Por uma teoria da potência destituinte ▬▬▬ Giorgio Agamben




“For a theory of destituent power” foi uma palestra pública que Giorgio Agamben proferiu em Atenas, a 16 de Novembro de 2013, a convite do Instituto Nicos Poulantzas e da juventude do SYRIZA. O título em italiano “Por una potenza destituente” esclarece o sentido da tradução inglesa “destituent power”, mais como uma potência (uma potência puramente destituinte) e menos como poder. A tradução para português foi feita por Luhuna Carvalho que escreveu um pequeno texto-comentário que procura circunstanciar e inscrever este texto na obra e nas investigações recentes de Giorgio Agamben


Uma reflexão sobre o destino da democracia, aqui e hoje, em Atenas é de certo modo perturbante, porque obriga a pensar o fim da democracia precisamente no lugar onde esta nasceu. Na verdade, a hipótese que gostaria de sugerir é a de que o paradigma governamental dominante na Europa de hoje não só não é democrático como não pode sequer ser considerado político. Irei, portanto, demonstrar que a sociedade europeia já não é uma sociedade política: é algo totalmente novo para o qual nos falta ainda uma terminologia apropriada e para o qual teremos, portanto, de inventar uma nova estratégia.

Gostaria de começar com um conceito que, desde Setembro de 2001, parece ter substituído qualquer outra noção política: segurança. Como sabem, a fórmula "por razões de segurança" opera hoje em todos os domínios, da vida quotidiana aos conflitos internacionais, enquanto palavra-chave de imposição de medidas que as pessoas não teriam motivos para aceitar. Irei tentar demonstrar que o real propósito das medidas de segurança não é, como é assumido, o de prevenir perigos, problemas ou sequer catástrofes. Serei então obrigado a traçar uma genealogia curta do conceito de "segurança".

Uma das possibilidades de traçar essa genealogia seria inscrever a sua origem e história no paradigma do estado de excepção. Nesta perspectiva, poderíamos relacioná-las com o princípio romano de Salus Publica Suprema Lex, “a segurança pública é a mais alta lei”, e relacioná-la com a ditadura romana, com o princípio canónico de que a necessidade não reconhece qualquer lei, com os comites de salut publique da revolução francesa e finalmente com o Artigo 48 da República de Weimar, a base jurídica do regime Nazi. Tal genealogia seria correcta, mas não creio que possa realmente explicar o funcionamento dos dispositivos e das medidas de segurança que nos são familiares. Embora o estado de excepção tenha sido originalmente concebido enquanto medida provisória, destinada a lidar com um perigo imediato no sentido de restaurar uma situação normal, as razões de segurança são hoje a tecnologia permanente de governo. Quando em 2003 publiquei um livro onde procurei demonstrar, justamente, como é que o estado de excepção se estava a tornar, nas democracias ocidentais, no sistema de governo normal, não podia imaginar que o meu diagnóstico se revelaria tão preciso. O único precedente óbvio foi o regime Nazi. Quando Hitler tomou o poder em Fevereiro de 1933 proclamou de imediato um decreto suspendendo os artigos da constituição de Weimar relativos às liberdades pessoais. O decreto nunca foi revogado e todo o Terceiro Reich pode ser considerado como um estado de excepção que durou 12 anos.

O que acontece hoje é, no entanto, outra coisa. Não foi declarado qualquer estado de emergência formal e, contudo, vagas noções não jurídicas – razões securitárias – são evocadas para instaurar um constante estado de emergência arrepiante e ficcional, sem que qualquer ameaça seja identificável. Um exemplo dessas noções não jurídicas que são utilizadas enquanto factores instigadores de emergência é o conceito de crise. Para lá do significado jurídico de julgamento em tribunal, convergem na história deste termo duas tradições semânticas que, como vos será evidente, advêm do verbo grego crino: um termo da medicina e da teologia. Na tradição médica, crisis significa o momento em que o médico tem de julgar e de decidir se o paciente irá morrer ou sobreviver. O dia ou os dias em que estas decisões são tomadas são chamados crisimoi, os dias decisivos. Na teologia, a crisis é o último julgamento proclamado por Cristo no fim dos tempos. Como podem ver, o que é essencial em ambas as tradições é a ligação a um momento específico no tempo. Na utilização presente do termo, é abolida esta ligação. A crise e o julgamento são separados do seu correspondente temporal e coincidem agora com o decurso cronológico do tempo, de modo que, não apenas na economia e na política, mas em todos os aspectos da vida social, a crise coincide com a normalidade e torna-se, deste modo, apenas uma ferramenta de governo. Consequentemente, a capacidade de decidir desaparece de vez e o processo contínuo de tomada de decisões não decide absolutamente nada. Para o formular em termos paradoxais, podemos dizer que, encarando um estado de excepção contínuo, o governo tende a tomar a forma de um perpétuo golpe de estado. Este paradoxo seria uma descrição precisa do que sucede tanto aqui na Grécia como em Itália, onde governar significa fazer uma série contínua de pequenos golpes de estado. O presente governo italiano não é legítimo.

É por isso que creio que, para compreender a peculiar governamentalidade sob a qual vivemos, o paradigma do estado de excepção não é totalmente adequado. Irei, portanto, seguir a sugestão de Michel Foucault e investigar a origem do conceito de segurança no início da economia moderna, por François Quesnay e os Fisiocratas, cuja influência na governamentalidade moderna não pode ser sobrestimada. Começando com o tratado de Vestefália, os grandes estados europeus absolutistas começam a introduzir no seu discurso político a ideia de que o soberano deve cuidar da segurança dos seus sujeitos. Mas Quesnay é o primeiro a estabelecer a segurança enquanto a noção central na teoria do governo, e isto de um modo bastante peculiar.

Um dos principais problemas com que os governos tinham de lidar na altura era o da fome. Antes de Quesnay, a metodologia habitual consistia em prevenir a fome através da criação de celeiros públicos e da proibição da exportação de cereais. Ambas as medidas tinham efeitos negativos na produção. A ideia de Quesnay foi inverter o processo: em vez de tentar prevenir as fomes, decidiu deixá-las acontecer e dotar-se da capacidade de as governar quando sucedessem, liberalizando tanto as trocas internas como as externas. "Governar" retém aqui o seu significado etimológico cibernético: um bom kybernes, um bom piloto, não evita as tempestades; mas, se uma ocorre, tem de ser capaz de governar o seu barco, utilizando a força das ondas e dos ventos para a navegação. É este o significado do lema "laissez faire, laissez passer". Não é apenas a deixa do liberalismo económico, é um paradigma de governo, que concebe a segurança (sureté, nas palavras de Quesnay) não enquanto a prevenção de perigos, mas pelo contrário enquanto a habilidade de os governar e conduzir a bom porto, uma vez que tenham lugar.

Não devemos negligenciar as implicações filosóficas desta inversão. Significa uma transformação epocal na própria ideia de governo, que inverte a tradicional relação hierárquica entre causas e efeitos. Já que governar as causas é difícil e caro, é mais seguro e útil tentar governar os efeitos. Sugeriria que este teorema de Quesnay é o axioma da governamentalidade moderna. O ancien régime possuía como objectivo o domínio das causas, a modernidade pretende controlar os efeitos. E este axioma aplica-se a todos os domínios: da economia à ecologia, das políticas externas e militares às medidas internas de polícia. Devemos perceber que os governos europeus desistiram de qualquer tentativa de dominar as causas e desejam apenas governar os efeitos. O teorema de Quesnay torna também perceptível um facto que de outro modo parece inexplicável: a convergência paradoxal de um paradigma económico absolutamente liberal com um paradigma de controlo policial e estatal sem precedentes e igualmente absoluto. Se o governo aponta para os efeitos e não para as causas será obrigado a estender e a multiplicar o controlo. As causas exigem ser conhecidas, enquanto os efeitos apenas podem ser verificados e controlados.

Umas das esferas importantes onde o axioma é operativo é a dos dispositivos de segurança biométrica, que permeia cada vez mais todos os aspectos da vida social. Quando as tecnologias biométricas apareceram no Séc. XVIII com Alphonse Bertillon em França e com Francis Galton na Inglaterra, o inventor das impressões digitais, não foram pensadas para prevenir crimes, mas apenas para reconhecer delinquentes reincidentes. Apenas quando ocorria um segundo crime se podia utilizar os dados biométricos para identificar o ofensor.

Estas tecnologias biométricas, inventadas para criminosos reincidentes, permaneceram durante um longo período privilégio exclusivo seu. Em 1943, o congresso dos Estados Unidos ainda recusava o Citizen Identification Act, que queria introduzir um cartão de identidade com impressões digitais para todos. Mas de acordo com uma lei fatal ou clandestina da modernidade, as tecnologias que foram inventadas para animais, para criminosos, para estrangeiros ou para judeus foram posteriormente estendidas a todos os seres humanos. Assim, no decurso do Séc. XX, as tecnologias biométricas foram aplicadas a todos os cidadãos, e as fotografias identificadoras de Bertillon e as impressões digitais de Galton são hoje utilizadas por todos os países nos seus bilhetes de identidade.

O passo mais extremo, porém, só foi dado nos nossos dias e está ainda em processo de total implementação. Com o desenvolvimento de novas tecnologias digitais, com scanners ópticos que podem facilmente gravar não apenas impressões digitais mas também a retina ou a estrutura da íris ocular, os dispositivos biométricos tendem a ultrapassar as esquadras e os gabinetes de imigração para se espalharem à vida quotidiana. Em muitos países o acesso a cantinas ou mesmo a escolas é controlado por um dispositivo biométrico onde o estudante coloca a sua mão. As indústrias europeias neste campo, que estão a crescer rapidamente, recomendam que os cidadãos sejam habituados a este tipo de controlo desde jovens. O fenómeno é especialmente perturbante, porque a Comissão Europeia pelo Desenvolvimento da Segurança (como o ESPR, programa europeu de pesquisa securitária) inclui entre os membros permanentes representantes de todas as grandes indústrias no campo, produtoras de armamento que como a Thales, a Finmeccanica e a EADS & BAE systems se converteram ao negócio da segurança.

É fácil imaginar os perigos representados por um poder que possa ter à sua disposição, de forma ilimitada, a informação biométrica e genética de todos os seus cidadãos. Com um semelhante poder, a exterminação dos judeus, realizada com base em documentação bem menos eficiente, poderia ter sido total e incrivelmente rápida. Mas não vou alongar-me neste aspecto importante do problema da segurança. As reflexões que gostaria de partilhar convosco abordam, pelo contrário, as transformações da identidade política e das relações políticas que estão envolvidas nas tecnologias securitárias. Esta transformação é tão extrema que podemos legitimamente perguntar não só se a sociedade onde vivemos é ainda uma sociedade democrática, mas também se uma tal sociedade pode ser considerada política.

Christian Meier mostrou como no Século V se deu em Atenas uma transformação da conceptualização política fundada no que ele considera a “politização” da cidadania. Enquanto até esse momento o facto de se pertencer à polis era definido por uma série de condições e status sociais de tipo diferente – por exemplo pertencer à nobreza ou a uma certa comunidade cultural, ser camponês ou comerciante, membro de uma certa família, etc. – a partir daí a cidadania tornava-se o principal critério de identidade social. “O resultado foi uma concepção de cidadania especificamente grega, na qual o facto de os homens se terem de comportar enquanto cidadãos encontrou uma forma institucional. A pertença a comunidades económicas ou religiosas era remetida para um lugar secundário. Os cidadãos de uma democracia consideravam-se membros da polis na medida em que se dedicavam à vida política. Polis politeia, cidade e cidadania constituíam-se e definiam-se mutuamente. A cidadania tornou-se assim uma forma de vida, através da qual a polis se constituía enquanto domínio claramente distinto da oikos, a casa. A política tornou-se então um espaço público livre, oposto ao espaço privado, que era o reino da necessidade”. Segundo Meier, este processo grego de politização foi transmitido à política ocidental, onde a cidadania continuou a ser um elemento decisivo.

A hipótese que vos gostaria de propor é a de que este factor político fundamental entrou num processo irrevogável que podemos apenas definir como um processo de despolitização crescente. O que era no início um modo de vida, uma condição activa essencial e irredutível, tornou-se agora um estatuto jurídico exclusivamente passivo, no qual a acção e a inacção, o privado e o público, são progressivamente obscurecidos e se tornam indistinguíveis. Este processo de despolitização da cidadania é tão evidente que não me vou demorar nele.

Irei antes tentar demonstrar como o paradigma da segurança e dos dispositivos de segurança jogaram um papel decisivo neste processo. A crescente extensão aos cidadãos das tecnologias concebidas para criminosos tem consequências inevitáveis na identidade política do cidadão. Pela primeira vez na história da humanidade, a identidade não é uma função da personalidade social e do seu reconhecimento pelos outros, mas antes uma função da informação biológica, com a qual não tem qualquer relação, como os arabescos das impressões digitais e a disposição dos genes na dupla hélice do ADN. O elemento mais neutro e privado torna-se no factor decisivo da identidade social, que irá, portanto, perder todo o seu carácter público.

Se a minha identidade é então determinada por factos biológicos, que não dependem da minha vontade e sobre os quais não tenho controlo, então a construção de algo como uma identidade política e ética torna-se problemático. Que relação posso estabelecer com as minhas impressões digitais ou com o meu código genético? A nova identidade é uma identidade sem a pessoa, por assim dizer, na qual o espaço da política e da ética perde o seu sentido e tem de ser pensado a partir do zero. Enquanto o cidadão grego era definido por uma oposição entre o público e o privado, entre a oikos, que era o lugar da vida reprodutiva, e a polis, o local da acção política, o cidadão moderno parece antes mover-se numa zona de indiferença entre o privado e o público, ou, para citar termos Hobbesianos, entre o corpo físico e o político.

A materialização espacial desta zona de indiferença é a videovigilância das ruas e das praças das nossas cidades. De novo, um dispositivo que foi concebido para utilização nas prisões é aplicado aos locais públicos. É evidente que um local gravado em vídeo deixa de ser uma ágora e torna-se num híbrido público e privado, uma zona de indiferença entre a prisão e o fórum. Esta transformação do espaço político é certamente um fenómeno complexo que implica uma multiplicidade de causas, entre as quais, num especial lugar, o nascimento do biopoder. A primazia de uma identidade biológica sobre uma identidade política está directamente relacionada com a politização da vida nua nos estados modernos. Mas não devemos nunca esquecer que o nivelamento da identidade social na identidade corporal começou com as tentativas de identificação de criminosos reincidentes. Não deveríamos surpreender-nos se hoje a relação normal entre o estado e os seus cidadãos é composta pela suspeita, pelo arquivamento policial e pelo controlo. O princípio secreto que comanda a nossa sociedade pode ser assim formulado: todo o cidadão é um potencial terrorista. Mas que tipo de Estado é este que se rege por um principio desses? Podemos ainda designá-lo de Estado democrático? Podemos ainda considerá-lo político? Em que tipo de Estado vivemos hoje?

Como provavelmente sabem, Michel Foucault, no seu livro “Vigiar e Punir” e nos seus cursos no Collége de France, esboçou uma classificação tipológica dos Estados modernos. Foucault mostra como o Estado do Ancien Régime, que ele designa de Estado territorial ou soberano e cujo lema era fazer morrer e deixar viver, se desenvolveu progressivamente num Estado populacional e num Estado disciplinar, cujo lema é agora o inverso ao fazer viver e deixar morrer, na medida em que se ocupa da vida do cidadão no sentido de produzir corpos saudáveis, ordenados e dóceis.

O Estado no qual vivemos agora já não é um Estado disciplinar. Gilles Deleuze sugeriu chamar-lhe um “État de contrôle”, Estado de controlo, porque o que este deseja não é ordenar e impor disciplina, mas antes gerir e controlar. A definição de Deleuze é correcta, porque a gestão e o controlo não coincidem necessariamente com ordem e disciplina. Ninguém o disse tão claramente como o agente policial italiano que, após os motins de Génova em Julho de 2001, declarou que o governo não queria que a polícia mantivesse a ordem, mas que gerisse a desordem.

Os politólogos americanos, que tentaram analisar as transformações constitucionais implícitas no Patriot Act e nas outras leis que se seguiram ao 11 de Setembro, preferem falar de um Estado Securitário. Mas o que significa aqui segurança? Foi durante a revolução francesa que a noção de segurança – sureté, como se dizia – se liga à definição de polícia. As leis de 16 de Março de 1791 e de 11 de Agosto de 1792 introduzem na legislação francesa a noção de “police de sureté” (policia de segurança), condenada a uma longa história na modernidade. Ao ler os debates que precederam a votação destas leis, poderão verificar que polícia e segurança se definem uma à outra, mas que nenhum dos oradores (Brissot, Heraut de Séchelle, Gensonné) é capaz de definir polícia ou segurança enquanto conceito isolado.

Os debates concentraram-se no posicionamento da polícia em relação à justiça e ao poder judicial. Gensonné sustém que são “poderes separados e distintos”; no entanto, enquanto a função do poder judicial é clara, é impossível definir o papel da polícia. Uma análise do debate demonstra que o local e a função da polícia são indecidíveis e devem permanecer enquanto tal, já que se fossem realmente absorvidos dentro do poder judicial a polícia não poderia existir. É este o poder discricionário que ainda hoje define a acção do agente de polícia, que, numa situação concreta de perigo para a segurança pública, age de certo modo enquanto soberano. Mas, mesmo quando exerce este poder discricionário, não toma realmente uma decisão, nem prepara, como é habitualmente afirmado, a decisão do juiz. Toda a decisão afecta as causas, enquanto a polícia age sobre os efeitos, que são por definição indecidíveis.

O nome deste elemento indecidível já não é hoje, como era no séc. XVII, a «raison d’État», razão de Estado: mas antes “razões securitárias”. Um Estado securitário é um Estado policial: mas, repito, na teoria jurídica a polícia é uma espécie de buraco negro. Tudo o que podemos dizer é que quando a chamada “Ciência da Polícia” surge no Séc. XVIII, a “polícia” é entregue à sua etimologia do grego “politeia” e oposta enquanto tal à “política”. Mas é surpreendente ver que a polícia coincide agora com a sua verdadeira função política, enquanto o termo política é reservado à política externa. Von Justi, no seu tratado sobre Policey Wissenschaft, chama então politique à relação de um estado com outros estados, enquanto chama polizei à relação de um estado consigo próprio. Vale a pena reflectir nesta definição: “A polícia é a relação de um Estado consigo próprio”.

A hipótese que gostaria de aqui sugerir é que, submetendo-se ao signo da segurança, o Estado moderno abandonou o domínio da política e entrou numa terra de ninguém, cuja geografia e fronteiras são ainda desconhecidas. O Estado Securitário, cujo nome parece referir uma ausência de cuidados (securus de sine cura) deverá, pelo contrário, preocupar-nos sobre os perigos que representa para a democracia, porque nele se tornou impossível a vida política, e democracia significa precisamente a possibilidade de uma vida política.

Mas gostaria de concluir – ou simplesmente de parar a minha palestra (na filosofia, como na arte, não há conclusão possível, há apenas a possibilidade de abandonar o trabalho) – com algo que, tanto quanto posso verificar, é talvez o mais urgente dos problemas políticos. Se o Estado que temos perante nós é o Estado Securitário que descrevi, temos de repensar novamente as estratégias tradicionais dos conflitos políticos. O que devemos fazer, que estratégia devemos seguir?

O paradigma Securitário implica que cada dissensão, cada tentativa mais ou menos violenta de derrubar a sua ordem, cria uma oportunidade de o governar numa direcção rentável. Isto é evidente na dialéctica que vincula o terrorismo e o Estado numa espiral viciosa sem fim. A partir da revolução francesa a tradição política da modernidade concebeu mudanças radicais sobre a forma de um processo revolucionário que age enquanto pouvoir constituant, o “poder constituinte” de uma nova ordem institucional. Creio que temos de abandonar este paradigma e procurar pensar algo como uma puissance destituante, uma “potência puramente destituinte”, que não possa ser capturada na espiral de segurança.

É uma potência destituinte deste género que Benjamin tem em mente no seu ensaio “Sobre a crítica do poder como violênciaquando tenta definir uma violência pura que consiga “romper com a dialéctica falsa da violência que faz as leis, e da violência que as mantém”, um exemplo do qual seria a greve geral proletária de Sorel. “Na ruptura deste ciclo”, escreve no final do ensaio, “sustentado pelas formas míticas da lei, na destituição da lei e de todas as forças nas quais depende, e finamente na abolição do poder do Estado, é fundada uma nova época histórica”. Enquanto um poder constituinte destrói a lei apenas para a recrear sob uma nova forma, a potência destituinte, na medida em que depõe de uma vez por todas a lei, pode realmente abrir uma nova época histórica.

Pensar essa potência puramente destituinte não é uma tarefa fácil. Benjamin escreveu que nada é tão anárquico quanto a ordem burguesa. No mesmo sentido, no seu último filme, Pasolini faz um dos seus quatro mestres de Saló dizer aos seus escravos: “a verdadeira anarquia é a anarquia do poder”. É precisamente porque o poder se constitui através da inclusão e da captura da anarquia e da anomia que é tão difícil ter um acesso imediato a estas dimensões e que é tão difícil pensar hoje em algo como uma anarquia verdadeira ou uma anomia verdadeira. Creio que uma praxis que tivesse sucesso em expor claramente a anarquia e a anomia capturadas nas tecnologias Securitárias do governo poderia agir enquanto uma potência puramente destituinte. Mas esta não é apenas uma tarefa teórica: significa antes de mais a redescoberta de uma forma-de-vida e o acesso a uma nova figura dessa vida política cuja memória o Estado Securitário tenta a todo o custo apagar.


Imagens
1. Salò o le 120 giornate di Sodoma, Pier Paolo Pasolini, 1975.
2. Pier Paolo Pasolini, entrevista: “Salò, sulla Società dei consummi”.

Giorgio Agamben
Filósofo. Nasceu em Roma em 1942. É fundamentalmente conhecido pela sua obra magna Homo Sacer, publicada parcialmente em português, nomeadamente “Poder Soberano e Vida Nua” e “Estado de Excepção”. É autor também de “Ideia da prosa” e “A comunidade que vem”.