A economia das palavras \ Pedro Levi Bismarck


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A economia das palavras
Pedro Levi Bismarck

A a(c)tividade que dá pelo nome de leitura tornou-se, após o novo acordo ortográfico, um exercício singularmente difícil. Tenho em mãos um livro publicado muito recentemente que tento ler. Este desventurado obje(c)to não segue nem o novo nem o velho acordo, mas uma espécie de meio-termo, um tempo entre a velha-língua e a novilíngua que vem. Exemplo: "acção" continua tal como estava e não "ação", tal como “percepção” ainda conserva o seu "p". Por outro lado, “exceção” apresenta-se sem "p", tal como "efetivo" é já sem "c". Um tanto ou quanto ironicamente, a língua, esta nossa língua, tornou-se o melhor exemplo do marasmo do tempo presente. Mesmo aqueles que há muito se dedicam laboriosamente à escrita deixaram de saber trabalhar com ela, deixaram de dominar os seus segredos e as suas virtudes, as suas exce(p)ções e as suas a(c)ções. E mesmo aqueles que teimam em resistir aos decretos decididos no gabinete da burocracia económica, vacilam, hesitam, sob a a(c)ção a tomar, num momento em que o maior inimigo já é o próprio dicionário do word, que não aceita qualquer variação, desvio ou resistência. Nós insistimos em corrigir, mas este, logo a seguir, imperce(p)tivelmente, volta a colocar tudo como estava. E nós, pobres, confiantes que tínhamos deixado bem explícita a nossa recusa. O mais exasperante é que parece já não haver nenhuma possibilidade de regresso, porque, por mais que se tente, começamos efe(c)tivamente a esquecer como se escrevia tal palavra. Na verdade, já todas as palavras nos parecem estranhas, incómodas até. Um pouco como aqueles amigos que conhecíamos há muito tempo, desde a infância, mas com o qual já nada temos em comum. Há uma leve cortesia, nada mais, que não consegue esconder um certo estranhamento.
A austeridade chegou assim a esta nossa língua. E este ínfimo e infame pormenor não será de descartar. Alguém fará um dia a sociografia destas pequenas afinidades e fidelidades inconscientes entre ortografia e crise económica. O verdadeiro, como sempre, parece brilhar nos pormenores mais insignificantes. Nesta economia da austeridade da língua ou língua da austeridade económica, estão todos os indícios e sinais daquilo que nos vamos tornando. Os cortes indiscriminados das letras, a pseudo-reforma estrutural da ortografia, a dívida soberana das consoantes mudas a viver acima do seu silêncio, os juros irracionais das palavras compostas, refle(c)tem como um espelho a realidade. O estranhamento das palavras é o estranhamento da realidade. E a ansiedade com que alguns ado(p)taram a nova grafia é a mesma com que ado(p)taram os novos slogans (neologismo necessário) do tempo presente. Estes, claros, passaram incólumes a qualquer austeridade: “empreendedorismo”, “exportação”, “produtividade”, palavras que não sofreram cortes, bem pelo contrário, tendem a sofrer aumentos: “empreendedorismoooo” (esta voz off paternal que nos mobiliza e chama todos os dias à hora certa), “e$portação” ou “produtividad€”.
O marasmo que se apropriou das letras é o marasmo que se apropriou da realidade. Olhamos incredulamente a flutuação dos “pp” e dos “cc” que ora aparecem ora desaparecem, da mesma maneira que vemos as flutuações da dívida nos mercados, ou a realidade aparecendo e desaparecendo nos espaços em branco do telejornal. Mas habituamo-nos lentamente. Aceitamos a rescisão dos “pp”, o corte brutal dos “cc”, a privatização dos acentos, o resgate dos neologismos, a emigração das consoantes mudas e a solidão fonética das vogais. Mesmo que todos os especialistas da língua clamem contra as injustificáveis alterações, daremos como aceite. É preciso que nos habituemos, agora é assim. E porque, afinal, a mim, o que me importa a escrita e o mundo? Temos algoritmos e casas decimais onde poderemos viver. Teremos de continuar, a bem do progresso das palavras, da língua e da produtividade interna dos brutos. E se no fim de contas aceitamos uma língua transformada por decreto, porque não havemos de aceitar uma vida definida por decreto?
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Pedro Levi Bismarck é editor da revista Punkto