Arquitecturas precárias para tempos precários? \ Pedro Bismarck



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Arquitecturas precárias
para tempos precários?
Pedro Levi Bismarck

«As pessoas da aldeia fizeram muitas piadas sobre estes painéis de lona. Se eles queriam que a cidade ficasse melhor, deveriam era ter feito obras a sério, em vez de colocar estas tristes decorações. É triste porque as pessoas gostavam que Putin tivesse visto a realidade da vida aqui e que fizesse alguma coisa, especialmente aquelas que votaram no seu partido».
Comentário de um habitante da aldeia russa de Suzdal acerca dos painéis de lona que foram espalhados pela aldeia de forma a cobrir as inúmeras casas degradadas, por altura de uma visita oficial de Vladimir Putin. [1]

«Quem não as conhece, as aldeias de Potemkin, construídas pelo astuto favorito da rainha Catarina na Ucrânia? Aldeias de tela e cartão, que tinham a missão de converter um deserto numa paisagem florescente, para satisfação de Sua Majestade imperial».
Adolf Loos, Die Potemkinsche Stadt

[  english version ]

Não se pode deixar reconhecer o papel relevante que as chamadas arquitecturas temporárias têm vindo a ocupar no mapa da actual produção arquitectónica. Um sucesso que aparece geralmente associado a dois argumentos principais. Por um lado, a ideia que estas práticas emergentes operam uma ruptura relativamente ao actual sistema de produção arquitectónica (o star system). Isto relaciona-se com o facto de estas arquitecturas fundarem a sua prática na recusa de um dos postulados essenciais do modelo vitruviano: a firmitas, isto é, a sua condição estável e duradoura. Por outro lado, estas arquitecturas trazem consigo um certo activismo político/social, ligado a um discurso em torno de novos modos de interacção com a cidade e que vem, sobretudo, ao encontro de uma certa frustração na nossa relação com as cidades e com os seus processos de governação. Contudo, por mais sedutores que estes argumentos possam parecer, eles fundamentam-se genericamente numa série de equívocos. Isto é, nem estas arquitecturas (na sua grande maioria) correspondem a qualquer estratégia operativa de questionamento do actual sistema de produção de arquitectura, nem esse discurso do activismo político/urbano é de facto real. Sendo pouco mais que aparatos discursivos cuja única função é a de procurar legitimar disciplinarmente estas práticas. É precisamente esse equívoco que parece importante clarificar, colocando-se para isso três questões.

1. A iliteracia da crítica
A primeira questão relaciona-se com a total indistinção que reina por debaixo desta classificação: arquitecturas temporárias. Como se fosse possível agrupar práticas tão diversas, com estratégias e objectivos tão diferentes. Parece haver uma iliteracia absoluta da crítica disciplinar a este nível, que parece mais interessada no discurso da ruptura geracional e das saídas criativas da crise do que em compreender o que as fundamenta, o que as motiva e, sobretudo, o que as distingue. Ao não fazer isso — e ao promover práticas arquitectónicas sem qualquer projecto crítico que não fazem mais que repetir um esquema banal que se fez moda — a crítica dá um tiro no próprio pé e no futuro da disciplina. Acabando por banalizar e esvaziar o trabalho daqueles que de facto, dentro e fora ou à volta das arquitecturas temporárias, têm procurado reflectir sobre a condição da prática arquitectónica no contexto da crise actual.

2. Firmitas interrupta
Ora, é precisamente essa ausência de discurso crítico tanto disciplinar como político-social, que nos leva à segunda questão. Em boa verdade, devemos ver estas arquitecturas como sendo simplesmente resultado de uma nova configuração do capital financeiro. Enquanto arquitecturas temporárias, elas são de facto precárias — arquitecturas precárias para tempos e pessoas precárias —, estruturas leves, low cost, flexíveis, à medida das novas necessidades dos mercados e do marketing urbano que têm transformado as cidades em pouco mais que parques temáticos. Elas são a nova forma do capital financeiro (fluído, rápido, precário) e não uma crítica a essa política de reconfiguração do capital — com todos os seus desequilíbrios e injustiças. Estas arquitecturas nada têm de ruptura ou de activismo social e não são seguramente a salvação das hostes arquitectónicas. E se perturbam o princípio vitruviano da firmitas é apenas para se ajustarem às novas necessidades do capital financeiro.

3. Arquitecturas do gozo
A última questão tem que ver com o facto de grande parte destas arquitecturas fundamentarem-se num certo espaço do gozo, do lúdico, que é neste caso particular contraditório com qualquer discurso de emancipação política ou social. Os reptos que lançam à subversão cool das regras do quotidiano urbano, os apelos à cidade como playground e como campo de novas e divertidas formas de interacção fazem-nos crer que somos membros de uma comunidade e que somos, efectivamente, cidadãos activos e conscientes. Mas, em boa verdade, não são mais que os pequenos brinquedos que entretêm e capturam o nosso tempo-livre. Transformam a cidade num bem a ser consumido como qualquer outro e a nós em simples consumidores de um produto e não em cidadãos politicamente comprometidos. O paradoxo destas arquitecturas do gozo pode ser colocado do seguinte modo: quanto mais se disseminam pelas cidades, transformando-as em playground e lugar cool, mais avança a privatização dos espaços públicos, os processos de gentrificação violenta, a especulação imobiliária e, por fim, a privatização do Estado. Quanto mais afirmam que a cidade é nossa, mais esta e o Estado se transformam em património de uns poucos. Estas arquitecturas do gozo são pouco mais que fetiches, precisamente, substitutos de um direito ao qual renunciamos: o direito à cidade. E o gozo que nos dão, não é mais que a compensação pela nossa alienação perante a cidade, perante esses processos políticos que dizem sempre governar em nosso nome, quando não fazem mais do que nos colocar como penhores no mercado da dívida global.

4. Arquitectura e (estetização da) vida política
É preciso sublinhar que não se está a incluir todas as práticas que, de um modo ou de outro, utilizam as arquitecturas temporárias. Mas, precisamente, a necessidade de traçar uma linha divisória entre aquelas que de facto estão empenhadas em pensar um tal papel social e político da disciplina e as outras que, em nome disso, aproveitando-se destes discursos, não passam de marcas e estratégias de marketing de um poder que, enquanto entretém os tempos livres dessa pequena burguesia planetária low cost e desencorajada, dissimula a verdadeira natureza das políticas neoliberais que as sustentam.
Em suma, o sucesso destas arquitecturas precárias está no facto de irem ao encontro de algumas das nossas actuais frustrações relativas à disciplina (a sua falta de conteúdo social e político) e à cidade (o nosso estranhamento perante os seus processos de governo) sem, contudo, lhes dar uma resposta satisfatória. Seguindo uma fórmula lapidar de Walter Benjamin (acerca da estetização da política no fascismo): elas dão a possibilidade de nos exprimirmos, mas com certeza não a de exprimirmos os nossos direitos [2]. Elas alimentam-se dessas inquietações, mas com certeza sem responder às nossas exigências. E esta é a razão do seu sucesso ideológico, mas também do seu perigo, enquanto marcas de um contínuo processo de estetização da vida política.
Em qualquer dos casos, pela sua pequena escala de intervenção, estas podem ser modos operativos de perturbar a nossa alienação perante a política, fomentando processos de participação nas políticas locais. E este será, certamente, um campo decisivo para pensar o papel da arquitectura nos tempos próximos. Mas isto só será possível se compreendermos quem está fazer o quê e em nome de quem. E, sobretudo, só será possível colocando o problema da relação da arquitectura com o político. Isto é, como é que a arquitectura pode responder à verdadeira crise do nosso tempo? A crise das instituições democráticas e dessa violenta reconfiguração do capital financeiro. E, não menos importante, como pode a arquitectura contribuir para desenhar novos modos de acesso à esfera da política, novas formas de participação no comum, favorecer processos de emancipação social, dando visibilidade a esses que permanecem sempre à margem dos discursos dominantes do poder.

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Referências
1. Segundo o jornal “France 24” os moradores foram avisados igualmente que deviam ter o melhor comportamento possível, incluindo não andarem com garrafas de álcool na rua. “Russian town gets fake makeover for Putin visit”. FRANCE 24, 11.12.2013.
2. «O fascismo (…) vê a sua salvação na possibilidade que dá às massas de se exprimirem (mas com certeza não a de exprimirem os seus direitos). As massas têm o direito de exigir a transformação das relações de propriedade; o fascismo procurava dar-lhes expressão conservando intactas aquelas relações. Consequentemente, o fascismo tende para a estetização da política». Walter Benjamin, “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica”, in A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.
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Imagens
1. Painéis de lona cobrindo casas degradadas na aldeia de Suzdal aquando da visita do Presidente Russo, Vladimir Putin. “Russian town gets fake makeover for Putin visit”. France 24, 11.12.2013.
2. Frame do filme Blazing Saddles, Mel Brooks, 1974.
3. Frame do filme Blazing Saddles, Mel Brooks, 1974.
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Pedro Levi Bismarck
Editor da Revista Punkto. Arquitecto e investigador no CEAU-FAUP.
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Nota de edição
Este artigo resulta de uma comunicação apresentada em inglês em duas mesas redondas sobre arquitecturas e intervenções temporárias: “Pop-ups: overhyped and everywhere?”, realizadas  no Porto e em Londres, no âmbito da iniciativa Battle of Ideas 2013, em Outubro. Um debate que contou com a presença de Alastair Donald, Oliver Wainwright, Austin Williams, Cany Ash, em Londres. E no Porto: Karl Sharro, Luis Tavares Pereira, Alastair Donald, Joana Varajão e Fernando Martins. Artigo igualmente publicado na Revista Dédalo #10: “Who lives next door?”.