Do tempo entendido enquanto duração \ Ana Bigotte Vieira



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Do tempo entendido
enquanto duração.
‘Ora bolas, há espaço,
vamos usá-lo!’
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Ana Bigotte Vieira

‘Ora bolas, há espaço, vamos usá-lo!’ foi isso mesmo: um conjunto de gente que decidiu usar durante mais de um mês o espaço da Galeria Municipal da Boavista, ao lisboeta Cais do Sodré, para se juntar, ensaiar, tocar, conversar, apresentar, resistir, partilhar.
Assim, entre 23 de Novembro e 29 de Dezembro de 2012 a Galeria Municipal da Boavista esteve aberta e à porta podia ler-se um pequeno cartaz a dizer ‘Ora bolas, há espaço, vamos usá-lo!’.
Mas pôr um espaço a uso - este espaço, o desta galeria branca de dois andares e três salas - não foi um começar, foi um continuar. Ou seja, foi à vitalidade do momento participativo e artístico da cidade de Lisboa e da sociedade portuguesa, malgrado dois anos de contestadas políticas de austeridade pós-troika, que a sua efervescência se deveu. Não estou com isto a fazer o elogio das políticas repressivas como sendo férteis para a criação artística, da falta de meios como capital no desenvolvimento das artes, ou do autoritarismo como bom por estimular a participação - de todo - mas tão somente a sublinhar que ao longo deste tempo, ali, houve coisas que puderam ter, literalmente, lugar. O espaço branco da galeria permitiu que uma série de concertos, debates, exposições, performances, projectos que se encontravam em potência (tanto de pessoas singulares como de colectivos) acontecessem ali – num lugar também situado no tempo. ‘Ora bolas’ abriu poucos dias depois da manifestação violenta de 14 de Novembro – em que a brutalidade policial se espalhou ao Cais do Sodré e à própria rua da galeria (onde pouco antes tinha tido lugar a ‘Confeitaria do Cartaz’, um atelier de construção de cartazes para levar para a manifestação).
É assim num lugar marcado pela violência destes acontecimentos recentes e pela memória que deles ficou nos corpos dos que os viveram que ‘Ora bolas, há espaço, vamos usá-lo!’ acontece. Duvido que quem quer que tenha estado entre S. Bento, Stª Catarina e o Cais do Sodré na noite de 14 de Novembro alguma vez se esqueça do fumo, das pilhas de lixo a arder, do barulho dos cassetetes, dos gritos, da fuga em bando pelo labirinto das ruas, da sensação de armadilha que passou a ensombrar as manifestações naquele lugar e, por extensão, a colina toda – sobretudo nos tempos imediatamente a seguir.
Se geograficamente situada em lugar marcado pela violência recente, esta iniciativa acabou por ironicamente coincidir no tempo com uma violência de um outro tipo, a dos concursos públicos aos apoios da DGArtes que não abriam há já dois anos (em 2012 os apoios pontuais sofreram um corte de 100%) e que subitamente abriram com um novo formato: mais burocracia, pouco tempo para a compreender, pouco tempo para a reunir - menos apoios no final. Não se estando aqui a tratar especificamente da questão dos apoios da DGArtes, tomo-os como uma violência não pelo que são (as artes dão trabalho, são caras, essenciais, requerem aprendizagem, experimentação, e devem ser apoiadas) mas por como o são, pelo modo como encenam quem tem e quem não tem, quem é e quem não é – e como nisso dividem, instaurando uma atmosfera de secretismo. Precisamente o oposto do que aconteceu em ‘Ora bolas’, onde a programação nunca esteve fechada.



Não havendo propriamente recursos financeiros para distribuir, o que se tentou foi criar uma situação de partilha/distribuição do espaço e do tempo. Uma situação em que estes elementos, o tempo e o espaço, tomados positivamente enquanto potência/excesso, se substituíram à escassez/austeridade do dinheiro e permitiram que provisoriamente se improvisasse uma economia outra, mais pequena, com outro tipo de compromissos, combinações e eventualmente (por que não?) de dívidas, também. O que tem os seus problemas, mas também pode ter as suas vantagens, se entendido como campo de experimentação e não como fatalidade.
O espaço funcionou mediante a apresentação de propostas organizadas numa ficha de inscrição igual para todos e onde não se pediu nem CV's nem descrição do eventual sucesso do trabalho. Onde, em suma, não se obrigou ninguém a convencer ninguém da sua suposta validade, antes se combinaram detalhes para tornar a partilha do espaço possível na medida das possibilidades logísticas e técnicas que se conseguisse, em conjunto, arranjar. Todas as semanas, até domingo, se recebiam então novas inscrições, compondo-se aquela que haveria de ser a programação da semana seguinte, anunciada à quarta-feira.
Sem curadores nem programadores, este foi um espaço de coexistência e de experimentação.  Foi um espaço onde gente se cruzou e se conheceu melhor, onde as áreas se misturaram, onde nasceram novos projectos, onde se experimentaram ideias antigas, onde arrancaram obras que mais tarde haveriam de ser (espera-se) levadas para outros sítios, sítios com mais meios. Onde, por um bocadinho, se trabalhou sem as pressões da excelência e do sucesso da obra e da manutenção do percurso do Criador. Onde, para fazer as coisas bastou fazer as coisas.   
E durou. Aconteceu todos os dias, o dia todo, mais de um mês. Começou timidamente na primeira semana, cresceu na segunda, resistiu ao mau tempo de Dezembro, à polarização de actividades das férias do Natal e acabou em excesso, com cinco e sete actividades no mesmo dia, quase na passagem do ano. Contou com a participação de cerca de cem artistas na apresentação de setenta projectos, sendo que quarenta e um foram de artes performativas. Num total de duzentas e dezoito apresentações, houve concertos, performances, espectáculos de teatro e dança, exposições de artes visuais, cinema, leituras, conversas, lançamentos de livros e actividades para pais e crianças. Houve ainda workshops e festas com DJs. Sem se ter feito contagem de público, pode dizer-se que o número de visitantes foi crescendo: nas últimas semanas houve muitas sessões esgotadas e vários dias em que a galeria esteve apinhada horas a fio, com público diferente a entrar e a sair à medida da sucessão dos eventos.



Houve qualquer coisa de ‘duracional’ nesta proposta, parece-me, uma certa teimosa do ficar, do não arredar pé, do ‘estamos aqui, apresenta uma proposta se te interessar’... pelo que não é, talvez, de estranhar que algumas das performances que por lá passaram consistissem também em longas improvisações duracionais, sem fim decidido a priori. Estando o espaço, desde que assim falado antes, disponível o tempo todo e não condicionado ao curso formal de um espectáculo ou de uma exposição, o final de cada evento – e essa, em minha opinião, uma das suas grandes forças – permitiu-se muitas vezes ser determinado por aquilo a que os limites da coexistência obrigassem (coexistência dos performers entre eles, ou do evento com o resto da programação), num acordo horizontal entre todos. O que de certa forma é igualmente o que está em causa em alguns dos recentes movimentos sociais, como as acampadas ou Occupy Wall Street.
Em ‘Ora bolas’ admitiu-se incluir o tempo na experiência, um tempo não prefigurado mas duracional – o tempo de um, dois, vários dias a fio, o tempo em que se pudesse ter a galeria –, o que produziu uma outra intensidade, uma outra relação com o que está e com quem está, uma outra economia do estar.
O tempo de ‘Ora bolas’ foi, em minha opinião, um tempo da duração, da imanência, da intensidade, um tempo não assim tão diferente do que muitos performers e artistas que trabalham com a duração propõem nas suas obras. Houve debates que levaram semanas, compondo-se em estratos e acumulando informação de conversa em conversa (como o ciclo ‘O Mapa Não é o do País’ onde se abordou o território da crise e das suas respostas como não circunscrito às fronteiras nacionais), ensaios abertos pontualmente à terça-feira, esculturas construídas em tempo real, actividades para criança aos domingos. Entendido enquanto duração, o tempo de ‘Ora bolas’ brincou com ritmos (pontualmente ao domingo, todas as terças...) e, englobando o acaso, sendo totalmente aberto a inscrições que chegavam todos os dias até à última semana, permitiu-se a distensão, sem nunca deixar de encerrar pontualmente por volta da meia-noite/uma da manhã, evitando o entrar pela noite e pelos ‘copos’ dentro numa base regular, bares já ali ao lado.



Companheiros conhecidos de quem trabalha com performance, o tempo e a intensidade são materiais (decidiu-se “fechar em alta”, não deixar “morrer"), e se há actividades no dia seguinte a galeria tem de estar limpa. O tempo é elástico, compreende as tarefas domésticas da manutenção do espaço (não as relega para outra esfera) e, mais importante, pode ser combinado. O facto de não haver um palco determinado nem um médium - cinema, teatro, dança, música, literatura, artes plásticas –privilegiado obrigou a uma coexistência tão frutífera quanto por vezes caótica. Os vários espaços da galeria estavam muitas vezes ocupados ao mesmo tempo cruzando-se o seu som, os seus públicos e, à porta, os seus diferentes tipos de ‘cenas’.
A violência deste cruzamento fruto de uma abertura total, e a força da sua duração longa, quase absurda (todos os dias, a qualquer hora, ao longo de mais de um mês), foram talvez, na minha opinião, as principais razões de ser de ‘Ora bolas’.
Um ‘Ora bolas’ que, falando no plural e pondo a tónica no uso e na potência (há espaço, vamos usá-lo!’) e não na singularidade sacralizada do autor e da obra, como tantas vezes acontece no meio artístico, por umas semanas atirou ao ar crise, os braços parados, o desânimo, a competitividade, a cidade de Lisboa a cair podre de velha, os discursos da emigração e do desemprego, os espaços abandonados, a falta de jeito, a paranoia da visibilidade, os rankings, a auto promoção, os grupinhos lisboetas, as burocracias infernais dos apoios às artes, a arte formalista, a política que não se vê a si mesma como estética e como ética, os políticos que se orgulham em não saber de arte e os artistas  que se orgulham em não saber de política, a carga policial de 14 de Novembro e as que hão-de vir.  
É que os tempos que vivemos têm tudo a ver com potência, coexistência e duração entendidos enquanto processo e não como coisas dadas à partida. Justamente o que ali estava em causa, ora bolas!
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Ana Bigotte Vieira Doutoranda em Estudos Artísticos, Visiting Scholar na NYU-TISCH entre 2009 e 2012. Estudou História Moderna e Contemporânea no ISCTE. Pós-graduação em Ciências da Comunicação: “Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias” (UNL-FCSH). Dramaturgista e investigadora, trabalhou com Gonçalo Amorim, Miguel Castro Caldas e Bruno Bravo, Manuel Henriques, Raquel Castro e Mariana Tengner Barros, Traduziu Mark Ravenhill, Annibale Ruccello, Spiro Scimone, Pirandello e Giorgio Agamben. Integra o grupo de Teoria e Estética das Artes Performativas do CET (FLUL). Em 2010, recebeu o Dwight Conquergood registration Award na PSi conference #17, Utrecht. É co-curadora de Baldio.
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links
http://baldiohabitado.wordpress.com/

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imagens:  Max Rosenheim

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* uma versão deste texto está publicada na edição portuguesa do jornal Le Monde Diplomatique (Agosto 2013).