Os paradoxos da «cidade aberta» • Pedro Levi Bismarck





O Fórum do Futuro 2017, que se realizou no Porto entre 5 e 11 de Novembro, abriu com uma conferência de Richard Sennett, cujo tema “A caminho da cidade aberta” apresentava o documento redigido para a terceira conferência Habitat, sobre “habitação e desenvolvimento urbano sustentável”, organizada pelas Nações Unidas em Quito, Equador. A conferência do sociólogo americano merece sem dúvida alguns comentários, sobretudo porque se trata da apresentação de um documento relevante no quadro dos discursos actuais sobre a urbanização global. O argumento de Sennett pode-se enunciar do seguinte modo: o tempo da Carta de Atenas acabou (provavelmente a morte mais vezes anunciada na história da arquitectura e do urbanismo). O modelo de urbanização promovido por Le Corbusier, em 1933, não foi mais que uma “utopia errada”, um sistema demasiado fechado, segmentado e totalizador, com consequências devastadoras, cujos efeitos ainda hoje sentimos um pouco por todo o mundo. Para isso, é necessário pensar um modelo aberto, mais “poroso”, capaz de dar conta da complexidade inerente à vida urbana contemporânea.

Primeiro, será preciso começar por dizer que a narrativa que Sennett apresentou da Carta de Atenas é no mínimo simplista (senão intelectualmente desonesta) e não estabelece uma necessária distinção entre o próprio modelo e as suas aplicações e subversões ao longo do século XX. Não se trata de a defender, mas   de a compreender dentro de circunstâncias históricas específicas. Projectos como o Plan Voisin, que Corbusier concebeu para o centro de Paris (1925), não podem ser compreendidos sem tomar em conta o momento histórico e social das primeiras décadas do século XX. A narrativa de Sennett pode ser atraente, mas não é suficiente.

Segundo, esta ideia que o urbanismo tem uma dimensão "técnica" e "ética" é, desde logo, demonstrativa dos limites da apresentação de Sennett, porque deixa de fora a sua função política e ideológica. Isto é, a cidade aparece como problema técnico, cultural ou estético, enquanto modelo de convivência desligado de qualquer questão política e económica. Ora, não é possível discutir um outro modelo de cidade sem questionar o modo de produção que a mobiliza (neste caso, o capitalismo). E, sobretudo, não podemos esperar resolver as contradições e as desigualdades em crescendo nas metrópoles, apostando simplesmente em figuras como a "porosidade", porque elas não interpelam as condições estruturais que produzem e reproduzem a pobreza no espaço urbano. Pior, elas servem para naturalizar a pobreza. Desloca-se, assim, o problema da crítica e da superação do abismo crescente entre pobres e ricos, para uma estratégia de suavização e de polimento dessa relação conflituosa. A imagem de Caracas, que Sennett apresentou (a separação abrupta entre favelas de um lado e torres de habitação do outro), é demonstrativa disso mesmo: já não nos questionamos porque é que há tantas favelas, mas como criamos "pontes" e "relações harmoniosas" entre um lado e outro. Um humanismo abstracto, bom para sossegar as consciências de domingo, mas pouco operativo.

Tudo isto aparece vestido de um discurso de “empowerment” (e de participação de todos na construção do espaço urbano) que é mais retórico e neoliberalizante do que emancipatório: primeiro, constrói a ficção abstracta de um sujeito e de uma humanidade que não existe, segundo, aposta num “empowerment” afectivo e despolitizado, servindo tudo isto para ocultar a contínua reprodução das desigualdades e o afastamento definitivo do Estado de qualquer responsabilidade, papel, função, na mediação e redistribuição. O exemplo disso é o Bairro Social Quinta Monroy de habitação evolutiva de Alejandro Aravena (Elemental), no Chile, invocado por Sennett. O argumento de dar espaço para a iniciativa de cada um na construção da sua habitação, "respeitando-se" assim os valores culturais e simbólicos de cada um, serve apenas para uma apologia do espírito empreendedor e individual, na ausência progressiva do Estado e da dissolução de formas de comum. Por isso, o Bairro de Aravena rapidamente se transformou num enclave para uma pequena classe média em ascensão, para quem qualquer sentido de construção de comum e de “porosidade” é, na verdade, inexistente.

É por isso que a “cidade aberta” de Sennett é, precisamente, o modelo daquilo que no plano das intenções pretende criticar. Ela é tout court o modelo da cidade neoliberal. Porosidade, sistema aberto, informalidade, heterogeneidade, empreendedorismo, formas incompletas, alternativas ao Estado, são hoje, na verdade, as palavras de ordem do neoliberalismo e das novas economias. Por isso é que a imagem sedutora do Nehru Place, em Delhi, apresentada por Sennett como modelo da sua cidade aberta, rapidamente se desfaz. E não é apenas pela total ausência de mulheres (como alguém na assistência fez notar), mas porque é o sinal de todo um elogio da pobreza e de toda uma estetização da pobreza. Sinal de todo um discurso nostálgico, feito a partir de Londres e de Nova Iorque, onde se ainda suspira pelas antigas formas pré-capitalistas de contacto e convivência, que faz dos países do terceiro mundo destinos exóticos para voyeurs solitários ocidentais. E sinal, sobretudo, da extrema incapacidade, mesmo daqueles que se dizem "os últimos três socialistas do Reino Unido" de discutir, de facto, o modelo económico, político e social que faz a metrópole debaixo do capitalismo neoliberal. Mas também, claro, inaptidão de apresentar um outro modelo de convivência e de comum, alternativas à reprodução das desigualdades e à organização puramente económica e despolitizada da vida privada e colectiva no espaço inescapável da urbanização. E isso diz muito do tempo em que vivemos.

Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto.

Imagens
Conferência de Richard Sennett Harvard University Graduate School of Design. Nehru Place, Dehli.

Ficha Técnica
Data de publicação: 13.11.2017