A relação entre teoria e prática em Souto de Moura • Andrea Matta






A importância da relação entre a teoria e a prática para a obra do arquitecto põe-se hoje maioritariamente em relevo, dada a complexidade das escolhas através das quais o “fazer” é guiado. Este problema é uma das emergências que não se deve subvalorizar para a sobrevivência da própria disciplina. Os poucos profissionais capazes de uma formulação lógica coerente e as poucas possibilidades que eles têm de as levar avante, assim como a pesquisa teórica no âmbito universitário e a concretização da mesma no âmbito profissional, são pontos cruciais de onde o texto nasce. A Itália, país de origem de quem escreve, é um exemplo evidente desta dicotomia e o arquitecto Eduardo Souto de Moura é, pelo contrário, um exemplo positivo do qual se pode recomeçar. O texto tenta analisar os pontos nos quais se alicerçam os pressupostos conceptuais e operativos como instrumentos para a própria prática, na forma de trabalhar do arquitecto português.


1.
Depois de um passado culturalmente glorioso e activo na arquitectura construída, a Itália parece hoje viver nas costas desse mesmo passado, não só por causa da crise económica, que paira por quase toda a Europa, mas sobretudo por ter ficado com o que restou dos ensinamentos dos últimos mestres. No “ring” contrapõem-se as atitudes académicas e profissionais, com uma grande perda (sobretudo pelos estudantes) do valor da transmissão do saber, que não pode ser apenas teórico ou prático, mas sim a combinação dos dois. 

Massimo Scolari, num ensaio intitulado Una generazione senza nomi, interpreta a situação italiana, dividindo-a em três gerações e escreve: «a geração do meio [onde inclui arquitectos como Aymonino, Rossi, Gregotti, Portoghesi] construía pouco e escrevia muito. Esta qualidade, em conjunto com o desprezo pelo “profissionalismo” da especulação urbanística, parecia aos estudantes um nobre comportamento a seguir; e como tal começou a fazer parte das revoltas anti institucionais destes anos» e continua, «Este terrorismo cultural, tanto mais mortal porque conduzido por pessoas de indiscutível inteligência, teve por quase dez anos a mão suspensa nas mesas de desenho […]» com o resultado de que as gerações sucessivas «[…] inquinadas no tormento da análise urbana não ouviram o tiro que reavivava a corrida à construção. E quando se aperceberam de tal facto de pouco lhes serviram as obras L’architettura della città ou Il territorio dell’architettura. À maioria das “gerações sucessivas” foi reservado o privilégio da arquitectura de papel›› [1]. Rafael Moneo, numa publicação onde refere outras passagens de Scolari, continua o raciocínio na mesma linha, embora com menos ênfase: «A ansiedade de chegar à utopia, as fantasias que tinham mantido viva a discussão teórica em volta da arquitectura [em Itália], durante os anos setenta e oitenta, colapsaram com a queda do muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética».[2]

O período de ouro da arquitectura italiana soube revelar-se para além dos confins do Bel Paese, através de obras que se tornaram motivo de estudo por parte de arquitectos de todo o mundo, também portugueses, graças à difusão de textos teóricos que até hoje tiveram a força de influenciar a obra. No interior da entrevista A ambição à obra anónima, numa conversa com Eduardo Souto de Moura, quando Paulo Pais pergunta se se interessava por poesia, Souto de Moura responde enquadrando a questão no campo da arquitectura, afirmando que existe um vazio de investigação teórica. Segundo este, os últimos arquitectos que elaboraram textos teóricos foram Aldo Rossi com L’architettura della città e Robert Venturi com Complessità e contraddizioni nell’architettura nos anos sessenta. O que significa quarenta anos (vinte e cinco à época) sem que um livro tivesse guiado uma os arquitectos, que, entretanto, têm percorrido estradas paralelas. Hoje, podemos afirmar que isto tem levado a uma pluralidade de percursos (o que podia enriquecer a disciplina mas…) que infelizmente, muitas vezes, tendem à superficialidade estética da intervenção, empurrada por um irreprimível desejo de emergir no Olimpo da arquitectura, ultrapassando directamente o cansativo processo de elaboração teórico-prático para chegar rapidamente a uma aparência estético-formal, segundo o gosto pessoal e as tendências do mercado que vêem a arquitectura como um produto comercial. A afirmação de Souto de Moura, além de sublinhar um aspecto que se relaciona com a investigação crítica da disciplina, sublinha a importância que ele atribui à estreita conexão entre a elaboração teórica e a prática: a primeira não como especulação intelectual solipsista, mas como matéria viva para o projecto. De facto, continuando a entrevista citando Novalis (“Quanto mais real mais poético”), ele chega a definir o objectivo de cada arquitecto, ou seja, fazer «poesia…mineral» [3].


Esta afirmação sintetiza eficazmente uma atitude do arquitecto português. A poesia é uma escrita, uma escrita teórica; é também a síntese máxima, onde o poeta exprime de forma culta e concisa, um pensamento. A poesia não pode prescindir da precisão da palavra, para não comprometer a exactidão com que o poeta quer comunicar; quanto mais preciso for o termo utilizado, mais consegue transmitir a densidade do seu pensamento; é como se se criasse uma contínua tensão entre as regras compositivas, que podíamos definir verticais e horizontais, e a liberdade do pensamento, ao qual podíamos atribuir uma ilimitada profundidade.

De igual modo, a obra arquitectónica de Eduardo Souto de Moura deve ser precisa; síntese compositiva de uma elaboração culta surgida no tempo. A atenta escolha e justaposição dos elementos pode comunicar algo de profundo, como uma poesia, que tem a ver com a evolução da mesma disciplina e esclarece o ponto de vista do qual o arquitecto observa o mundo e a história da arquitectura e dos lugares. A linguagem é simples, sem retórica; deve comunicar-se à essência do pensamento. Assim como a poesia é composição verbal em versos, segundo determinadas leis da métrica, também a projecção surge respeitando determinadas regras.  Mas estas regras, em Eduardo Souto de Moura, são releváveis a dois níveis, entre os quais se entrelaça a elaboração teórica e prática. O primeiro nível tem a ver com a arquitectura através da cidade. Ele aprende a partir de um representante da cultura arquitectónica italiana, Aldo Rossi, e através do seu texto mais famoso, L’architettura della città, os instrumentos teóricos e o método para uma análise mais eficaz e concreta, cujos resultados sejam aplicáveis no projecto. O mesmo prémio Pritzker afirma: «[…] se Siza me deu a “mecânica” do projecto, Rossi deu-me a “epistemologia”, o suporte conceptual à leitura da realidade e do projecto». [4]





2.
O encontro com Rossi surge durante os anos da formação. Estudar na Escola de Belas Artes do Porto naqueles anos significou a realização de poucos projectos («Cheguei ao quarto ano e tinha só feito um projecto […]» [5] afirma o arquitecto) mas o desenvolvimento de uma série análises que confluíam em sínteses que tardavam em chegar, segundo uma ideologia que entendia a arquitectura como uma ciência social, apoiando-se no estruturalismo ou no marxismo. A geração dos seus professores tem origem numa viragem neo-realista e marxista de reacção ao Movimento Moderno e aos preceitos da Carta de Atenas que, se bem que «plena de boas intenções» obteve «resultados pouco brilhantes, como a urbanização periférica das cidades». [6]

A respeito da tábua rasa que o Movimento Moderno aplica no confronto da história e do seu contexto, os seus professores instruem-no, através do estruturalismo e da linguística, para uma análise da estrutura das coisas para depois conseguirem agir. Mas estas análises ficam por aí, sem uma elaboração prática consequente. Todos estes motivos levam os arquitectos portugueses a terem “sede” de teoria, algo que naquela época em Itália se produz de forma intensa entre múltiplos ensaios e publicações. Lendo L’architettura della città nessa altura, Souto de Moura toma consciência de ter finalmente encontrado as regras em que se apoiar. Estas regras servem para conduzir a transformação urbana, evocando também as fontes literárias e de memória, o que é feito pela primeira vez.

Souto de Moura participa, assim, em dois seminários em Espanha, um dos quais, em Santiago de Compostela em 1976, organizado pelo próprio Rossi. Aqui aprende direitamente com o arquitecto italiano a importância de explicar as razões do projecto, porque segundo Rossi «a única coisa que importa na arquitectura é conseguir ter razão» [7]. Afirma-se assim o conceito de arquitectura como disciplina científica, que influencia o futuro do arquitecto e compreendendo-se a importância de um sistema que coloca a tipologia em relação com o local e a forma. Finalmente, é possível analisar a história da cidade concretamente, através do seu “corpo”; o famoso texto que influencia Souto Moura para a precisão com que se tratam as partes deste “corpo”, às quais se atribuem nomes precisos, classificando-as e ordenando-as através de uma hierarquia.

Assim, o livro de Aldo Rossi define as regras e um método pelo estudo dos factos urbanos. Como lhe chama Alberto Ferlenga, trata-se de uma análise que pede um «[…] esforço de recolha e de escolha […]» [8]; este é o processo intelectual que serve ao arquitecto para chegar às instituições teóricas que estão disponíveis como material para o projecto, o que comprova concretamente a própria teoria. Deste modo, Souto de Moura usa a diversidade para uma estratégia de reconhecimento do terreno onde trabalha. É como fazer um tratado de Biologia, primeiro classificam-se as plantas e os animais, mas a Biologia não é só classificação de plantas e animais. Mas numa determinada fase é necessário recorrer a um inventário. [9]

Através desta fase, e no reconhecimento das diversidades, ele procura aquela regra comum que se constitua como crucial fundamento para conduzir o projecto. Assim ele afirma: «Aquela minha obsessão sobre a procura da regra, a procura da ordem, a procura do racional é um pressuposto teórico para poder trabalhar, mas não tem um objectivo final». O arquitecto do Porto reconhece a importância do tipo, mas uma vez individualizado, a investigação não termina; o tipo recebe uma transformação dada pelas necessidades de circunstância e esta transformação confere qualidade ao relacionamento entre arquitectura, programa e lugar; o “como” surge, em vez disso, fazendo parte da autobiografia do arquitecto.   Souto de Moura não atribui ao tipo o mesmo valor que atribuía Aldo Rossi, afirmando:

Uso as tipologias, mas não defendo que a tipologia seja a base do projecto, como o Rossi – “Sem a Tipologia não há Arquitectura” – As tipologias que me fornecem são satisfatórias, porque os modos de vida não mudaram assim tanto. Uso as tipologias, estudo-as, desde o momento em que não haja ruptura entre a tipologia e o novo programa que me fornecem. [10]

Podia definir-se a acção de projectar de Eduardo Souto de Moura numa palavra: equilíbrio. Ele não se deixa levar pela excessiva (aparente) liberdade, do protagonismo do gesto pessoal, que afinal de contas leva só a um resultado dificilmente compreensível: mas ao mesmo tempo consegue evitar o coleccionismo maníaco e a própria classificação, que noutros casos levam a uma arquitectura feita de colagem, de resultado caricatural. Ele é guiado pela razão prática, prepara o terreno para o “Big Bang” da criação.

Contra quem pensa fazer arquitectura livre de vínculos e constrangimentos olhando só para o próprio objecto, partindo do início de cada vez e sentindo-se inventor de cada projecto, Souto de Moura coloca-se como exemplo a recordar que a verdadeira liberdade, no campo artístico assim como no campo científico existe só se passar através de um contexto assimilado de conhecimentos e de consciência. Passada esta fase obrigatória porque é no núcleo onde está contida a própria energia do acto criativo, agora podem entrar em jogo todas aquelas sugestões que qualificam a arquitectura; imagens que constituem o significante da poesia construída. 

Como sublinha o arquitecto do Porto, Aldo Rossi, não obstante as regras que tinha mencionado, demostra a inteligência do saber mover-se no interior do universo dos conhecimentos, dos “factos” objectivos, o saber incluir memórias pessoais, lembranças e sugestões, levando, como em poesia, a um pensamento preciso sobre o tema. E também o faz com um texto teórico, Architettura per i musei. Citamos o arquitecto italiano: «[…] é, de facto, impensável que ao fazer esta ou aquela determinada arquitectura nós não queiramos exprimir também qualquer coisa de outro, qualquer coisa de nosso»; continuando questiona-se: «Mas como se concilia este acordo com os princípios racionais e transmissíveis sobre os quais insisti, com a matriz de uma arquitectura clássico-racional?», respondendo que «Inteligência e técnica (os exemplos e a prática) são, portanto, aquilo que torna possível fazer e com isto a libertação do elemento pessoal» [11]. Parecia um processo de “construção” e sucessiva “destruição”, mas na realidade podíamos defini-lo como um processo de “construção” e “libertação”. Na entrevista de Paolo Pais, Souto de Moura explica constantemente como, depois de ter encontrado a regra, ele procurou a excepção que a confirmasse; que, por contraposição, a fixou definitivamente: «Quando consigo uma certa ordem, uma regra de construção, ou um módulo base, parece que tudo vai bem mas é quando surgem os acidentes, e se eles não aparecem, então invento-os eu». Exemplos práticos desta concepção são o concurso para o Hotel em Salzburgo e a casa na Quinta do Lago (Algarve).





3.
Este último aspecto introduz um segundo nível sobre o qual se revela uma investigação teórica de regras, para a utilizar no aspecto prático da construção; podemos dizer que este nível se relaciona mais especificamente com a história da arquitectura, como disciplina autónoma. O processo que o arquitecto cumpre é uma abstracção da realidade, procurando os factores comuns que dão continuidade à disciplina. Para o arquitecto português, estes factores comuns são valores que passam da arquitectura clássica em diante; por isso diz: «O problema do desenho não existe; existe o problema do redesenho. Desenhar deve ser um fenómeno de inteligência, e desenhar do zero é um fenómeno de estupidez, porque é perder um legado de informação disponível» [12]. E continua:

Sempre entendi o Movimento Moderno como uma continuidade do Classicismo, por mais verborreia que se disse contra o Classicismo. No fundo, é um discurso de continuidade com meios técnicos e intenções diferentes, mas com um campo comum: as proporções, a relação da estrutura com a forma, a linguagem depurada. O Schinkel fazia essa relação com o Classicismo, não prescindindo das novas aquisições que havia de materiais. […] Ele usa o ferro, percebendo que o ferro é um novo material que pode substituir outros e que até dá para fazer Neogótico. E depois também deu o Mies, e por aí fora… [13]

Assim, para além das análises urbanas, que permitem ler as estratificações e conhecer o presente através do passado, Souto de Moura analisa a disciplina e as estruturas que sustentam a forma de edifícios e espaços e a métrica, se nos quiséssemos ligar ao texto poético. Esta aproximação permite-lhe encontrar uma regra compositiva para cada projecto, e como ele próprio afirma, aquela continuidade que permite a «sobrevivência» [14] da própria disciplina. Ritmos, proporções, distâncias e elementos, propensos sempre à simplificação e à pureza geométrica, são colocados em relação com o lugar e as novas exigências, a evolução da disciplina e as suas conquistas, não obstante o espírito do tempo (actualizações tecnológicas, de programas e outros aspectos, em geral, que têm a ver com a sociedade em que vivemos); desta “inter-relação”, através da extracção, nasce uma reacção, permitindo a unidade formal da obra final. A forma não é um objectivo, mas é uma consequência. Não há intenção estética em Souto de Moura (ao contrário de Rossi). Para compreender melhor o que isto significa, podemos fazer referência a Mies Van der Rohe, arquitecto que ele estuda profundamente e que tem uma grande influência sobre a sua arquitectura.

Detlef Mertins escreveu um ensaio interessante, explicando bem qual o significado que Mies atribui ao conceito de “arquitectura orgânica”. Quando chegou à América vindo de Berlim, o arquitecto alemão é projectado num novo mundo, onde os valores que indicam o espírito não são os mesmos da Europa:

In coming to America in 1937, Mies found himself immersed in a country whose native inventiveness he had admired from Berlin for almost thirty years […]››; e continua: ‹‹In a letter describing his educational program for the Armour Institute of Technology (AIT), later the Illinois Institute of Technology (IIT), Mies signaled his concern over the “danger of grafting one form of culture on an environment of another character.” […] Mies admired the technical and material accomplishments of American Industry, economy, and engineering, but pointed to an inadequacy or “uncertainty” in the cultural sphere, in the realm of spirit. “Culture”, he explained, invoking an organic analogy, “is the harmonious relationship of man to his environment” and architecture “the manifestation of this relationship”. [15]

Para Mies, a identidade da cultura americana reside no «poder das forças organizacionais e técnicas existentes». A América representa uma nova cultura intrinsecamente conectada ao desenvolvimento tecnológico e científico.

Mas como exprimir formalmente esta cultura? Como representá-la? Mies encontra, nos conceitos teóricos de Wright, relacionados com a arquitectura orgânica, uma estrada à qual poderá dar uma interpretação personalizada. Ao contrário do arquitecto americano, que pensa na arquitectura orgânica como uma auto geração de formas do terreno, como um florescimento natural que produz articulação formal, Mies pensa na organicidade, assim como Schinkel pensa na arquitectura como continuação da natureza, na sua actividade construtiva; arquitectura em que tal processo construtivo deve permanecer visível, assim como Cézanne fala em relação às sugestões que estão por debaixo das formas de cada coisa na natureza. Referir-se à natureza não significa referir-se ao aspecto visível, às suas formas, mas sim indagar como as formas se podem constituir, qual a estrutura que subjaz e sustém a forma, precisamente como consequência desta investigação. O objectivo é, para Mies, encontrar um sistema arquitectónico que permita produzir uma «inexhaustible richness of form». [16] A beleza liga-se à lei, à regra, mas livre de dogmas. Mies consegue manter os princípios arquitectónicos já desenvolvidos em Berlim e integra-os com esta investigação no espírito da cultura americana:

“Such men must be able to design structures constructed of modern technical means to serve the specific requirements of existing society. They must also be able to bring these structures within the sphere of art by ordering and proportioning them in relation to their functions, and forming them to express the means employed, the purposes served, and the spirit of the times” [17]

Como explica Detlef Mertins, Mies resolve a oposição entre arte e tecnologia, a máquina e o organismo, a ordem e a função numa unidade regulada pelas leis naturais de expressão e auto geração. Isto é dado pelo carácter da linguagem, o qual é purificado através da racionalização, da matematização e da geometrização, assinalando a autonomia.

Também Aldo Rossi nos fornece um contributo para a compreensão da concepção miesiana que, como dizíamos, influencia notavelmente a poética do projecto de Eduardo Souto de Moura, mas é necessário dar mais um passo ainda para compreender o que está em jogo: «Para Mies van der Rohe, o artesanato ou técnica é parte de uma verdade absoluta; […]»; a sua é «uma arquitectura que nasce da história que se relaciona directamente com Schinkel, mas que procura o essencial, não um nada niilista mas um nada que é a forma da verdade» [18]. Como nos diz Aldo Rossi, «[…] o modo clássico foi possível pela inteligência da técnica» [19]. E ainda assim é nos projectos do arquitecto português, onde o máximo da tecnologia disponível se conjuga com os valores clássicos e racionais, que continuam a transmitir o significado da arquitectura, pensamos, por exemplo, no pavilhão polifuncional de Viana do Castelo.

Voltando a Mies, a arquitectura deve respeitar a cultura na qual se insere, representa a sua evolução e, como uma forma na natureza é adequada ao ambiente, também a arquitectura será adequada ao contexto no qual se insere. Assim é, da mesma maneira, por Eduardo Souto de Moura. Mas o conceito de natureza e simplicidade da obra, podemos dizer que, na realidade, é um gene preexistente no arquitecto do Porto, cujas origens se podem encontrar nos anos da formação, através dos ensinamentos de Fernando Távora, o qual, numa entrevista explica:

a arquitectura moderna […] é hoje sobretudo uma ocasião para vender produtos. O arquitecto tradicional, pelo contrário, vivia e trabalhava num pequeno mundo: a sua cidade. Não tinham monografias, revistas, entrevistas, como esta, e ao arquitecto não se punha o problema da variedade, da abertura a outras condições: trabalhava num mundo entre o qual fazer arquitectura era um acto natural como respirar ou comer [20].

Diz igualmente que:

Um edifício deve estar perfeitamente integrado com o lugar, a gente deve senti-lo como próprio: uma arquitectura que permanece no lugar de origem de uma forma natural, não espectacular. Um fazer simples e natural: é uma ideia minha orientadora, muito elementar dada a minha pouca predisposição a intelectualizar [21].





4.
Fernando Távora ilumina-nos sobre o que podia ser definido como a passagem fundamental e definitiva do processo de projecto, ou o momento em que a obra é construída e nos aparece. Aqui reside propriamente dita a qualidade visível e tangível da arquitectura de Souto Moura; não obstante a forte abstracção dos elementos e da linguagem não é uma arquitectura que se abstrai do contexto, antes, é uma arquitectura que, graças à atitude analítica previamente explicada, permite construir o essencial, restitui a complexidade da realidade analisada de uma maneira simples e quase natural. O objectivo final é o de uma arquitectura “anónima”, era para Távora e também o é para Souto de Moura. Arquitectura anónima não significa não ter carácter, mas sim uma arquitectura que seja assimilada pelo lugar onde se insere, quase como se não tivesse sido um arquitecto a projectá-la, quase como se se encontrasse ali, no sítio onde está, desde sempre.

Uma vez terminado o processo, a arquitectura pode verdadeiramente dar um contributo à construção da cidade e da civilização, encerrando em si valores que são o fruto de uma atenta elaboração e relação teórico-prática. Sem teoria, a prática do fazer torna-se um virtuosismo sem substância; sem prática, a teoria perde-se nos meandros da nossa mente, não encontrando a libertação da plenitude. Evidentemente, para fazer isto é necessário tempo. Como resolver este problema para garantir a sobrevivência da disciplina? Citando directamente o arquitecto Souto de Moura: «[…] neste momento as obras que estou a fazer são um inventário de materiais, de formas, de estratégias para permitir a sobrevivência. Porque o que se discute hoje é a própria sobrevivência da disciplina de Arquitectura». [22]

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Nota do autor
O presente texto foi elaborado durante o curso “Teoria da Arquitectura Contemporânea” do Professor Doutor Carlos Machado, na FAUP, no âmbito do programa de doutoramento (PDA), e coloca-se como primeira concretização de uma pesquisa pessoal, devido à necessidade de encontrar figuras no panorama arquitectónico contemporâneo que mantenham vivo um valor fundamental, do qual não se pode, segundo minha opinião, prescindir para se ser arquitecto, na relação entre a teoria e a prática. Tal necessidade surge principalmente na sequência da experiência de estudos na Itália, onde é ainda mais complicado encontrar exemplos de arquitectos que mantenham uma profícua relação entre conceitos teóricos e práticos num projecto. O estudo de algumas figuras da arquitectura portuguesa permitiu observar como alguns dos valores fundamentais podem manter-se vivos e renovarem-se no seio da disciplina. Eduardo Souto Moura representa um exemplo positivo a seguir para quem esteja interessado neste tipo de aproximação e considere importante a relação entre a teoria e a prática como método para a concretização, não privada de significado das próprias obras.

Referências
1. Massimo Scolari, Una generazione senza nomi, em «Casabella», n. 606, 1993.
2.Rafael Moneo, L’altra modernità. Considerazioni sul futuro dell’architettura, Christian Marinotti Edizioni, Milano, 2012, pp. 113-116.
3. Paulo Pais, A ambição à obra anónima. Numa conversa com Eduardo Souto de Moura, Blau, em Luiz Trigueiros, Eduardo Souto de Moura, Blau, Lisbona, 1994.
4. Antonio Esposito, Eduardo Souto Moura su Aldo Rossi, entrevista em «d’Architettura» n°23, op. cit., pp. 162-191.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Alberto Ferlenga, Aldo Rossi: opera completa 1993-1996, volume III, Electa, Milano, 1997, pp. 11-14
9. Paulo Pais, Ibidem.
10. Ibidem.
11. Aldo Rossi, Architettura per i musei, in AA.VV., Teoria della progettazione architettonica, Dedalo, Bari, 1968, pp. 122-137
12. Paulo Pais, A ambição à obra anónima. Numa conversa com Eduardo Souto de Moura, Blau, in Luiz Trigueiros, Eduardo Souto de Moura, Blau, Lisbona, 1994
13. Paulo Pais,
14. Ibidem.
15. Ibidem.
16.Detlef Mertins, Living in a Jungle: Mies, Organic Architecture, and the Art of City Building, in Phyllis Lambert, Mies in America, catálogo da exposição no Canadian Centre for Architecture and Whitney Museum of American Art, Montréal, Maggio 2001, pp. 591-641.
17. Ibidem.
18. Ibidem.
19.Prefacio de Aldo Rossi em, Benedetto Gravagnuolo, Adolf Loos: teoria e opere, Idea Books, Milano, 1981
20.Ibidem
21. Fernando Távora, Fernando Távora, pensieri sull’architettura, raccolti da Giovanni Leoni con Antonio Esposito, in «Casabella», n. 678, maggio 2000, pp. 14-17.
22. Ibidem

Imagens
1. Reconversão de uma ruína, Gerês, 1980-1982, fonte:  Frank Boehm e Nuno Graça Moura, Souto de Moura 1980-2015, catálogo da exposição, Stiftung Insel Hombroich, Neuss, 2015.
2. Colecção de slides de Atenas 1, Hermes, impressão Kodak s/d., fonte AA.VV., Eduardo Souto de Moura. Atlas de Parede. Imagens de Método, Dafne Editoria, Porto, 2011.
3. Eduardo Souto de Moura, A house for Karl Friedrich Schinkel, 1979, fonte AA.VV., Eduardo Souto de Moura. Atlas de Parede. Imagens de Método, Dafne Editoria, Porto, 2011.
4. Eduardo Souto de Moura, Metro do Porto, esquissos de estudo de estações subterrâneas, fonte Fátima Fernandes e Michele Cannatà, Eduardo Souto de Moura, A Arquitectura do Metro. Obras e projectos na Área metropolitana do Porto, Civilização Editoria, Porto, 2006.

Andrea Matta
Está actualmente a desenvolver um período de estudos na FAUP Porto. Licenciado em arquitectura com o Professor Carlo Quintelli e o arquitecto Fabio Nonis, é doutorando em “Arquitectura e Cidade” no DICATeA da Universidade de Parma. Na mesma Universidade faz parte da unidade que desenvolveu o projecto Mastercampus, regeneração do campo universitário da cidade, colaborando também com o projecto pela abertura do museu-arquivo CSAC.

Ficha Técnica
Data de publicação: 05.07.2016
Etiqueta: Arquitectura \ Espaços
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