A potência destituinte e o cuidado de si ▬▬ Luhuna Carvalho




No seguimento da tradução e da publicação em português da conferência de Giorgio Agamben "Por uma teoria da potência destituinte", Luhuna Carvalho oferece-nos uma leitura e um comentário crítico do projecto filosófico e político agambeniano. Um itinerário que convoca alguns dos termos do filósofo italiano (como o de "uso", "inoperância" e "forma-de-vida"), numa digressão que faz paragem obrigatória nesse conceito que Michel Foucault foi trabalhando na sua fase final, o "cuidado de si", e que se torna essencial para compreender o sentido dessa potência destituinte. Uma potência que confronta os limites de uma acção política tradicionalmente inscrita no círculo eterno entre poder constituinte e poder constituído, entre processos de subjectivação e ressubjectivação. Uma forma de vida que opera nesse processo de dessubjetivação operado pelos dispositivos actuais e que se supõe para lá da rede das soberanias múltiplas e das figuras abstractas e universais


Introdução
No início de 2014 foram publicados os textos de duas conferências de Giorgio Agamben dedicadas à problematização do que chamou “potência destituinte”, tema que viria a desenvolver no epílogo do seu livro mais recente, “L’Uso Dei Corpi”. A primeira conferência, intitulada “O que é uma potência constituinte?,” teve lugar em Tarnac (uma localidade no planalto de Millevaches em França que hospeda um projecto comunal) e estava integrada num encontro que se interrogava sobre as possibilidades de “Desfazer o Ocidente”. Em 2009, a aldeia recebeu alguma atenção quando alguns dos envolvidos no projecto comunal foram detidos e acusados de sabotagem no contexto de uma polémica operação judicial que veio a galvanizar o debate público sobre as práticas securitárias dos Estados modernos. O facto de alguns dos acusados estarem alegadamente ligados à autoria colectiva de alguns textos, primeiro na revista Tiqqun e depois enquanto “Comité Invisível”, fez com que as publicações ganhassem uma inesperada exposição, tendo vindo a alcançar o topo de vendas tanto em França como nos Estados Unidos. A segunda conferência foi dada no Instituto Politécnico de Atenas e terá sido dedicada ao quadragésimo aniversário da revolta dos estudantes contra a junta militar em 1973. Giorgio Agamben participou como convidado da juventude do SYRIZA, uma coligação de pequenos partidos de esquerda cuja ascensão eleitoral veio um ano depois a ganhar eleições.

Estes contextos “militantes” merecem aqui destaque pelo modo como se prestam a um diálogo directo com os temas de Agamben e como servem a situar esta sua problematização do que é uma potência destituinte num sentido imediato e aplicado. Se, por um lado, é hoje comum uma consciência do espelhamento soberano das sucessões de poder, por outro lado, essa consciência corresponde a um esvaziamento da própria política e da sua potência perante o cinismo que afirma a mera autonomia do político – ou seja, que coloca determinada inevitabilidade enquanto pedra basilar da política. Os locais aqui descriminados tornam-se pertinentes por esboçarem um delineamento de hipóteses gregárias de subjectivação que procuram exercer essa potência, porventura, destituinte. O tema deste texto será a identificação das questões interpeladas na problematização de uma teoria do poder destituinte, contextualizando os seus argumentos, procurando delinear de que modo são os próprios contornos políticos da subjectivação que nela são interpelados e desafiados.


Potência destituinte
A inversão paradigmática, provocatória até, implícita na sugestão de uma potência “destituinte” é sustentada pelas transformações nos regimes de governamentalidade contemporâneos e no modo como o conceito de “crise” se tornou no dispositivo central da gestão política das populações. A aplicação de medidas extraordinárias, que transcendem a esfera de legalidade definida pelos próprios contornos do Estado, deixou de estar a ligada a situações de necessidade exemplar para se tornar numa prática permanente que irradia e informa toda a forma institucional, tornando-se a principal forma de governo. Implícita nos textos surge a ideia de que o “estado de excepção” deixou de ser um princípio latente – a fronteira que define e assegura a sobrevivência última do soberano – para se tornar no campo que estrutura todas as presenças e subjectivações. É a partir desse particular esgotamento que será necessário repensar a fenomenologia operativa do político.

A Europa das crises será o cenário paradigmático desta análise. O período do pós-guerra parecia ter constituído um espaço de relativa estabilidade que contribuiria para uma percepção de um alegado “fim da história”, no qual a tarefa da política seria apenas a de configurar uma contínua sofisticação dos dispositivos de governação em curso. Na medida em que esta “autonomia do político” se afirmava naturalizando-se, funcionando enquanto “presente contínuo”, qualquer ruptura com a ordem deveria ser ainda pensada na articulação entre sujeito, hipótese gregária e programa: caberia às identidades – produtivas, nacionais, minoritárias – romper com um falso aufhebung e impor o seu próprio processo e forma soberana.

A partir dos anos 70, a inversão deste paradigma de governamentalidade vem transformar as sociedades “disciplinares”, de “controlo” e do “espectáculo”, ao assumir que a manutenção de um regime soberano e de determinada forma produtiva não necessita de uma “docilidade dos corpos”, mas que estes, previamente disciplinados, podem ser sujeitos a múltiplas dessubjectivações que visam reorganizar a sua produtividade e estimular a sua capacidade em manter activo determinado sistema sobre pressão. A reprodução dos sistemas deixa de passar por uma gestão organizada para se tornar numa gestão dos limites da organização, chegando ao ponto em que até eventuais rupturas serão produtivas, no sentido em que revelarão novas oportunidades de ressubjectivação e reorganização. É neste contexto, em que a governamentalidade se torna numa ciência de gerir e governar extralegalmente, de prever e direccionar resistências e rupturas e não apenas fluxos e consensos, que se torna pertinente interrogar que validade terão ainda os conceitos como democracia e política. Agamben não sugere que os Estados tenham abandonado as técnicas disciplinárias de constituição do sujeito moderno, mas propõe que estas tenham adquirido uma tal sofisticação que podem agora permitir novos paradigmas de governamentalidade, onde a excepção se joga na própria subjectivação. É o “governos dos efeitos” e não das causas que torna perceptível, hoje, “a convergência paradoxal de um paradigma económico absolutamente liberal com um paradigma de controlo policial e estatal sem precedentes e igualmente absoluto.” [1]
1. Giorgio Agamben, What is a Destituent Power. In Environment and Planning D: Society and Space, Vol. 32, nº 1, 2014.
Onde vê Agamben não apenas o fim da democracia – uma denúncia corrente – mas também o fim da política? Agamben coloca o momento de constituição da cidadania na separação entre a esfera doméstica e política, ou seja, na criação de um campo de gestão pública, comum aos cidadãos, que exclui a dimensão privada e familiar, capturando-a enquanto objecto subalterno. Essa separação age enquanto princípio ontológico da política ocidental, enquanto máquina produtora de sujeitos, e é na contínua redefinição dessa fronteira que se dá a sucessão de modelos e formas de soberania. Actualmente, o colapso biopolítico e cibernético entre público e privado cria um enorme limiar de indefinição onde esta “máquina antropológica” de subjectivação gira apenas sobre si própria. A stasis, a guerra civil grega onde o sujeito se politizava e devinha cidadão, e que servia para delimitar uma claríssima experiência-fronteira entre o público e o privado, deixa de ocorrer: “A hipótese que vos gostaria de propor é a de que este factor político fundamental entrou num processo irrevogável que podemos apenas definir enquanto processo de despolitização crescente. O que era no início um modo de vida, uma condição activa essencial e irredutível, tornou-se agora um estatuto jurídico exclusivamente passivo, no qual a acção e a inacção, o privado e o público, são progressivamente obscurecidos e se tornam indistinguíveis.” [2]
2. Giorgio Agamben, Para uma Teoria do Poder Destituinte. In Revista Punkto.
A ideia de que os dispositivos modernos produzem apenas subjectivações suspensas ou larvais – ou que a sua acção ocorre apenas enquanto dessubjectivação, no sentido de uma interrupção traumática e eventual das subjectivações, destruindo as categorias transcendentais do presenciamento político do sujeito – percorre a obra de Agamben. Este campo de indefinição e suspensão impede a profanação dos dispositivos – o renegociar das suas separações e fronteiras – e é nesse sentido que se torna necessário propor novos conceitos operativos para a política: não a produção e a práxis, mas sim a inoperância e o uso.

Como são então pensados estes novos conceitos fundamentais da política? Agamben sugere uma genealogia do “uso” sublinhando o seu carácter subjectivo e não definitivo. No grego clássico o verbo “chrestai” é considerado uma voz reflexiva que centra o processo no sujeito, realizando algo realizado nele próprio: “o resultado é uma transformação da ontologia do sujeito. Não um sujeito que usa um objecto, mas um sujeito que se constitui apenas através do uso, o ser em relação com um outro. O uso, neste sentido, é a afectação que um corpo recebe tanto quanto está em relação com um outro corpo.” [3]. Na constituição de um sujeito político a questão da sua reprodução material não é então posterior ou sequer separada da sua afirmação política – não é a dimensão ontológica de determinada identidade que irá germinar determinado modo de produção e reprodução mas, precisamente, o colapso da mediação causal entre sujeito e objecto. Agamben dedica algum tempo a esta questão na sua investigação sobre a vida cenobita, no qual refere o debate entre os monges franciscanos e a cúria romana onde estes defendem um seu direito de uso sobre as coisas, oposto ao direito de posse, afirmando que o próprio devir do mundo contraria a ideia da acção enquanto esgotamento.
3. Giorgio Agamben, What is a Destituent Power. In Environment and Planning D: Society and Space, Vol. 32, nº 1, 2014.
De modo contrário à leitura mais imediata, a inoperância não significa a inactividade, mas um processo de recondução da existência a uma forma de potencialidade pura, sem particular qualidade ou obra. Inoperante será a acção que liberta o humano de qualquer naturalização fixa do seu ser e que o faz retendo o seu carácter iminentemente contingencial – ou seja, que não opõe soberanias e dispositivos, mas antes os torna inoperantes. Mais do que um estado ontológico “fixo”, a inoperância é o momento de partida e regresso ao momento de potência. A poesia é referida por Agamben enquanto exemplo de um acto inoperante da função comunicativa e informativa da linguagem: “O que o poema faz pela linguagem a filosofia deve fazer pela acção: tornar inoperativas acções biológicas, económicas e sociais, mostrando o que corpo humano pode fazer, abrindo-o a novos usos.” [4]. Também a festa surge enquanto exemplo possível ao colocar uma actividade colectiva numa esfera de improdutividade, dispêndio e suspensão em que os gestos dispensam os seus fins: não se come apenas para sobreviver, não se veste apenas para proteger o corpo dos elementos e a circulação das coisas ocorre em pleno valor de uso. Conclui Agamben: “Se a questão ontológica fundamental de hoje não é o trabalho mas a inoperância, e se esta inoperância pode, no entanto, ser disposta apenas através de um trabalho, então o conceito político correspondente já não pode ser o de um poder constituinte, mas algo que poderia chamar-se uma potência destituinte. E se as revoluções e as insurreições correspondem a um poder constituinte, ou seja, a uma violência que estabelece e constitui uma nova lei, no sentido de pensar uma potência destituinte temos de imaginar estratégias diferentes, cuja definição é a tarefa da política que vem. Um poder que foi apenas destronado pela violência irá reerguer-se de novo sob uma nova forma, na incessante e inevitável dialéctica entre poder constituinte e poder constituído, entre a violência que faz a lei e a violência que a preserva.” [5]
4. Giorgio Agamben, Idem.
5. ibidem

Potência destituinte e poder constituinte
Esta oposição entre potências destituintes e poderes constituintes surge num contexto particular que importa esclarecer. Giorgio Agamben e Antonio Negri, ambos Italianos e da mesma geração, testemunharam os eventos políticos da década de 60 e 70 que em Itália ficaram conhecidos como o “Maio de 68 que durou dez anos”. Paralelamente à conhecida luta armada de esquerda e de direita, cuja instrumentalização pelo Estado viria a ser reconhecida pelo próprio senado italiano nos anos 90 [6], o movimento da “Autonomia Operária” ganhou forma enquanto galáxia de colectivos, pequenos partidos, sindicatos informais, jornais, revistas, comunas, casas ocupadas e centros sociais. A estruturação rizomática e difusa do movimento tornava-o bastante distinto dos poderes clássicos da esquerda, legais ou clandestinos, e no seu apogeu, em 1977, as suas manifestações chegam a reunir mais de 300.000 pessoas. É neste contexto que Negri, líder teórico e militante central em diversas dinâmicas do movimento, é detido e que posteriormente procura exílio em Paris. Sendo depois condenado, regressa a Itália para cumprir os anos restantes da sua pena em 1997. Não são públicos os contornos do envolvimento de Agamben, para lá de algumas anedotas e momentos circunstanciais, mas é desde logo assinalável no seu pensamento a presença conceptual de uma fenomenologia do político intimamente ligada a estas ressubjectivações multitudinárias. É, portanto, este período político que contextualiza a oposição entre potência destituinte e poder constituinte e que lhe dá uma materialidade antropológica ausente de outras considerações éticas sobre a natureza do poder e da soberania. Será, no entanto, também este ambiente a relativizar as oposições que à primeira vista surgem enquanto incompatíveis.
6.No diário pessoal que encerra a sua reunião de ensaios “Mezzi Senza Fine” Agamben traça um paralelo entre a “estratégia de tensão” dos anos 70 e a crise de legitimidade da política italiana nos anos 90 após os escândalos de corrupção conhecidos como Tangentopoli. Em ambos os casos Agamben fala de Itália enquanto laboratório de políticas de governamentalidade nas quais que o poder se procura reconstituir sem passar por um processo constituinte.
Negri parte do “operaismo”, teorizado por Mario Tronti entre outros, que afirma em termos genéricos que a história da luta de classes não parte de sucessivas respostas proletárias a diferentes condições de exploração mas, pelo contrário, surge do modo como as condições de exploração se vão adaptando a um principio operário – à força constituinte do trabalho vivo. Negri procura redefinir a questão de um sujeito político proletário a partir do falhanço da experiência soviética, da social-democracia ocidental e da “autonomia do político” que afirma serem indiferentes os locais de exercício do poder. Negri propõe uma ruptura da dialéctica que identifica enquanto espírito do capitalismo e o seguimento de uma outra herança filosófica, um fio vermelho que liga Maquiavel, Espinosa e Marx, que sugere uma afirmação plena da potencialidade imanente do sujeito político. Deste modo a emergência de um “operário social”, perante a total subsunção da sociedade ao modo de produção capitalista e a inclusão de todos campos de vida na produtividade industrial, significaria que a identidade operária se deveria mobilizar em todos os campos da reprodução material afirmando a sua especificidade subjectiva.

É a partir do entendimento desta força operária “social” difusa – que inclui as donas de casa, os estudantes e as crianças – enquanto “máquina de guerra” que Negri procura superar a dicotomia entre o poder constituinte e o poder constituído: ao primeiro corresponde a febril e incessante produtividade e criatividade do trabalho vivo, ao segundo caberá a sua captura em dispositivos e formas fechadas de soberania. A síntese dialéctica não sucederá na negociação de múltiplas cedências (quer na forma social-democrata quer na forma de Estado operário) mas na afirmação sine qua non da especificidade operária – a sua produtividade e criatividade desejante. Negri parte de uma reformulação do sujeito colectivo revolucionário que abandona a unicidade identitária do “povo”, que em si carrega desde logo a abstracção universalista do Estado, para propor a “multidão” – cuja multiplicidade de devires e formas sustém em si o processo constituinte. É aqui que é, então, operada uma distinção entre potentia (potência) e potestas (poder): “Onde a potentia é criativa, imanente, multi-direcional e aberta a novos modos de estar no tempo, a potestas é parasitária, transcendente, disciplinadora e parasitária.” [7] Na multidão não se dá um encerramento do poder constituinte nem este é fatalmente capturado num poder constituído: “ [A multidão] nunca tem síntese ou subsunção (...) não está em jogo a dialéctica constituição – revolução – constituição. Pelo contrário o poder constituinte ocasiona uma desaceleração e um parar do tempo, bem como um apressar e precipitar dos eventos. É uma tentativa de operar no tempo, desde o tempo, num modo que cria.” [8]
7. Illan Rua Wall, Notes on an ‘Open’ Constituent Power, 2013.
8. Idem.
É esta perspectiva da existência de uma imanência criativa central a determinada inclinação identitária que Agamben vem contestar, afirmando que nada na hipótese de uma autonomia do “constituinte” verdadeiramente impede a sua “constituição” – ainda que de modo difuso e rizomático, a postulação de um trabalho vivo desejante enquanto condição ontológica indexa a condição humana a determinada tarefa e opera nela o dito dispositivo de banimento soberano que, segundo Agamben, fundamenta a “máquina antropológica” e a sucessão de soberanias ocidentais: “O poder constituinte parece colocar demasiado frequentemente o sujeito desejante enquanto ponto de partida onde é engendrado o momento constituinte. Em última análise o momento constituinte representa um potencial “operativo”, ou seja, a possibilidade de uma comunidade se constituir à volta da sua vontade de constituir” [9]. No cerne desta questão está precisamente a concepção agambeniana de potência que é sempre uma potência de não-ser ou não-fazer. Qualquer dinâmica que se constitua a partir de determinada tarefa subjectiva e que aí postule uma centralidade do sujeito irá, eventualmente, desembocar nesse paradigma que coloca a ontologia no acto cumprido e esgotado – dispondo imediatamente o banimento dos sujeitos e das práticas que se revelem incapazes, ou indisponíveis, para cumprir o dito acto fundamental. O poder constituinte ocorre sempre já num momento de essencialização do sujeito, de postulação de uma sua natureza, não por pecado revolucionário, mas porque se trata de uma categoria onde a acção surge desde logo separada do seu princípio. Em termos menos especializados a crítica de Agamben ao poder constituinte passa por afirmar que este cria, desde logo, uma determinada figura do militante e do sujeito político que irá, inevitavelmente, funcionar enquanto calibre constituído dos graus de pertença e despertença à vindoura ordem política. O reparo não é directamente dirigido a Negri e é, na verdade, aplicável à maioria do pensamento político militante contemporâneo, quaisquer que sejam as suas especificidades ideológico-políticas.
9. Giorgio Agamben, Homo Sacer. Roma: Einaudi, 1995, [Poder Soberano e vida nua. Homo sacer, 1998]
Como pensar, então, uma acção emancipatória e um agenciamento político no diminuto espaço entre o eclipse das democracias e os banimentos soberanos latentes? Para Agamben, responder directamente aos termos da questão significaria reconhecer as categorias subjectivas e voluntaristas que este pretende desconstruir, sendo que, no entanto, até o sujeito crepuscular agambeniano – a “singularidade qualquer” – necessita de habitar um mundo. E como se dá um habitar do mundo? Através de uma “forma-de-vida”: “[A forma-de-vida é] uma vida que não pode ser separada da sua forma, é uma vida para qual, no seu modo de vida está o seu próprio viver e no seu próprio viver o seu modo de vida – uma vida que não pode ser isolada numa vida nua. O que está em jogo, então, é uma vida nos quais os singulares actos, modos e processos nunca são simplesmente factos, mas sempre e acima de tudo possibilidades de vida, sempre acima de tudo potência.” [10]. A estratégia críptica de Agamben perde a sua opacidade quando entendemos a sua proposta a partir das referências teóricas que anuncia próximas de si – a separação de que fala é o campo geral dos múltiplos diagnósticos de alienação moderna: da reificação de Lukács à “inautenticidade” de Heidegger – e a forma-de-vida é, precisamente, a existência, que na conservação e constituição da sua potência, resiste a essa separação produtiva, teológica, biológica ou identitária. Ao ser desligada tanto de uma acção como de uma subjectividade essa resistência é propositadamente enigmática, mas Agamben chega a esboçar alguns contornos ao mencionar o trabalho de Pierre Clastres, o antropólogo que detalhou o modo como certas tribos sul-americanas resistiam à formação de um Estado, de Rainer Schurrman, que ponderou como conceber a acção após Heidegger, e Walter Benjamin e da sua “critica da violência” onde problematiza exactamente a questão da uma violência para lá da que faz a lei de que a conserva. A escolha do termo “forma-de-vida” não é, no entanto, inocente e permite encontrar uma via de fuga para lá da dimensão aporética da inoperância. Que no enquadramento geral da filiação filosófica de Agamben este decida postular a “forma” de uma vida, isolando-a das outras três “causas”, relacionando-a com uso reflexivo e com uma destruktion heideggeriana revela como essa possibilidade é colocada no “cuidado de si” enquanto poiesis – uma perspectiva iminentemente foucaultiana.
10. Giorgio Agamben, Giorgio. Mezzi Senza Fine. Turim: Bollati Boringhieri, 1996.

Foucault e o Cuidado de Si
Agamben é frequentemente referido como um dos continuadores do trabalho de Foucault, nunca sem suscitar alguma polémica, principalmente pelo seu trabalho da série Homo Sacer, onde afirma enfrentar o que Foucault terá deixado por dizer ou por pensar. A proposta, discutível, passa essencialmente por uma periodização mais ousada da proposta disciplinária de Foucault: Agamben afirma que a biopolítica surge na própria origem da metafísica ocidental e que, portanto, não há uma transição dos regimes soberanistas para os regimes disciplinários, ambas as formas sempre coexistiram. O que define o contemporâneo é, então, a coincidência e a indistinção cada vez maior entre o campo da vida nua e o campo da política. Na sua sujeição a uma tão radical separação e inclusão, a vida nua torna-se por excelência o cenário do “perigo” de Heidegger cuja dupla natureza de captura e desvelamento ilustra o poema de Hölderlin: “mas onde está o perigo, também cresce a potência salvífica”. De que modo Agamben lê este “perigo” através de Foucault? Considerando o ponto onde na vida nua se cruzam as duas faces do poder segundo Foucault: por um lado, as tecnologias políticas com os seus dispositivos e dessubjectivações e, por outro, as técnicas de si com os seus cuidados e desvelamentos.   

A arte da vida
“A ideia de que se deverá fazer da vida uma obra de arte é atribuída principalmente a Foucault e à sua ideia do cuidado de si. Pierre Hadot, o grande historiador da filosofia antiga, censurou Foucault por o cuidado de si dos antigos não significar a construção da vida enquanto obra de arte, mas pelo contrário uma espécie de despossessão de si. O que Hadot não conseguia compreender é que para Foucault as duas coincidiam. É necessário recordar a crítica de Foucault à noção de autor, a sua recusa radical da autoria. Neste sentido, uma vida filosófica, uma vida boa e bela, é algo diferente: quando a sua vida se torna numa obra de arte, não se é causa dela.” [11]. É a última frase que distingue este pensamento das inúmeras outras formulações vanguardistas, políticas e artísticas, do século XX que postulavam uma acção que tornaria indistintas vida e arte: não se trata de uma emancipação colectiva dos sujeitos enquanto operantes dos dispositivos da sua reprodução criativa, mas antes o eclipse das identidades na materialidade das técnicas de si – a arte da vida não é devir artista da própria vida, mas antes a consciência de que determinadas técnicas produzem determinado mundos.
11. Giorgio Agamben, in Raulff, Urich “Interview with Giorgio Agamben – Life, a Work of Art Without an Author: The State of Exception, the Administration of disorder and Private Life”. German Law Journal 5. 2004
Esta ideia está desde logo presente ao ser referenciado por Agamben o carácter essencialmente técnico da voz reflexiva e de que modo no grego antigo o conceito de uso pressuponha essa faculdade de poiesis. É o “uso reflexivo” uma forma do “cuidado de si” de que fala Foucault? A resposta não é imediata porque nos faz regressar ao cerne da problemática entre Negri e Agamben, sendo que é precisamente nas leituras contraditórias de Foucault que se dá a cisão entre ambos. Para Negri é distinguível um biopoder da biopolítica, no sentido em que há no campo biológico uma ininterrupta e explosiva produtividade cuja essencialidade preconiza a tarefa histórica de sua emancipação. Ora, este operar de si, ocorre nessa dimensão da potência recuperada pela inoperatividade ou, pelo contrário, reclama uma autonomia da valorização, uma auto-poiesis não alienada?

Determinadas considerações do curso de Foucault no Collége de France de 1981-82 dedicado à “hermenêutica do sujeito” permitem uma leitura que vem aprimorar as questões por este abertas. O curso anda à volta do diálogo entre Sócrates e Alcibíades, descrito por Platão no Primeiro Alcibíades, onde o filósofo instrui o promissor homem livre nas artes de se constituir como elemento político. Se no exemplo central deste texto se dá uma subjectivação política do sujeito que ocorre, precisamente, no limiar entre a esfera doméstica e a política – na qual a gestão sensata do privado dará lugar à excelência do oficio público – no “cuidado de si” adulto é sublinhado, pelo contrário, esse potencial criativo da despossessão marcado por uma continuidade que esbate a origem doméstica e o objectivo político. As técnicas da discursividade de si ocorrem “não numa relação de instrumentalidade mas integrando-se no próprio ser”, numa absorção das “verdades dadas pelos ensinamentos” –  a reflexividade do “cuidado de si” não ocorre na dupla cognição espelhada do Gnothi Sauton – conhece-te a ti próprio –, mas num eclipsar do operador na operação e, consequentemente, numa inoperância do próprio.

Esta dimensão é sublinhada quando Foucault afirma que “não se poderá cuidar de si no domínio e na forma do universal. O cuidado de si não pode surgir e, sobretudo, não pode ser praticado pela virtude de se ser humano enquanto tal, pela mera pertença à comunidade humana”. Esta recusa da forma universal ocorre de dois modos. No primeiro, o cuidado de si posiciona-se sempre numa alteridade, numa prática que pressupõe a desnaturalização das subjectivações e dessubjectivações implícitas na doxa; no segundo, o cuidado de si coloca-se precisamente na inoperância da ideia de uma universalidade abstracta, da possibilidade da constituição de conjugação idílica entre o homem e a sua obra, ao centrar a sua ontologia numa série de práticas e discursos imediatamente factícios: “uma certa forma de vida especial, que é distinta de todas as outras formas de vida em particular, será na verdade considerada a condição real para o cuidado de si”. Foucault sustenta esta ideia com inúmeros exemplos de secessões comunais que quebrariam as formas hierárquicas, económicas e espirituais vigentes.

As reflexões sobre os regimes ocidentais de conversão ajudam também a esclarecer os termos destes debates. Foucault identifica uma centralidade dos processos de conversão na política moderna: “parece-me que os esquemas da experiência individual e colectiva da «conversão à revolução» começam a ser definidos no século XIX, à volta de 1830-1840, precisamente referenciando a revolução francesa enquanto o seu evento fundador histórico-mítico. Parece-me que não conseguimos perceber o individuo revolucionário e o que a experiência revolucionária significou para ele, se não tivermos em conta a noção do esquema fundamental de conversão à revolução”. Foucault identifica dois tipos de conversão, a helénica e a cristã. Na cristã “a conversão requer sempre um evento único, repentino, tanto histórico como meta-histórico, que muda tudo dramaticamente e transforma o ser do sujeito num único golpe”, ou seja, só há conversão na medida em que se dá uma ruptura no cerne do próprio sujeito. Pelo contrário, nos gregos, a conversão tem a ver com um reconhecimento da ignorância, com uma ruptura com o que cerca e captura o “si”: “a conversão é um regresso que sucede na imanência do mundo” [12]. Surgem, então, aqui de novo, os temas do debate destituinte/constituinte firmemente ancorados no que Pierre Hadot identifica enquanto polaridades permanentes no pensamento da filosofia ocidental. A dimensão “eventual” da conversão cristã serve a sublinhar a ideia da política contemporânea enquanto regime espelhado de rupturas e crises operadas no cerne do sujeito: surge na autovalorizarão revolucionaria implícita a dessubjectivação militante e, invertendo os campos, surge na dessubjectivação das democracias contemporâneas a necessidade de um empreendedorismo nada menos que revolucionário.
12. Michel Foucault, L’Hermeneutique du Sujet. Paris: Seuil/Gallimard 2001.
De que modo pode este brevíssimo trânsito pela hermenêutica do sujeito perspectivar as questões implícitas na postulação de uma “potência destituinte”? Seria erróneo pensar que na formulação de Agamben surge implícito, enquanto resposta, um determinado corpo estratégico, táctico ou gregário de mobilização, destinado a ser posto em prática com urgência e determinação. Ainda assim, a proposta de uma acção que apenas descumpre, ressoa com um campo de referências que a periodização do sujeito povoa de personagens limites da “máquina antropológica” – o musselman catatónico dos campos de concentração ou Bartleby, por exemplo – ou com a efervescência sem exigências ou programa das “singularidades quaisquer” reunidas em Tiananmen. Em ambos os casos, a possibilidade emancipatória ou resistente do sujeito é colocada em situações extremas de dessubjectivação e condicionamento histórico que põem à prova a sua própria unidade e consistência. Para Agamben, a resistência ocorre não na defesa de uma subjectivação ante outra, mas, precisamente, na suspensão entre a dessubjectivação e posterior ressubjectivação na esfera de um poder reconstituído. O paradoxo de uma resistência que não assegura sequer a preservação da vida abre o campo de interrogações expressas nestes textos, já que mesmo acompanhando Agamben na sua genealogia dos poderes e das soberanias é inevitável e intencional uma certa perplexidade quando este procura operar a sua desconstrução a partir dos limites da metafísica ocidental. Há, no entanto, uma forma que ganha relevo neste textos (e em algumas das publicações mais recentes) que é a da secessão comunal não universalista, que habita uma lei, e que nessa “forma-de-vida” recusa a rede de soberanias múltiplas que a cercam e capturam. Recordando que as únicas palavras de Marx sobre como seria a sociedade sem classes se referiam à possibilidade de que um poderia ordenhar vacas de manhã, caçar à tarde e “fazer” teoria ao serão, e que Hegel usa para “síntese” a mesma palavra que Lutero usa para traduzir o “desactivar da lei” de São Paulo – Aufheben – surge a ideia de que em Agamben se dá uma tentativa de superação histórica dos condicionamentos metafísicos que impedem esta fruição messiânica do ser, ou de outro modo, que é operada uma desconstrução sucessiva dos elementos do materialismo histórico e da dialéctica mantendo intacta essa síntese que é, simultaneamente, um abolir e um preservar, um cancelar e um suspender, um negar e transcender.

Resumindo: se enquanto principal paradigma da política ocidental, e do seu bloqueio, a dialéctica for vista enquanto dispositivo que captura o político enquanto stock de formulações universalistas, sensos comuns e hegemonizações, então a sua superação não poderá ocorrer através de uma afirmação autónoma de determinado elemento produtivo, identitário ou ético, porque esse irá tornar-se na nova lei, no novo paradigma de captura. Foucault procura esboçar uma ontologia alternativa da acção e da produção constituindo-a contra a gramática da metafísica ocidental: o sujeito, a arché, o telos. É precisamente a partir da potência criativa no “cuidado de si” que Agamben procura pensar a inoperância do esgotamento da política: “a potencialidade cria então a sua própria ontologia” [13].
13. Giorgio Agamben, La Potenza del Pensiero. Vicenza: Neri Pozza 2005.


Conclusão
Seria erróneo colocar como demasiado opostas as concepções que Negri e Agamben fazem da biopolítica, das tecnologias de si, dos poderes constituídos e constituintes. As aparentes diferenças radicais e contraditórias habitam um mesmo espaço político e teórico e, perante a sua colocação num campo mais vasto de hipóteses críticas da política, da ideologia, do comunismo e da filosofia, tornam-se evidentes mais as coincidências do que as divergências. Tal é demonstrado quando, tanto Negri como Agamben, especialmente no livro que vem encerrar a série Homo Sacer “L’Uso dei Corpi”, remetem a aplicabilidade do que teorizaram, precisamente, para este campo do cuidado e das tecnologias de si.

A ideia difusa de que o pensamento de Agamben é um pensamento da derrota, da inacção e da submissão parte de dois erros grosseiros. O primeiro essencializa uma natureza do político, afirmando que este corresponde a uma série de formas e não uma rede de tensões e potências. Nesse sentido, a ininteligibilidade da fenomenologia do político que escapa a essas formas sugere a sua ausência e, pior, faz com que sejam, precisamente, utilizadas as formas contra uma política que vem. O segundo, decorrente do primeiro, é o de procurar encaixar um pensamento da desconstrução do sujeito nas categorias operativas desse próprio sujeito. Há um projecto extremamente forte de acção explicitamente revolucionária no pensamento de Agamben, mas este não é traduzível nos termos da política clássica ou na postulação ontológica de sujeitos ou objectos. Qual seria, então, o chrestai da revolução ou emancipação? Precisamente aquele que é exercido sobre si próprio, superando as categorias de sujeito e objecto. O que é que isso significa na prática? Significa uma experiência diferente do tempo da militância e da política, onde a acção não é postulada em termos programáticos, palacianos ou identitários. A mudança de paradigma aqui sugerida é que o domínio dos dispositivos sobre o sujeito não é exercido nas múltiplas categorias reificadas de presença, mas, precisamente, no seu tempo. Surge, então, a hipótese, aberta à discussão, de que a política pode não ser uma ciência do governo dos homens, dos seus eventos e das suas acções, mas sim uma organização das suas técnicas e dos seus tempos, e que este uso destituinte não é mais do que o momento em que um determinado movimento concreto faz desabar regimes abstractos de domínio e de captura.


Bibliografia
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Illan Rua Wall, Notes on an ‘Open’ Constituent Power. 2013.

Nota da edição
Este artigo é um texto-comentário ao texto “Por uma potência destituinte” publicado na Revista Punkto, traduzido para português por Luhuna Carvalho. Imagens da responsabilidade da edição.

Imagens
1. Pyotr Pavlensky, Carcass (2013).
2. Banksy, «Security Camera and "What are you looking at?"», Londres (2004).
3. “Je perds une tête; j'en trouve une (1793). French Revolution Digital Archive.
4. Tabulae Anatomicae, Venice (1627). National Library of Medicine.

Ficha Técnica
Data de publicação: 28.05.2015