MAAT: psicopatologias de um museu • Pedro Levi Bismarck





As linhas do novo MAAT (Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia da Fundação EDP) ondularam toda uma efervescente série de discursos em torno uma certa missão ética, social e até nacional da EDP. Nada mau, diga-se, para uma empresa que até há bem pouco tempo pertencia ao Estado. Há dois tipos de observações que podem ser feitas relativamente ao recém-inaugurado museu: uma que diz respeito aos aspectos técnicos, funcionais e construtivos do edifício e uma outra que diz respeito ao aparato conceptual usado para validar e legitimar a obra. Se podemos falar de arquitectura (e de uma disciplina de arquitectura) é porque um edifício nunca é mera construção, mas está necessariamente envolvido numa rede de discursos, num nó entre saber e poder que é inseparável da obra.

Posto isto, o que impressiona no MAAT não é tanto o edifício, mas o modo como toda uma série de discursos tentaram colocá-lo como “símbolo de tudo e de qualquer coisa”: da responsabilidade social da empresa, da sua generosa e benemérita contribuição ou oferta para o espaço público da cidade, do seu papel educativo e cultural na formação de um público e de uma sociedade, e cito, “mais inclusiva, dinâmica e cosmopolita” (esta, a palavra de ordem dos últimos dias). Mas também como uma instituição apta a promover a economia, apoiando as indústrias nacionais e a investigação tecnológica. Uma ligação que é, aliás, evidente no próprio nome do Museu: arte, arquitectura e tecnologia. Tal como a engenhosa curva da cobertura acessível é a epítome da generosa dádiva da empresa à cidade, dando a oportunidade sublime de reconciliar, como tanto se ouviu dizer, “Lisboa com o Tejo”. Também o revestimento do edifício totalmente em cerâmica “3d” é, segundo a arquitecta Amanda Levete, uma homenagem à famosa azulejaria portuguesa. Mas, entretanto, ficou-se a saber, através de pessoas e associações da área, que o revestimento cerâmico não foi fabricado em Portugal, nem o processo de concepção passou por qualquer empresa portuguesa, o que levou a que se lamentasse ironicamente o facto da EDP ter perdido uma oportunidade de realmente investir “nas capacidades tecnológicas da indústria nacional”.

“A ironia não salva mas ressalva”, como escreveu Herberto Helder. E esta é aporia irresolúvel destes edifícios: tentam fomentar um capital simbólico que não passa de um simulacro. O seu discurso pretende afirmar a sua condição pública, a entrega sublime à cidadania e à sociedade civil, o investimento nas tecnologias nacionais, mas na verdade ele não faz mais do que circular e perpetuar as mesmas lógicas de urban branding que têm sido feitas e refeitas ad nauseam um pouco por todo o lado, as mesmas lógicas de acumulação e gestão de capital, sempre à custa da repetição de lugares-comuns e de edifícios-museus, sempre com os mesmos programas-canónicos-de-exibição, mais ao serviço de um mercado universal de arte do que de qualquer missão cultural ou cívica. No MAAT tudo é cosmopolita, tudo é global e tudo é glamour. Mas nem no revestimento de cerâmica do edifício o MAAT consegue ser fiel à sua suposta missão educacional, formativa e tecnológica.

Mas não é esta precisamente a lógica do neoliberalismo? A afirmação sem complexos de construção de uma esfera pública de carácter privado, a afirmação despudorada de uma retórica que se afirma precisamente naquela esfera que não cessa de obliterar, a esfera do comum e da res publica. O MAAT não simboliza a generosa dádiva do privado ao comum, mas a privatização do comum. Ele não simboliza a abertura de espaço, mas a colonização do espaço público sob uma lógica privada de produção de cidade, de edifício, de exibição, de encontro e de quotidiano totalmente inseridas numa lógica económica global e financeira. Ele apenas dá aquilo que já tinha sido retirado, mas acrescido de juros. Esse é o paradoxo do MAAT, ele é o que resta daquilo que se perdeu, a EDP. E nesse sentido, é o que está em vez de, o substituto daquilo que não se pode ter. Um pequeno fetiche para consumo imediato.

Se o papel da retórica é, então, a normalização e legitimação do edifício na esfera mediática, as próprias formas fluidas e amaciadas do edifício cumprem um papel semelhante: a afirmação de uma relação harmoniosa com a paisagem e com a envolvente, com a cidade, é na verdade a sugestão e a insinuação de uma relação harmoniosa e homeostática da empresa com a própria sociedade.

O MAAT não produz nenhum espaço público, mas um espaço de pura representação institucional e de puro espectáculo, numa lógica de mercado e de turismo global. E, por isso, a figura central dessa esfera já não é o cidadão, mas o espectador e o consumidor, ou melhor o cidadão-enquanto-espectador. E isso está, desde logo, patente no modo como esse processo foi gerido e no modo como o museu se relaciona com a cidade e com a cidadania:  ausência de discussão acerca do projecto, inexistência de um concurso público e de qualquer processo participativo de definição colectiva do programa e do uso desse espaço. Esses, sim, elementos centrais de uma qualquer esfera pública e de uma noção minimamente qualificada de espaço público.


Pedro Levi Bismarck
É editor do Jornal Punkto, Bolseiro da FCT e investigador do CEAU, actualmente a fazer doutoramento na FAUP onde é Assistente Convidado.

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Fotografia: Revista Sábado

Ficha Técnica
Data de publicação: 12.10.2016

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