Duas ou três coisas que se podem dizer sobre ela (Zaha Hadid) • Pedro Bismarck





Muito se escreveu nos últimos dias sobre Zaha Hadid, desaparecida um tanto ou quanto subitamente aos 65 anos de idade, no pico de uma carreira intensa mas nem por isso breve. Os obituários são por natureza registos difíceis: sempre demasiado próximos e, talvez por isso, sempre tendencialmente generalistas ou redutores. Todo o texto escrito nestas circunstâncias é um risco e este não é excepção.

De entre as diversas reacções manifestadas puderam-se observar dois tipos de argumentos. Por um lado, elogiou-se a sua condição feminina, o seu ser-mulher num mundo de homens. Um argumento que no seu aparente feminismo guarda um certo tom de condescendência e acaba por fabricar uma generalização, um tanto ou quanto pindérica, que nada nos diz de significativo sobre ela, Zaha Hadid, e o seu trabalho (por exemplo, não admiramos Lina Bo Bardi por simplesmente ser mulher, mas pelo papel que desempenhou na e com a arquitectura, não querendo isso dizer que a sua condição de ser-mulher não tenha contribuído para animar o seu projecto-de-arquitectura e para fazer cair determinados preconceitos relativamente à profissão). Por outro lado, contra os juízos apressados e simplistas do gosto, defendeu-se a relevância cultural da arquitecta iraquiana para o património da arquitectura. Mas também aqui todo o cuidado é pouco para – no relativismo cultural que hoje impera – não fazer da história da disciplina simplesmente um cabinet de curiosités de pequenas relíquias despojadas de todo o seu sentido.

O que se pode então arriscar dizer sobre Zaha Hadid? Ou melhor – o que talvez seja mais útil – o que pode Zaha Hadid ajudar-nos a dizer sobre o nosso tempo? Primeiro, é necessário reconhecer que ela marcou, sem dúvida, o panorama recente da disciplina. Foi figura-referência, agitadora e mobilizadora de todo um modo de produzir e entender a prática da arquitectura. Mas, por isso mesmo, foi a arquitecta-chave de uma geração que imersa no culto de um certo “experimentalismo formal” acabou por ir reduzindo a arquitectura a um regime estetizado de produção de objectos isolados e auto-referenciais. Uma arquitectura que, sem dúvida, recuperou e animou a experiência artística das vanguardas históricas, mas esvaziando-a de toda a sua condição social e política. Uma arquitectura sem projecto, diria, que fez da promessa libertadora das vanguardas um simples instrumento de reprodução/acumulação de capital, ao serviço de marketings urbanos e operações financeiras globalizadas e desumanizadas. Tudo em nome de uma retórica do progresso, da civilização e da democracia liberal, que há muito deixou de falar em nome de populações e comunidades. Uma arquitectura endógena que ensimesmada na mecânica dos seus processos criativos, nas suas efabulações e nas suas conceptualizações, perdeu ou abandonou a capacidade de problematizar e dialogar criticamente com o mundo e com a realidade onde se inscreve e que produz. Fez-se exercício pessoal e individual, umas vezes eufórico outras vezes melancólico. Arrastando consigo um exército de pequenos-arquitectos, que na divisão infinita do trabalho, se transformaram em sujeitos de uma arquitectura sem projecto colectivo e sem comum.

Zaha Hadid é de facto uma “mulher do seu tempo”, como alguém dizia, e na sua obra podemos ler as marcas e, sobretudo, as ilusões que animaram esse tempo que hoje tanto pesa sobre nós. Para uma geração inteira, a “experimentação formal” e a afirmação de uma “autonomia” da arquitectura serviram para sacudir o peso de um passado ideologicamente carregado e, assim, sair desse caminho que parecia ter como destino o bloqueio total da arquitectura. Para muitos, a liberdade e a exuberância do seu gesto formal foram, enfim, o sinal da liberdade e da superabundância viabilizados por um capitalismo em fim-de-história: derrotados todos os seus inimigos, caídos todos os muros (a primeira obra de Zaha Hadid foi construída precisamente em Berlim, 1986-1993, a dois passos do muro que dividia a cidade e cuja queda, em 1989, assinalou o fim do bloco soviético). Mas essa liberdade – sabemos hoje mais do que nunca – era pouco mais que aparente. Ou, melhor, essa “liberdade das formas” não era mais que o modo de alimentar a esperança e a promessa de uma outra liberdade – essa derradeiramente impossível no actual reino absoluto da economia. Mas há muito que tínhamos trocado a liberdade e a democracia por todas essas breves “promessas de felicidade” (para invocar a definição que Stendhal dava do belo).



Talvez seja essa a razão pela qual os “objectos” de Zaha Hadid sejam simultaneamente familiares e estranhos. Familiares porque pertencem ao nosso tempo. Estranhos porque parecem estar sempre demasiado próximos. Essa é a sua virtude: são a imagem fiel daquilo que não conseguimos ver – a nossa própria época. Estamos perante os edifícios de Zaha Hadid como estamos perante os mercados financeiros. Observadores atónitos dos seus movimentos delirantes, das suas linhas vertiginosas e aceleradas, dos seus planos infinitos subindo e descendo, do delírio das acções, dos fluxos constantes das transacções, dos crashs iminentes, do seu esplendor e da sua crise, da crise como lógica absoluta e como irracionalidade calculada: a ascensão e a queda “sábia e magnífica dos sólidos sob a luz” (parafraseando Le Corbusier). Eles são a representação da nossa época ou, melhor, condensam/cristalizam na sua lógica interna formal a lógica de todo um sistema económico e político.

Uma ironia que não está isenta de cinismo. Quanto mais livre e exuberante é o gesto formal de Zaha Hadid, quanto mais os mercados afirmam a “livre iniciativa”, a “livre circulação”, as suas infinitas possibilidades, mais presos estamos na sua lógica, mais emaranhados estamos no seu sistema, incapazes de o compreender, de reagir e de encontrar meios de lutar e resistir contra a nossa transformação progressiva em sujeitos-mercadorias de um jogo financeiro sem fim. Perante os “objectos” de Zaha Hadid estamos sempre sós – nunca estamos com eles, mas sempre diante deles. Somos espectadores solitários que vivem a sua própria aniquilação (ou, talvez, o desejo dela) como absoluto prazer estético. Neles não há nem crítica nem esperança, apenas consumação e morte.
Aqueles que ainda hoje alimentam esse sonho continuam a dormir o sono profundo dessas “promessas de felicidade” por cumprir. Cultivam a ilusão que a salvação da disciplina passa por um exercício de sublimação formal e por uma falsa autonomia artística esvaziada, agora, de todo e qualquer projecto colectivo e político. E, por fim, na afirmação desse discurso ensimesmado e endógeno, eles são também os artífices de uma ilusão absoluta acerca da condição presente da arquitectura que se tornou insustentável e cujo horizonte não é outro senão o da própria irrelevância da disciplina.



Pedro Levi Bismarck
Editor da Revista Punkto. Assistente convidado na FAUP. Investigador do CEAU e Bolseiro de doutoramento da FCT.

Imagens
1. Zaha Hadid na exposição “City of towers” na Zaha Hadid Design Gallery. Londres, 2013. (Fonte: Zaha Hadid)
2. Zaha Hadid, Glasgow Riverside Museum, 2004-2011. (Fonte: Zaha Hadid)
3. Zaha Hadid, Galaxy Soho, Pequim, 2009-201. Fotografia de Huffon & Crow (Fonte: Dezeen).

Ficha técnica
Data de publicação: 5 de Abril de 2016
Etiqueta: Arquitectura \ Espaços
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