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O arquivo de destruição
Pedro Lagoa
entrevistado por Elisa
Adami
[ EA ] Vamos começar com uma pergunta bastante directa. O que é o arquivo de destruição?
[ PL ] O arquivo
de destruição é uma estrutura em desenvolvimento que, como o título sugere,
se dedica à colecção de documentos relativos a formas específicas de
destruição. Ao assumir como âmbito de estudo determinados tipos de actos
destrutivos, o arquivo de destruição
reinveste a significação desses actos num movimento contrário à sua natureza. Preserva
artificialmente aquilo que atenta contra a memória.
Em relação à sua
estrutura pode-se talvez distinguir entre um núcleo principal do arquivo e os
seus departamentos e ramificações.
O núcleo principal
dedica-se à pesquisa, colecção e apresentação dos documentos que constituem o
seu acervo, encontrando-se este estruturado em torno de duas linhas-mestras que
orientam a escolha dos documentos adicionados ao arquivo. Nomeadamente:
destruição entendida num sentido físico ‒ i.e., destruição dirigida contra objectos, estruturas, etc.; e destruição
entendida num sentido mais abstracto ‒ destruição dirigida contra ideias. Se aquilo que pode ser entendido como
destruição num sentido físico dispensa grandes explicações, já no que respeita
ao seu sentido mais abstracto, o que pode ser encontrado são documentos que se
focam em práticas mais imateriais e subjectivas de ruptura com sistemas
ideológicos estabelecidos, códigos, práticas, valores, teorias, etc. ... o que
abarca coisas que vão desde movimentos de vanguarda até revoluções políticas,
ou rupturas teóricas em áreas tão diversas como arte, filosofia, política ou
ciência. Fora do âmbito do arquivo encontra-se destruição dirigida directamente
contra seres vivos.
Os departamentos
surgiram mais tarde, como forma de permitir ao arquivo desenvolver-se para além
do seu âmbito inicial, mais restrito, de colecção e apresentação de documentos,
e de permitir que o conjunto de referências que constitui a colecção do arquivo
seja activado na criação de novos trabalhos que gravitam em torno de algumas
das ideias com que o arquivo tenta lidar. Estas ramificações do arquivo
começaram a desenvolver-se através de secções, depois departamentos e, mais
recentemente, passou a incluir um pequeno selo editorial, as Edições do Arquivo.
1
[ EA ] Quando começaste a trabalhar neste projecto e qual a motivação por trás
dessa decisão?
[ PL ] O arquivo teve a sua
primeira apresentação pública em 2007 e como frequentemente acontece com as
ideias, a sua origem é algo nebulosa. Por essa altura encontrava-me já a
trabalhar sobre algumas ideias de destruição. Uns meses antes tinha organizado
a primeira record breaking party em
Frankfurt e estava bastante interessado no conceito de potlatch e em mecanismos de criação de valor simbólico ‒ onde se pode incluir a
iconoclastia ‒ que estiveram de certa
forma na base desse projecto.
Para além disso, tenho
uma certa tendência para coleccionar coisas, ainda que não de maneira
particularmente organizada, e a ideia do arquivo surgiu nessa altura como uma
boa forma de organizar e recontextualizar uma série de documentos que tinha
vindo a reunir tendo como denominador comum estas ideias de destruição. Partindo
do paradoxo básico de um arquivo dedicado à colecção de gestos e acções
contrários à memória ‒ um arquivo que se foca na negação da ideia de arquivo em si ‒ o seu funcionamento e
estrutura foram delineados tendo em vista a constituição de uma ferramenta de
pesquisa não apenas para mim, mas também para eventuais interessados, o que me
pareceu ser um ponto de partida suficientemente interessante e com potencial
para permitir lidar e trabalhar com uma série muito ampla de assuntos. Dada a
falta de limites temporais ou fronteiras 'disciplinares', aliados à
'elasticidade' da ideia de destruição ‒ particularmente no seu sentido mais abstracto ‒ abria-se a
possibilidade de trabalhar de uma forma que não fosse demasiado restrita ou
limitada, deixando em aberto um potencial de desenvolvimento futuro que fosse
além do contexto específico da exposição para a qual foi originalmente criado.
2
[ EA ] Um dos traços distintivos deste arquivo é o facto de todos os documentos aí
coleccionados serem cópias. Queres comentar?
[ PL ] De facto, os documentos coleccionados no
arquivo consistem maioritariamente em fotocópias, impressões, cópias de CDs e
DVDs. O facto de estes documentos serem cópias leva a que, por um lado, o
conteúdo seja privilegiado em detrimento dos aspectos formais dos documentos
originais, como o design de embalagem ou encadernação, e por outro, a que se
efectue um nivelamento das hierarquias estabelecidas com base nesses mesmos
aspectos ao mesmo tempo que se rejeita a aura do objecto único.
Recentemente foram
introduzidos alguns objectos na colecção, mas dificilmente os consideraria como
objectos únicos. São produzidos industrialmente e são portanto, em princípio,
indistinguíveis de muitos outros. Para dar alguns exemplos, numa apresentação
recente do arquivo era possível encontrar um Atlas Mundial de 1939 3, uma garrafa de vinho
Italiano produzido numa herdade anarquista 4, ou uma amostra de um padrão de tapeçaria desenhado por
William Morris 5, entre outros. Apenas
no contexto dos departamentos do arquivo existe uma possibilidade maior de
aparecerem objectos únicos.
Relativamente às cópias
e ao seu uso no arquivo podemos distinguir duas abordagens diferentes. Por um
lado, no contexto da apresentação física do arquivo, os documentos são
geralmente apresentados na sua forma completa. Por outro lado, e enquadrado na
tradição da colagem e apropriação, excertos dos mesmos documentos ‒ textos, imagens, sons ‒ são reordenados e
recontextualizados em novos trabalhos, como acontece por exemplo no vídeo a cut through the archive of destruction
6 ou na colagem de textos
intitulada arquivo 7. No entanto, diria que mesmo no primeiro caso, e dada a
tendência do arquivo para enfatizar as relações que se estabelecem entre os
documentos, estes são utilizados de uma forma semelhante à utilização dos seus
excertos, quando utilizados numa lógica de colagem, para produzir novas
significações a partir do leque de possíveis variações das suas
combinações.
8
[ EA ] O arquivo de destruição não tem
morada fixa. Disseste-me que alguns dos seus conteúdos se encontram
geograficamente dispersos por entre os diferentes locais onde foi apresentado:
Londres, Seul, ... De certa forma podemos dizer que o arquivo carece de um domicílio,
esse famoso archeion, que é a raiz
etimológica do termo 'arquivo'. A domiciliação assegura ao arquivo a
possibilidade de um crescimento e a segurança física de um depósito. Portanto,
a minha questão é: o que acontece a um arquivo sem domicílio permanente? Quais
são as consequências desta configuração deslocalizada, dispersa?
[ PL ] A natureza do arquivo faz com que seja algo
difícil falar em termos de localização e domiciliação, uma vez que se pode
dizer que tem várias localizações ao mesmo tempo que não tem nenhuma. Mas ainda
antes disso, talvez fosse importante começar por especificar a qual dos
significados da palavra 'deslocalizado' nos estamos a referir: se estamos a
falar de algo que "é removido de uma localização específica", ou se
de algo que se encontra "liberto das limitações da localidade" 9. Para falar em termos de localização teríamos que partir
do princípio que o arquivo existe apenas ‒ ou maioritariamente ‒ como uma entidade física. Os conteúdos que mencionas como dispersos são
alguns documentos que foram deixados para trás após apresentações do arquivo
nesses locais, o que daria sentido à primeira definição. Mas, como referi
antes, os documentos do arquivo não são originais, não são objectos únicos, o
que faz com que esse abandono não afecte por aí além a integridade do arquivo
já que, em princípio, é sempre possível voltar a reproduzir esses mesmos
documentos. O arquivo pode, em teoria, ser recriado em qualquer local onde
exista a tecnologia necessária e, neste sentido, o arquivo aproxima-se mais da
segunda definição.
Dizer que o arquivo não
tem morada fixa, significa que o arquivo não tem uma sede, uma localização
física onde esteja permanentemente instalado e disponível para consulta, e que
nem todos os seus documentos existem numa forma materializada. Ou pelo menos não
na forma em que são apresentados no arquivo. O acesso a uma ideia aproximada do
conteúdo do arquivo pode ser feito através de um inventário dos seus
documentos, que é mantido sob a forma de fichas de leitura que, por sua vez,
tornam possível a reconstituição do arquivo. Por isso, se se assumir que o
arquivo existe mais como enunciação, como ideia e possibilidade de
materialização da mesma, do que como uma manifestação física constante, pode-se
afirmar que este existe para além das limitações da localidade. No entanto, e
de forma a existir como um arquivo que pode de facto ser utilizado e consultado
enquanto tal, as suas manifestações físicas tornam-se indispensáveis. Dada a
possibilidade de reprodução dos documentos do arquivo em praticamente qualquer
local ou momento, eu diria que a consequência derradeira desta dispersão, como
tu lhe chamas, será que esses documentos ‒ as suas esporádicas e efémeras materializações ‒ adquirem o carácter de
provas, forçosamente descontextualizadas, da existência do arquivo.
10
[ EA ] Há ainda uma outra
manifestação do arquivo, que pode ser encontrada online. A primeira vez que
tive contacto com este projecto na web, lembro-me de percorrer as diferentes
secções ‒ Department of Stuffed Geniuses,
Quagmire Fields Section, etc. ‒ e não conseguir evitar pensar no Musée
d'Art Moderne, Départment des Aigles, de Marcel Broodthaers. O trabalho de
Broodthaers é frequentemente associado à crítica institucional [Institutional
Critique] e o seu Museu pode, na verdade, ser considerado como uma instituição
de crítica em si mesmo. Até que ponto, se algum, houve uma tentativa de
alcançar algo semelhante com o teu arquivo ‒ quero dizer, uma desconstrução da instituição 'Foucauldiana' do arquivo através do estabelecimento de uma contra-instituição?
[ PL ] Há uma entrevista de 1972 11 em que Broodthaers, quando questionado sobre a
relação entre o seu Musée d'Art Moderne
e os museus tradicionais, discorre sobre a maneira como uma obra de arte se
desenvolve de forma semelhante a um processo biológico: começa com uma intenção
precisa mas acaba por se desenvolver de uma forma tal que adquire vida própria,
escapando à ideia e intenção originais, uma vida sobre a qual ele não tem já
praticamente nenhum controlo, as ideias
multiplicando-se como células vivas 12 e tomando direcções
inesperadas. De forma bem mais modesta, eu diria que o arquivo de destruição
começou com uma intenção relativamente definida que se foi tornando mais difusa
com o tempo, abrindo progressivamente espaço para novas direcções e
possibilidades, mas que desde o seu início nunca teve a pretensão de assumir um
papel semelhante, em relação a outros arquivos, como o que o Musée d'Art Moderne de Broodthaers
assumiu em relação à instituição Museu do seu tempo.
A concepção do arquivo foi seguramente informada por uma abordagem crítica a uma ideia geral do papel e funcionamento dos arquivos, mas isto adveio mais de uma tentativa de modelar a sua estrutura e funcionamento através de uma abordagem conceptual que tentou criar uma coerência entre o arquivo e o seu objecto, do que de uma intenção de efectivar uma 'crítica institucional' do Arquivo.
A concepção do arquivo foi seguramente informada por uma abordagem crítica a uma ideia geral do papel e funcionamento dos arquivos, mas isto adveio mais de uma tentativa de modelar a sua estrutura e funcionamento através de uma abordagem conceptual que tentou criar uma coerência entre o arquivo e o seu objecto, do que de uma intenção de efectivar uma 'crítica institucional' do Arquivo.
Os esforços iniciais
concentraram-se em reunir um núcleo de documentos que ajudasse a definir o
âmbito do arquivo e ao mesmo tempo testar as limitações e elasticidade da noção
de destruição abstracta, e como isto poderia encontrar um eco na própria
estrutura do arquivo.
Assim, ao tentar lidar
com a noção de destruição como objecto de preservação arquivista houve uma
série de pequenos desvios que foram introduzidos na estrutura e funcionamento
do arquivo, que o distinguem da maioria dos arquivos institucionais. Para dar
apenas alguns exemplos, mencionaria o facto de que todos os documentos se
encontram disponíveis para ser consultados e manuseados sem mediação do
arquivista; ou que não existem hierarquias ou imposições de categorizações ou
classificações rígidas aos documentos, sendo estes conscientemente organizados
através de sistemas que variam a cada apresentação, e sem que pistas óbvias
referentes a esses sistemas sejam dadas ao utilizador, assim limitando a
capacidade do arquivo de impor formas de interpretação ao mesmo tempo que
sublinha a irredutibilidade dos documentos a categorias rígidas.
Ainda que consciente de
alguns constrangimentos inevitáveis numa situação desta natureza ‒ a apresentação de um
determinado conjunto de documentos e referências dentro de um contexto definido
‒ o arquivo tenta ser o
menos impositivo possível sobre o visitante/utilizador, deixando um grande
número de decisões nas suas mãos, desde como aceder ‒ ou não ‒ ao arquivo, até aos
usos que podem ser feitos dele e do seu conteúdo.
A expansão do arquivo em
departamentos e outras ramificações foi algo que começou a acontecer numa fase
mais tardia.
Juntamente com a tomada
de consciência das limitações que a mera pesquisa, selecção, organização e
apresentação de documentos comportavam em si, houve também a necessidade de
encontrar forma de acomodar, dentro do projecto, trabalho que se afastava já destas
acções arquivistas, trabalho que era gerado pelo arquivo mais do que
simplesmente coleccionado. A decisão de expansão através de departamentos abria
possibilidades de jogar com o material coleccionado com uma maior liberdade ‒ permitindo criar novas
lógicas e conjuntos de regras para cada um deles, bem como evitar repetições ‒ e desenvolver linhas de
trabalho e ideias mais concisas e específicas, de uma forma que afastava o
arquivo de um mero repositório de documentos, cujo potencial ‒ de gerar novas ideias e
trabalho ‒ não me parecia estar a
ser totalmente aproveitado.
[ EA ] O acto destrutivo pode
assumir muitos significados diferentes. Por exemplo, o mesmo gesto de queimar
livros adquire uma significação diferente de acordo com o contexto em que é
executado. Enquanto que os rituais públicos de John Latham, em que este procede
à queima de torres de livros entre 1964 e 1968, devem ser interpretados como um
acto liberatório, de emancipação, o mesmo gesto quando executado por um poder
político ou religioso, como a Inquisição Espanhola, a Alemanha Nazi ou as
brigadas de bombeiros em Fahrenheit 451,
torna-se um acto opressivo, de censura. O reverso da destruição como
resistência e revolução é a destruição como forma de opressão. Como lidas com
esta contradição? Esta faceta reaccionária da destruição encontra-se
representada também no arquivo?
[ PL ] Na verdade, todos os
exemplos que mencionas fazem parte da colecção do arquivo, pelo que eu diria
que sim, que o lado que apelidas de 'reaccionário' se encontra representado. No
entanto, mais do que em preceitos morais, o processo de selecção dos documentos
baseia-se maioritariamente em critérios de análise subjectiva que tentam
reconhecer criticamente se certos actos destrutivos são suficientemente
relevantes ou simbólicos para se encontrarem investidos de um carácter de
interesse para o contexto do arquivo, ou não.
Analisar coisas em
termos de 'progressivo' ou 'reaccionário' poderia tornar-se um exercício
particularmente esgotante. Mesmo se os exemplos que mencionas podem ser
analisados de forma bastante consensual nesses termos, muito frequentemente,
gestos destrutivos contêm em si uma complexidade e subjectividade que não são
redutíveis a dualidades simplistas, coexistindo em cada gesto várias
características, muitas vezes contraditórias entre si.
Daí que, porquanto o
arquivo tente manter uma diversidade nos seus documentos que lhe permita evitar
tornar-se demasiado unidireccional no seu conteúdo e manter um certo grau da
complexidade inerente ao seu sujeito, existe também um esforço em evitar a
produção ou a imposição de julgamentos morais, ou outras categorizações do
mesmo tipo, sobre os documentos seleccionados. Isso é algo que é deixado em
aberto para o utilizador do arquivo decidir se quer ou tem necessidade de
efectuar isso, ou não.
13 14
[ EA ] A tua pesquisa abarca um período de tempo alargado, desde as vanguardas
históricas do início do séc. XX, passando pelas neo-vanguardas dos anos 60, até
ao presente. Estou curiosa: detectas algumas tendências ou padrões na evolução
e uso programático da ideia de destruição na arte contemporânea?
[ PL ] Essa é uma questão algo
difícil porque basicamente não penso muito nesses termos... regra geral, a
organização dos documentos do arquivo não obedece a uma ordem cronológica. Para
mim é mais interessante criar associações que são transversais ao tempo e ver
como certas coisas são apropriadas ou ressurgem em diferentes épocas e
contextos, sob diferentes formas.
Produzir uma análise
como a que tu pedes seria sempre demasiado parcial, porque põe em jogo certas
simplificações e generalizações de narrativas que, apesar de úteis até um certo
ponto, dão uma impressão falsa ‒ e limitada ‒ de um determinado tempo e da sua relação com o passado através da ideia de
'evolução'. Em última análise, poderia dizer-nos mais acerca dos processos em
curso na selecção do que se decide tornar visível e do que se decide deixar ao
esquecimento ou à obscuridade...
Apesar de tudo, tendo
consciência do quão limitada e generalista uma análise destas forçosamente
será, é ainda possível admitir que determinados momentos no tempo ‒ e coordenadas no espaço
‒ vêem certos tipos de
acções emergir com uma aparentemente maior consistência ou persistência. Para
isso, convém ter presente que um acto destrutivo deliberado e consciente
implica sempre, na sua raiz, uma forma de recusa ou de negação. Recusa de
aceitação, de conformismo, recusa de sujeição a um tempo específico: o
Presente. Estas acções são influenciadas por, e rebelam-se contra, o tempo que
as gerou, apontando directamente ao momento cultural, social e político em que
são produzidas.
Logo, se olharmos para
momentos específicos da História recente, como a Europa do séc. XIX, a I e II
Guerras Mundiais, os anos 60 ou 70 do século passado, talvez não seja de
admirar que se encontrem neles uma série de rejeições radicais.
Outros factores entrarão
certamente em jogo, mas é de suspeitar que não será apenas por acaso que a
desumanização do trabalhador, trazida no século XIX pela Revolução Industrial e
pelo início da produção em massa, é acompanhada pela emergência em Londres,
Berlim e Paris de pinturas que representam cidades devastadas, ruínas,
paisagens queimadas ou até mesmo invasões bárbaras, ecoando também os desejos
ocultos de uma burguesia incapaz de imaginar outro escape para o imenso tédio que
havia produzido para si mesma; ou que o Dadaísmo surja aparentemente como uma
recusa veemente dos valores elevados dessa Europa 'civilizada' que tinha
acabado de dar à luz o modelo racional-científico da guerra química e de
trincheiras na I Guerra Mundial, uma sombria antecipação da transposição dos
modelos de produção em massa para a destruição em massa posta em marcha durante
a II Guerra Mundial, que por seu lado fomentou uma nova vaga de vanguardas
artísticas e políticas, com um conjunto de trabalhos e práticas de cariz
fortemente iconoclasta; ou que a seguir
à rejeição da perspectiva e do figurativo na pintura, que evoca uma rejeição da
antiga ordem simbólica e estruturas de poder, vem a Revolução Russa, que abre
caminho, até aos anos 30, a uma série de revoluções artísticas e científicas,
de cariz fortemente experimental, tão extraordinárias e admiráveis, quanto por
vezes esquecidas; ou que o contexto dos anos 60 e 70 traga consigo um
considerável número de trabalhos onde televisões, automóveis ou pianos,
símbolos de consumo e estatuto social das sociedades ocidentais da época, são
destruídos; culminando depois na reacção contra o 'objecto' artístico trazida
pela arte conceptual; ou que o tipo de acções produzidas durante o DIAS 15 seguramente não fossem
estranhas a um mundo polarizado pela Guerra Fria, com a memória da II Guerra
Mundial em fundo e a ameaça de uma catástrofe nuclear iminente;... e no entanto, nada disto constitui uma
análise minimamente precisa, ou sequer razoavelmente meticulosa ou
representativa que nos permita falar em termos de 'tendências' ou 'evolução',
uma vez que exclui uma quantidade enorme de contextos e geografias, cada qual
com as suas especificidades, e que coexistiram com os exemplos mencionados.
Continuando, apesar de
tudo, com esta espécie de exercício e ainda consciente das suas limitações,
arriscaria dizer que ao chegar aos anos 80 a produção de trabalho com um
carácter 'destrutivo' abranda, o que possivelmente reflecte um alinhamento mais
próximo dos artistas com o poder político e económico da altura bem como a
gradual absorção da arte pelo campo da 'cultura' e das 'indústrias culturais'…
Para olhar para o
presente, e mesmo se nos últimos anos parece haver um interesse renovado pelo
tema da destruição patente nalgumas exposições que ocorreram a nível
institucional, tal como o renovado interesse por Gustav Metzger e o DIAS, ou as
reconstituições recentes das Skoob Towers
de John Latham em Frankfurt, a
exposição Damage Control no Hirshhorn Museum, ou Film at the End of Art na
Nottingham Contemporary, para nomear apenas algumas, o foco parece estar
colocado em trabalhos produzidos nos anos 60 e 70, mais do que em trabalhos de
novas gerações de artistas.
Esta impressão ‒ embora apressada ‒ deixa contudo algumas
questões a pairar, tais como: será que nos encontramos numa altura em que a
destruição em arte é apenas merecedora de interesse historiográfico,
arquivista? Ou será simplesmente que as expressões de rejeição mais fortes se
encontram fora do campo da arte contemporânea, e as que são produzidas no seu
seio não alcançam visibilidade? Estaremos nós num momento em que existe um
alinhamento dos artistas com o momento presente não existindo, portanto,
sentimentos de recusa a ser expressados através da arte? A ser verdade,
poder-se-á eventualmente especular também que, com a presente crise de
pensamento utópico ‒ sufocado por aquilo que Perniola denomina de 'cinismo niilista' 16 ‒ e com a colonização de praticamente todos os espaços livres da vida e da
imaginação pela esfera económica, talvez mais do que um alinhamento dos
artistas com o presente o que aconteceu foi que o espaço da destruição ‒ tanto simbólica como
real ‒ foi completamente
tomado pelos poderes político e económico, não deixando aos artistas grande
margem para competir com eles...
17
18 19
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[ EA ] No ensaio Archive Fever, Derrida fala sobre o impulso de destruir o arquivo e, apoiando-se em
Freud, relaciona-o com a pulsão de morte. Esta pulsão de morte, diz, "está
sempre presente, mas como opera de forma silenciosa, nunca deixa arquivos
próprios. Destrói por antecipação o seu próprio arquivo" 21. O arquivo que estás a
construir move-se na direcção exactamente oposta; não destrói nada, ao invés,
preserva a memória dos mesmos actos de destruição que ameaçaram a sua
existência em primeiro lugar. Vês o arquivo
de destruição como uma instituição destrutiva ou de preservação? Ou, por
outras palavras, definirias o impulso que está na base do teu trabalho como arquívico ou anarquivico? 22
[ PL ] Como mencionei antes, a minha motivação para começar o
arquivo não correspondeu exactamente a um impulso de preservação, apesar de
este traço se encontrar obviamente presente e dar origem a uma das questões que
considero interessantes, que é o paradoxo de preservar aquilo que, em si,
trabalha contra a memória.
Na forma como preserva
os veículos de transmissão da memória ‒ mesmo que não se trate de documentos originais ‒ pode-se falar de um
claro impulso arquívico.
No entanto, acredito que
o arquivo tem também um potencial destrutivo, que é de uma natureza abstracta,
mais do que física. O arquivo não tenta apagar a memória, mas tem presente a
possibilidade de dar origem a pensamento e acções que possam ser de uma
natureza destrutiva ‒ mais do que efectuar uma destruição directa. E talvez isto, aliado à forma
como opera ‒ contrariando certos
procedimentos de arquivos convencionais ‒ e à maneira como o arquivo trabalha no sentido de preservar a memória dos
gestos destrutivos ‒ destruindo assim as intenções originais por trás desses actos, a única
forma de ser consequente com o conceito de destruição em si, ainda que por
contraposição ‒ permite-me especular
que talvez o impulso anarquívico não
esteja totalmente ausente do arquivo.
23
[ EA ] Talvez o gesto derradeiro do arquivo de destruição deva ser a sua própria aniquilação ‒ a fase extrema em que o arquivo cumpre a sua inerente vocação
auto-destrutiva. Já alguma vez pensaste em destruir o teu próprio arquivo?
[ PL ] Ainda não, apesar de essa parecer ser, a
avaliar pela quantidade de vezes que a pergunta surge, uma preocupação muito
presente num número considerável de pessoas que têm contacto com o arquivo... a
meu ver o projecto encontra-se ainda numa fase bastante inicial, e pelo menos
até eu sentir que a ideia se encontra esgotada e que começa a cair em repetição
‒ em si mesma uma forma
de destruição ‒ não me parece que me vá
preocupar muito com isso.
A possibilidade de
destruir o arquivo levanta também algumas questões acerca de que tipo de
destruição é que estamos a falar, já que, como eu propus algures acima, o
arquivo existe não só enquanto entidade física mas também como ideia. E se uma
coisa é destruir uma materialização física de uma ideia, já destruir uma ideia
em si, é toda uma outra coisa.
24
25
[ EA ] Tens alguns exemplos
favoritos de trabalhos sobre destruição que gostasses de partilhar connosco?
[ PL ] Demasiados, na verdade, o que não facilita
uma selecção... e considerando que esta entrevista já vai bastante longa, deixo
apenas um nome, o grupo de noise Japonês
Hanatarash, e referência a duas das suas performances ‒ 'Bulldozer Gig' e 'Cock Aktion' ‒ que surgem no contexto
político e económico do colapso da 'bolha' económica do Japão nos anos 80. Acho
que a intensidade e radicalidade extremas das duas performances dispensam a necessidade
de mais retórica.
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Referências
1. The London Branch of the archive of
destruction, Gasworks, Londres, 2014
2. Record breaking party, Haus Nummer Elf,
Frankfurt am Main, 2007
3.
4.
5.
6. A cut through the archive of destruction,
vídeo, duração variável, The Educational Service of the archive of destruction,
2007-2014 https://vimeo.com/40118017
7. Arquivo, 2012.
Versão impressa: pasta de arquivo,
carimbo, impressão digital sobre papel.
Publicado em 2013 por: the Editions of the
Archive
8. Archive of destruction: The Quagmire Fields
Section, Tschoperl, Frankfurt am Main, 2007
9. Em inglês, a
palavra 'delocalized' assume dois significados, de acordo com o dicionário
Merriam-Webster: « something that "is removed from a particular
location", or something that is "free from the limitations of
locality"»
10. The Archaeological Department of the archive
of destruction, 2014
11. Interview with Jürgen Harten and Katharina
Schmidt, 1972, in BROODTHAERS, Marcel, Writings, Interviews, Photographs,
MIT Press, Cambridge, Massachussets, 1988
12."You conceive
something which you believe is intimately connected with a determined event
that has taken place in society, and then this thing all of a sudden starts to
live its own life, to grow and to produce cells. At that moment a kind of
biology is born out of art, over which the artist himself has practically no
control. After this I think that the artist will only be able to control this process
for a short time and, moreover, only in a very general way. Then, he loses his
hold. The ideas begin to multiply themselves like living cells." Marcel
Broodthaers in Interview with Jürgen
Harten and Katharina Schmidt, 1972
13. Apreensão de livros
proibidos, Alemanha, 1933, Bildarchiv Preussischer Kulturbesitz
14. Skoob Tower Ceremony, John Latham, South
Bank, Londres, Junho 1966 (com Gustav Metzger)
15. DIAS : Destruction in Art Symposium, organizado
por Gustav Metzger em Londres, em 1966
16. A Arte e a sua Sombra, PERNIOLA, Mario, Assírio & Alvim, 2006
17. Imagens no quadro,
de cima para baixo, da esquerda para a direita:
Algemeene
Atlas, de ROECK, M., TILMONT, J., Uitgeverszaak Wermael-Charlier (N.V.)
Namen, 1939;
Hiob auf
dem Misthaufen (Job on the Mound of Manure), Albrecht Dürer,
ca. 1505;
3 Stoppages
Étalon, Marcel Duchamp, 1913-14;
capa do livro Voyage au Bout de la
Nuit, CÉLINE, Louis-Ferdinand, ed. Denoël et Steele,
1932;
pág. de Fin
de Copenhague, Asger Jorn, Guy Debord, Editions Bauhaus Imaginiste, 1957;
mapa do Kingdom
of Elgaland Vargaland (anexação do
Bodensee), Carl-Michael von Hausswolff, Leif Elggren, 2008.
18. Imagens no quadro,
de cima para baixo, da esquerda para a direita:
From Cubism
and Futurism to Suprematism. New Painterly Realism. The Third Edition. MALEVICH, Kasimir,
Moscow: Obshestvenya Pol’za Janeiro 1916;
jogo de xadrez, Marcel Duchamp, Pasadena Art Museum, 18 Outubro 1963;
fotograma do filme À Nous la Liberté,
René Clair, 1931;
fotograma do filme Sur le Passage de
Quelques Personnes à Travers Une Assez Courte Unité de Temps, Guy Debord,
1959;
fotograma do filme À Nous la Liberté,
René Clair, 1931;
Homem Vende-se / trata:
Divisão de Recursos Humanos do Estado, performance de Alberto Pimenta,
Lisboa, 27 Maio 1991;
gravura do livro: La Nouvelle
Justine, ou Les Malheurs de la Vertu, de SADE, D. A. F., 1797;
Figure 2:
7d, 7e, 7f, 7g (Andy, Stu, Seve, Nick) threatening to topple Max Webber’s model
of bureaucratic structure within the modern workplace, by spending every
afternoon drinking in the Red Lion, Scott King, 2005.
19. Imagens no quadro,
de cima para baixo, da esquerda para a direita:
ilustração para edição inglesa de Thesis
on the Paris Commune [DEBORD, KOTÁNYI, VANEIGEN, 1962], King Mob;
poster a anunciar a abertura da Antiuniversity
of London, 1968;
Art and
Culture, John Latham, 1966-69;
capa de revista Plastic Man nº14 [Plastic Man
erases words, symbol of crime!], Novembro 1948;
poster Destruction
in Art Symposium, Londres, design: John Sharkey, 1966;
poster Help
us put an end to gang violence: join us as we shut down Eton, Class War,
2011;
ilustração Keep
the Dialectic Open, in HAPT nº10, Londres, 1969 (cortesia Mayday Rooms,
Londres);
Seul le Collège de
‘Pataphysique n’entrepend pas de SAUVER LE MONDE, data e autor
desconhecidos.
20. Imagens no quadro,
de cima para baixo, da esquerda para a direita:
xilogravura representando o Grande Incêndio de
Londres, em 1666. in Shlohavot, or, The
burning of London in the year 1666, ROLLE, Samuel, Londres, 1667;
The walls
of Jericho crumble as the Israelite priest blows his horn,
ilustração retirada do manuscripto Islandês, ca. Séc. XIV;
Uma loja de tapetes em
Tottenham, Londres, durante os motins de Agosto 2011, foto: Lewis Whyld;
fotograma do filme Weekend, Jean-Luc Godard, 1967;
fotograma do filme Nero, or the Fall of Rome, Luigi Maggi, 1909;
We Have
Found New Homes For the Rich, detalhe de capa do jornal Class
War, 1980s;
detalhe de Omelet,
Carl Barks, in Donald Duck nº146, Novembro 1952.
21. Jacques Derrida, Archive Fever (Chicago; London: The
University of Chicago Press) 1998, 10.
No original: “is at work, but since it always operates in silence, it
never leaves any archives of its own. It destroys in advance its own archive.”
22. No original:
"archival or anarchival".
23. Fotograma de a cut through the archive of destruction, vídeo, duração variável, The
Educational Service of the archive of destruction, 2007-2014.
24. Detalhe de partitura
gráfica utilizada em When I Look at the
Clouds I See Clouds [nimbostratus], apresentado na Galeria Boavista,
Lisboa, Dezembro 2012.
25. L’Éruption du Vésuve, Pierre-Jacques
Volaire, 1771.
26. Cock Aktion, Hanatarash, 1985.
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Nota de edição
Entrevista originalmente
publicada, em versão editada por Elisa Adami, em Mnemoscape #1: http://www.mnemoscape.org/#!contents/c1cv2.
A Mnemoscape
é uma plataforma de investigação, revista online e um projecto curatorial
dedicado a práticas artísticas contemporâneas e cultura visual, explorando
temas em torno da memória, história e do impulso arquivístico. Elisa Adami é uma escritora,
investigadora e curadora independente estabelecida em Londres, trabalhando nos
campos da arte contemporânea e da cultura visual. A entrevista foi traduzida do
inglês por Departamento de Incomunicação Selectiva do arquivo de destruição.
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Pedro Lagoa
É um artista visual cujo trabalho recente se tem
desenvolvido em torno de conceitos de destruição, assumindo o acto destrutivo
como expressão de recusa e ferramenta crítica.