Precisões sobre um estado presente da arquitectura em Portugal • Pedro Levi Bismarck




O amplo e maciço movimento lançado pela Ordem dos Arquitectos "arquitectura por arquitectos" e a onda de indignação provocada pela aprovação na generalidade da lei que irá permitir aos engenheiros (pelo menos uma parte deles) voltar a assinar projectos assumiu-se como uma verdadeira catarse colectiva. Serviu para encontrar um culpado (fácil), exorcizar os pecados (dificilmente assumidos) e oferece ainda a possibilidade de redenção (o que é sempre simpático).
Se a arquitectura, enquanto prática profissional e saber disciplinar, não conseguiu segurar para si um reconhecimento «social» e «político» é precisamente porque essas duas palavras foram, há muito, extintas do seu vocabulário e se transformaram no insustentável peso da sua aparente leveza. O compromisso social, "ingénuo", "naif" das arquitecturas de outrora, foi trocado por uma arquitectura de "qualidade" e "excelência", feito mais produto cultural de excepção do que tarefa de intervenção no espaço social e no território. A criação de uma fábula em torno de uma arquitectura portuguesa pritzker para consumos export-import, mobilizou todas as instituições nas últimas décadas, mas deixou pouco espaço para uma discussão sobre a tarefa e o papel desta na sociedade.
O Presidente da Ordem dos Arquitectos argumenta que "haverá uma perda de qualidade de vida para os portugueses". Mas alguém pode verdadeiramente acreditar nisso? Digam-me já em que auditório da Ordem é que estas discussões têm vindo a decorrer para ir participar imediatamente. Onde estão esses debates sobre a qualidade de vida e a qualidade do ambiente construído em Portugal? Onde está a participação em massa dos arquitectos nos debates sobre políticas urbanas e políticas territoriais? Ou para nem ir muito longe: onde estavam a maioria dos arquitectos, as suas instituições de ensino, a Ordem e as suas secções, nos debates sobre a reabilitação urbana das cidades? Onde estavam todos esses apologetas da arquitectura quando entidades como a SRU-Porto Vivo se lançavam numa campanha de destruição maciça de grande parte do centro histórico do Porto? Onde estavam os gritos de indignação dos arquitectos tão pré-ocupados por esse direito à arquitectura?
Sejamos francos, a grande maioria dos arquitectos vive à margem das questões sociais, políticas, urbanas que os envolvem. Recusa reconhecer essa dimensão social e política na própria disciplina. Reduz a arquitectura à performance do objecto arquitectónico e aceita tacitamente o quadro de acção dentro do mercado sem o criticar ou problematizar. Não participam e demonstram até um certo desdém por aqueles que afirmam o desejo de pensar a arquitectura na sua condição social e política. É um problema de formação e de enquadramento. A arquitectura, como muitas outras disciplinas, deixou de ser um lugar para um conhecimento sobre o mundo para ser uma profissão. Uma actividade puramente privada. As leis do marketing e do branding são hoje as verdadeiras leis dos novos escritórios.
Da arquitectura desapareceu todo e qualquer discurso sobre a cidade, sobre o território e sobre o ambiente construído. Organiza-se uma conferência sobre os processos de transformação dos centros históricos sobre turismo e gentrificação e aparecem três gatos pingados. Enquanto isso, auditórios enchem-se para ouvir as palavras sábias de Valerio Olgiati ou Jacques Herzog discorrerem sobre a essencialidade profunda e misteriosa do gesto arquitectónico ou sobre a geometria pura e perfeita de um cristal de vidro em formato ícone.
Esse é o grande paradoxo inerente a todo esse movimento. Os arquitectos querem o reconhecimento público e social dos seus actos próprios, mas foram eles próprios, as suas instituições de ensino e as instituições que os representam, que nas últimas décadas abdicaram de qualquer reflexão sobre a dimensão pública e social da arquitectura, sobre a sua condição política, sobre a sua tarefa na sociedade e para a sociedade.
A questão que fica é: como é que podemos exigir que nos reconheçam esse direito, se há muito que o deixamos de reivindicar para nós próprios ?

Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto. Arquitecto e assistente convidado na FAUP.

Nota do autor
O título dado ao artigo segue o título do livro que Le Corbusier publicou em 1930: “Précisions sur un état présent de l’Architecture et de l’Urbanisme”.

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Cartaz da Ordem dos Arquitectos da iniciativa “Trabalhar com Arquitectos”.

Ficha Técnica
Data de publicação: 21.07.2017