1966;
poster Help us put an end to gang violence: join us as we shut down Eton, Class War, 2011;
ilustração Keep the Dialectic Open, in HAPT nº10, Londres, 1969 (cortesia Mayday Rooms, Londres);
Seul le Collège de ‘Pataphysique n’entrepend pas de SAUVER LE MONDE, data e autor desconhecidos.
20. Imagens no quadro, de cima para baixo, da esquerda para a direita:
xilogravura representando o Grande Incêndio de Londres, em 1666. in Shlohavot, or, The burning of London in the year 1666, ROLLE, Samuel, Londres, 1667;
The walls of Jericho crumble as the Israelite priest blows his horn, ilustração retirada do manuscripto Islandês, ca. Séc. XIV;
Uma loja de tapetes em Tottenham, Londres, durante os motins de Agosto 2011, foto: Lewis Whyld;
fotograma do filme Weekend, Jean-Luc Godard, 1967;
fotograma do filme Nero, or the Fall of Rome, Luigi Maggi, 1909;
We Have Found New Homes For the Rich, detalhe de capa do jornal Class War, 1980s;
detalhe de Omelet, Carl Barks, in Donald Duck nº146, Novembro 1952.
21. Jacques Derrida, Archive Fever (Chicago; London: The University of Chicago Press) 1998, 10.  No original: “is at work, but since it always operates in silence, it never leaves any archives of its own. It destroys in  advance its own archive.”
22. No original: "archival or anarchival".
23. Fotograma de a cut through the archive of destruction, vídeo, duração variável, The Educational Service of the archive of destruction, 2007-2014.
24. Detalhe de partitura gráfica utilizada em When I Look at the Clouds I See Clouds [nimbostratus], apresentado na Galeria Boavista, Lisboa, Dezembro 2012.
25. L’Éruption du Vésuve, Pierre-Jacques Volaire, 1771.
26. Cock Aktion, Hanatarash, 1985.
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Nota de edição
Entrevista originalmente publicada, em versão editada por Elisa Adami, em Mnemoscape #1: http://www.mnemoscape.org/#!contents/c1cv2. A Mnemoscape é uma plataforma de investigação, revista online e um projecto curatorial dedicado a práticas artísticas contemporâneas e cultura visual, explorando temas em torno da memória, história e do impulso arquivístico. Elisa Adami é uma escritora, investigadora e curadora independente estabelecida em Londres, trabalhando nos campos da arte contemporânea e da cultura visual. A entrevista foi traduzida do inglês por Departamento de Incomunicação Selectiva do arquivo de destruição.
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Pedro Lagoa
É um artista visual cujo trabalho recente se tem desenvolvido em torno de conceitos de destruição, assumindo o acto destrutivo como expressão de recusa e ferramenta crítica.