O empreendedor como arquitecto • Pedro Levi Bismarck





Se há alguma coisa que me tem interessado nos últimos tempos é observar como a racionalidade político-económica do neoliberalismo se tem vindo paulatinamente a instalar no campo da arquitectura (enquanto prática e discurso). Um dos aspectos fundamentais deste processo diz respeito à dissolução da sua condição disciplinar dentro do um novo quadro de prática profissional. As grandes discussões que mobilizam a arquitectura prendem-se, hoje, com estratégias de internacionalização, branding, empresarialização e networking: já não interessa a obra propriamente dita, mas sim como é que essa pode ser vendida e exportada enquanto produto em nome das qualidades (económicas, universais e místicas) daquela nova marca que é, hoje, a “arquitectura portuguesa”. Basta ver as iniciativas que têm preenchido (até à exaustão) a agenda dos últimos tempos, particularmente o “Work-Shop ARQ 3.0 – Architecture International Challenge”, realizado em Serralves, a que o Jornal Arquitectos (na sua última edição) confere destaque com uma entrevista aos seus organizadores. E onde se manifestam bem as ambiguidades de um discurso mais obcecado com as estratégias de marketing do produto (arquitectónico) em formato cocktail networking e Atlantic design do que em debater as condições e efeitos de produção da arquitectura. Sem esquecer as inúmeras iniciativas da Ordem dos Arquitectos e das Secções Regionais visando constituir manuais de instruções e acções de formação expressamente dedicadas a fornecer aos arquitectos métodos e ferramentas para a “internationalization of portuguese architecture”.

O arquitecto é, hoje, um empreendedor ou, antes, ele é um empreendedor que é também arquitecto. Os gabinetes são empresas ou marcas. O destino é o mercado e não a cidade. Não há cá tempo para experimentações, nem para instruções problemáticas da acção projectual, muito menos para discursos públicos ou “teóricos” sobre arquitectura ou cidade. O neoliberalismo desfere, assim, um duplo golpe: (1) privatiza a arquitectura, ao diluir a sua condição de saber intelectual enquanto reflexão sobre o habitar e a cidade, transformando-a em exercício puramente privado; (2) e nesse processo torna toda a legitimação crítica das opções de projecto pouco mais que um fait divers. Assistir a conferências de arquitectos tem-se tornado, por isso, um exercício relativamente penoso. O novo sujeito-arquitecto neoliberal, esvaziado da sua condição disciplinar e do seu desígnio, é um sacerdote dedicado aos mistérios divinos do objecto ou um "entrepreneur" que faz da conferência uma plataforma TEDx onde aquilo que expõe é apenas a sua argúcia em captar clientes e em construir discursos sedutores que, geralmente, envolvem o uso indiscriminado e esvaziado de palavras como "community" e "neighbouring".

Uma recente conferência realizada na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto de um arquitecto da Costa do Marfim, Issa Diabaté, expressa bem as ambiguidades que envolvem as actuais relações entre o discurso e a prática da arquitectura na era do Neoliberalismo. Num ciclo de conferências cujo título é "Contexto(s) na Arquitectura Contemporânea: cinco continentes", aquilo que esteve ausente foi, um tanto ou quanto ironicamente, o "contexto". Afinal, que país é esse, a Costa do Marfim, um dos vinte países mais pobres do mundo, onde quase 50% da população vive abaixo do limiar da pobreza? O que são essas cidades? Qual a relevância desses processos de urbanização na reprodução das desigualdades? Numa conferência que assume como problema o “contexto”, esperar-se-ia que este fosse um dado essencial da equação. Pelo contrário, aquilo a que assistimos foi uma sequência banal de casas com piscina (tão genéricas que bem podiam estar ali no Canidelo) e operações de loteamentos, onde o autor nos contava os mistérios e os truques maravilhosos do real estate num país como a Costa do Marfim. Sempre, claro, em nome de todos e da sagrada “community” quando, na verdade, se tratavam de condomínios fechados e investimentos imobiliários para uma elite a aceder ao maravilhoso mundo internacional do crédito e da finança.

Teve pelo menos a vantagem de não procurar refúgio em discursos poéticos ou exóticos para consumo colonial europeu. Mas podemos dizer que, no final, aquilo que esteve ausente não foi apenas o “contexto”, mas a própria arquitectura. Ou, antes, a dissolução da arquitectura enquanto discurso, enquanto problema e enquanto gesto. A sua diluição num fazer-se empreendedor(ismo) individual(ista) que se realiza e esgota nas possibilidades imediatas do seu fazer (e da sua carreira). Algo que, desde logo, parece ser dissonante de qualquer ideia de comunidade e comum. Palavras que, na verdade, não passam de slogans para cativar os sentimentos mais humanistas da audiência, promovendo uma retórica que não faz mais do que ocultar os efeitos perversos e as contradições desses processos na produção de cidade e território. Este, precisamente, o ponto fulcral de qualquer discurso que visa falar de “contexto”.

O que é certo é que uma crítica colocada nestes termos corre sempre o risco de ser incompreendida, mas não será esse, precisamente, mais um sintoma dessa dissolução da condição disciplinar da arquitectura?

Notas da edição
Nota acerca da imagem: incêndio numa casa de dois pisos na Rotunda da Boavista, Porto, onde viviam cerca de 20 a 30 pessoas em quartos alugados, no dia 28 de Fevereiro de 2018.

Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto. Arquitecto, investigador no CEAU e assistente convidado na FAUP.

Ficha Técnica
Data de publicação: 02.03.2018
Etiqueta: Arquitectura \ espaços