Destruição
Registos do trauma da perda do Portugal Rural
Dizem que um acto de destruição é um acto que faz desaparecer qualquer coisa. Se não se perguntar mais nada acerca da circunstância e da razão desse desaparecimento, pouco esclarecimento haverá. Pode ser até pura ilusão, ou não sejam os próprios ilusionistas os verdadeiros especialistas do desaparecimento.
Num registo bélico, a destruição é o aniquilamento do inimigo…, mas existem outros sentidos bastante mais positivos onde a destruição é condição necessária para o renascimento e a criação. Assim pensou o bom Deus quando avisou Noé que iria destruir a humanidade com um dilúvio para que tudo recomeçasse de novo como o Sol em cada amanhecer e a criação se reconciliasse de uma vez por todas com o criador. Não deu em nada, a julgar pelo que se passou entretanto e pelos resultados dos múltiplos dilúvios e catástrofes que aconteceram.
Os fragmentos de imagem/texto que se apresentam a seguir pertencem à Vida no Campo (Domingues, 2011, Dafne, Porto, no prelo), um ensaio sobre a destruição ou, num registo mais psicológico, sobre a perda do Portugal Rural. Vida no Campo é, por isso, uma metáfora sobre a perda desse Portugal Rural e um antídoto contra este mau viver pelo despovoamento, pelo abandono, ou, noutro registo, pela profunda metamorfose que vai lavrando pelo país dos (ex)agricultores, pela perda das suas práticas ancestrais, modos de vida, território e paisagens. Ruínas, em muitos casos.
Não é esta uma questão menor. Como a Língua ou a História, a paisagem é um poderoso marcador identitário, uma casa comum. No entanto, não há paisagens para sempre. A paisagem é registo da sociedade que muda e se a mudança é tanta, tão profunda e acelerada, haverá registo disso e pouco tempo e muito espaço para compreender e digerir todas as marcas e a forma como se vão atropelando mutuamente, ora relíquias, ora destroços.
Ao mesmo tempo, se muda a paisagem, os referentes estáveis que as imagens da paisagem produzem entram numa atrapalhação, num acelerar de diferenças onde, frequentemente, se reconhece melhor o que se perde do que o que se ganha de novo e o modo como é avaliado esse ganho, porque parece ser estranho ou exótico, não ser dali, não ser vernacular como diziam os romanos dos escravos que nasciam em casa por contraposição aos que eram recrutados algures com os seus estranhamentos.
É por isso que é tão frequente dizer-se da destruição que se está a produzir, da descaracterização, da perda de supostas autenticidades que de tanto mitificadas parecem ter pertencido a um tempo primordial, sem história e sem outro referente que não seja um passado mais que perfeito onde a vida no campo era a imagem do Paraíso e do bom povo sábio, pobre mas honesto que vivia na sua simplicidade, alegria e comunhão com a Natureza e oração com os deuses.
As marcas e as memórias desse Portugal Rural vão-se decompondo com a desruralização e o seu rastro de efeitos colaterais: o despovoamento, o envelhecimento, o abandono da produção agrícola e dos campos, o desaparecimento de certos estilos de vida, saberes e práticas culturais – o interior, no dizer mais frequente sobre estas coisas. Os poucos que vão ficando vivem de uma economia assistida entre pensões, reformas, poupanças, ou remessas de familiares e quem pode sai porque são escassos os empregos, e a miragem do bucolismo e dos paraísos perdidos é mais de quem está de fora (do tal interior) e pensa que o rural e natureza são lugares para passar férias e turismo.
Noutro registo diferente deste – quando o abandono dos campos e da agricultura não significa o abandono das gentes -, a ruralidade transforma-se por dentro ou é absorvida pelo que dá o nome de urbanização. É tão estranha esta pós-ruralidade que não há maneira de adjectivar as paisagens que constrói. São paisagens transgénicas, novos territórios que tal como os OGM (organismos geneticamente manipulados) combinam e reproduzem referências genéticas distintas e as re-misturam de forma inusitada. Quem olha normalmente não entende, e porque aí não vê as cidades belas ou as boas e lindas aldeias, fica triste e chama a isto feio. Deixemos a estética para depois; o povo diz que não se pode amar o que não se conhece e, neste caso, o que mais se desconhece é o que mais há. Um paradoxo.
Vida no Campo é sobre isto tudo: mitologias do último país rural da Europa que persiste em inscrever no imaginário colectivo (e ao mesmo tempo), as imagens bucólicas e os destroços desse mundo perdido, variando entre calamidades e incêndios, resorts para todos os gostos com muita relva e espaço verde, turismo rural, desertificação ou, ao contrário, casas e estradas por todo o lado como no NO de Portugal. Se 97% da economia não é rural, o país, a sociedade e o território, são urbanos (por defeito e enquanto não se conseguir sair desta dicotomia). Parece desconcertante, mas para escrever um ensaio é quanto basta.
1
Era é o passado imperfeito do indicativo do verbo ser. Fora é o passado mais que perfeito, de um tempo primordial em que o rural fora um tempo fora do tempo. Era de facto uma casa de granito com inscrições na padieira e que já deve ter conhecido tempos de fartura e prosperidade. Entretanto, desde há muitos anos que já lá está uma vinha onde antes seria o soalho do primeiro piso ou os tectos em masseira de carvalho; uma vinha de interior como se fora jardim de claustro de convento.
Hoje é mais um produto imobiliário comercializado por uma rede internacional de negócios da especialidade: produtos locais em comércios globais, como é comum em quase tudo. Neste caso, o que para alguns seria a desgraça de uma ruína, é o encanto da própria ruína. O tema não é de hoje. Desde que (pelo menos) na Renascença europeia se produziu e alimentou a estética dos despojos da antiguidade, até ao romantismo que lhe amplificou os sentidos e a poética, a ruína vai conservando este valor de patine de museu e de aura das coisas sacralizadas. Será difícil não sentir uma certa nostalgia, a mesma que é capaz de alimentar o interesse e o aumento do custo desta e de outras ruínas. Maior do que a perda, é a consciência da perda o que verdadeiramente importa.
2
O Voo do Arado é nome de uma exposição realizada em 1996 no Museu Nacional de Etnologia e de um livro indispensável para perceber o apagamento da agricultura tradicional em Portugal a partir da década de 19501.
Transmutado numa condição de objecto voador ou de adereço decorativo do frontão da entrada principal da casa, o arado sai da realidade e do museu para entrar no mundo do ready-made e dos programas simbólicos da arquitectura e do espaço doméstico. Junto com o arado, um objecto que é um dos principais símbolos do próprio processo civilizacional, tudo o que vem das artes e dos ofícios da agricultura – rodas, carros, mós, noras, garrafões, pipos, espigueiros, etc. – se converte em objecto cujo registo simbólico se desdobra ao mesmo tempo em relíquia, exorcismo, identidade, recordação…
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1 - J. Pais Brito; Oliveira Baptista; Benjamim Enes Pereira org. (1996), O Voo do Arado, Museu Nacional de Etnologia, Instituto Português de Museus, Lisboa
3
Como é linda a minha aldeia
É tão linda a minha aldeia, o lugar onde eu nasci
Sob a luz de uma candeia, lembro a terra onde eu vivi
É tão lindo o amanhecer, cai o sol sobre as herdades
Lá não pudeste viver, hoje choras de saudades
Na hora da Ave Maria, quando os sinos vão tocando
É chegado o fim do dia, nossa gente vai rezando
Nessa hora de alegria, logo se prepara a ceia
À hora da Ave Maria... como é linda a minha aldeia
Oh jardim das oliveiras, guarda os teu lindos trigais
És a esperança verdadeira, és a terra dos meus pais
É tão lindo o amanhecer, cai o sol sobre as herdades
Lá não pudeste viver, hoje choras de saudades
Na hora da Ave Maria, quando os sinos vão tocando
É chegado o fim do dia, nossa gente vai rezando
Nessa hora de alegria, logo se prtepara a ceia
À hora da Ave Maria... como é linda a minha aldeia2
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2 - Roberto Leal, Canto a Portugal, 2003
4
Isto da arte do campo e do campo da arte tem muito que se lhe diga: sem perceber o campo da arte não se percebe a arte, nem a do campo, nem qualquer outra3. Diz Bourdieu que o campo da arte é como qualquer outro campo social, uma arena particular onde cada um joga as regras do jogo para demarcar posicionamentos face aos actores que legitimam a autoridade sobre quem são os artistas, as artes e as propriedades desses bens simbólicos. Marcel Duchamp sabia da carga iconoclasta da sua Fonte, recusada pelo Salão dos Independentes, 1917, N. York; para aumentar o seu (contra)poder no Salão, combinou mesmo com um seu amigo abastado que oferecesse um bom dinheiro pela Fontaine de Richard Mutt (a marca de fabrico do urinol). Era só o início de uma longa história acerca da arte e do seu poder narrativo, para quem vê e para quem dá a ver. Será que podemos fazer obras que não sejam arte?, perguntava o Marcelo dos Campos enquanto instalava este comboio de manjedouras já-feitas para umas vacas que entretanto ficaram loucas.
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3 - José Olaio Correia Carvalho, O Campo da Arte segundo Marcel Duchamp, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1999. Pierre Bourdieu, La production de la croyance. Contribution à une économie des biens symboliques, Actes de la recherche en sciences sociales, n° 13, 1977, p. 3-43. Pierre Bourdieu, Les règles de l’art : genèse et structure du champ littéraire, Ed. du Seuil, Paris, 1992. J-François Lyotard, Les Transformateurs Duchamp, Ed. Galilée, Paris, 1977. http://www.centrepompidou.fr/education/ressources/ensduchamp/ ens-duchamp.htm
5
“Urge acudir às aldeias – amanhã será tarde, amanhã teremos os caminhos de ferro, a invasão desordenada de novas ideias, os novos usos e costumes; amanhã teremos ali a moda (…), a obliteração dos tipos puros, a ruína das indústrias caseiras, da olaria, dos tecidos, dos bordados e das rendas, conservadas com tanto carinho”4.
Urge acudir às aldeias é uma expressão que podia ser de hoje, no enunciado de muitos nostálgicos que não vêem nas aldeias as velhas aldeias típicas que pensam ainda existir. Alguns locais - os que vivem nas aldeias mas já não são de facto aldeões no verdadeiro sentido da palavra -, constroem estas réplicas em miniatura das suas próprias igrejas e capelas. Não é para ultrapassar o sentimento da perda da verdadeira capela; é para reforçar e celebrar a existência da própria capela; para sublinhar o seu sentimento de identidade e de autoestima; para destacar da realidade aquilo que está para além dessa realidade. São assim as coisas sagradas.
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4 - Joaquim da Vasconcelos, 1882, cit em J. Leal, Metamorfoses da arte popular: Joaquim de Vasconcelos, Vergílio Correia e Ernesto de Sousa, Etnográfica, Vol. VI (2), 2002, pp. 251- 280, p.261.
6
Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.5
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5 - Alberto Caeiro, s/d, O Guardador de Rebanhos. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993), 32.
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Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto.
Fotografias do autor