OS OUTROS. OS ESPAÇOS DA DEMOCRACIA

PASSAGENS EM TORNO DA PRAÇA DO MOINHO DE VENTO

- Praça do Moinho de Vento, Porto - 

A Praça do Moinho de Vento no centro do Porto é uma espécie de «laboratório», não de experimentação ou de investigação de práticas urbanas e de concretização de espaço público, mas de inoperância, de ineficácia e de incapacidade de pensar o espaço urbano como algo mais do que uma simples matriz programática. Esta pequena praça no centro do Porto é exemplo não apenas da incúria e do desinteresse na manutenção do espaço público da cidade, mas também, da incapacidade tanto dos poderes públicos como dos próprios agentes criativos, em pensar o espaço urbano de um modo muito mais dinâmico. Este não se faz apenas de passeios, pavimentos, rua, depósitos de lixo, às vezes um banco ou umas árvores; mas sim pela qualidade das relações urbanas que provoca e permite, pela qualidade de atracção e pela qualidade de «segurar» e albergar uma vivência urbana variada. O espaço público não é apenas de qualidade pelo «preço» dos materiais ou pelo seu refinamento estético, ele pode ser tudo isso, mas é-o, sobretudo, pela capacidade que tem de ligar e «segurar» as pessoas, de as captar e de as relacionar com a cidade que habitam. Não é apenas uma questão de imagem urbana, é uma questão de quotidiano, de serviço público, de qualidade de vida, cuja desvalorização, apesar de todos os discursos de reabilitação, se acentua todos os dias nas nossas cidades. Não há processo de reabilitação possível, não há cidade possível, sem espaços para o público, espaços para estar, para demorar. Espaços com programas diversos que potenciem a diversidade comunicativa e participativa da cidade na sociedade.  

Nas cidades gregas da antiguidade, o centro da democracia era o espaço público. A «agora» não abrigava apenas um espaço vazio e aberto, mas uma variedade tipológica impressionante: as «stoas», o «bouleterion», o «strategeion», o «perístilo» e a «pnyx» (a assembleia popular). Todos tinham funções específicas do ponto de vista das relações de participação e comunicação que instituíam e permitiam. A «stoa», particularmente, como explica Richard Sennett[1], é de todos esses espaços, um dos mais interessantes por se situar precisamente na «margem multi-funcional» da «agora» onde a comunidade se reunia de um modo informal, através da simples coexistência. Como explica Alejandro Zaera Polo[2], para Richard Sennett é precisamente a posição marginal da «stoa» na estrutura da «agora», que a transformava num espaço de discussão democrática, para além da centralidade da retórica política, permitindo a produção de formas políticas conduzidas através da diferença e não a partir da «indiferença» ou da «submissão». A «stoa» era assim o limite-limiar, que na margem da centralidade panóptica da «agora» permitia a co-existência informal sem re-pressão, no encontro-limite entre o privado e o público.

Hoje que a palavra se oculta cada vez mais por detrás da superfície mediática do espectáculo, também o espaço público se oculta por detrás dos efeitos mediáticos das arquitecturas contemporâneas, muito mais interessadas na sedução e no «imediaticismo místico» das imagens e dos objectos, do que na discussão e na problematização do espaço urbano e quotidiano.  Para Sennett o factor essencial que faz da «stoa» um espaço democrático, isto é, aberto, disponível, livre e participativo, face a outros como a «pnyx» é essa posição de igualdade, de não diferenciação entre um palco e uma plateia, isto é, entre um orador e uma assistência. Não há centro, não há submissão, o espaço constrói-se na liberdade das relações que se estabelecem e não são condicionadas a priori por efeitos de obediência política. Isto é, não há um ponto de observação central que domine e centralize o espaço. Se antes era a palavra que estava no centro da retórica política de submissão e controle, e o palco da «pnyx», como escreve Sennet, o púlpito por excelência desse domínio. Hoje, o púlpito desse domínio agora dissimulado é o jogo de efeitos sedutórios produzido em torno desses grandes edifícios mediáticos, que não fazem mais que trabalhar ao nível de uma pretensa imagem pública da arquitectura, ocultando e operando uma pobreza generalizada das relações espaciais que se estabelecem e se articulam no centro da vida urbana e democrática.

-  Projecto para a Praça de Lisboa, Balonas Arquitectos, Porto, 2007 - 

A imagem-espectáculo desses edifícios que dominam e centralizam hoje o espaço público não é mais que uma retórica política da sedução já não através da palavra, mas através da forma. Uma espécie de striptease arquitectónico disléxico, que quanto mais se desnuda mais reduz a arquitectura à mera recepção estética e à condição de produto e mercadoria, ou como explica Giorgio Agamben, à condição de «fetiche», isto é como presença de uma derradeira ausência que nunca se poderá afinal possuir. O espaço da «stoa» é democrático porque não há um ponto de sedução dominante e dominável, o espaço arquitectónico não é convergente, mas divergente, não cria um espectador/orador, mas habitantes/habitantes, potenciando relações de comunicação e participação entre a vida privada e a vida pública nunca super-impositivas, mas expositivas, diferenciáveis. Simultaneamente a «stoa» abre-se em direcção à cidade, à sua paisagem, à sua diversidade, à sua complexidade urbana, política e cultural. Nessa longa história entre a arquitectura e a cidade, poderemos assim perceber esse movimento de protesto que se elevou em Paris no ano de 1889, e que contou com personalidades tão diversas como Zola, Meissonier, Maupassant e Bonnat. Como relata Giorgio Agamben: «Provavelmente haviam intuído o que hoje o feito cumprido nos impede de perceber, a saber, que a torre [Eiffel] (para além de dar o tiro de graça ao carácter labiríntico da velha Paris ao oferecer um ponto de referência visível desde qualquer parte) transformava a cidade inteira numa mercadoria consumível de um relance. A mercadoria mais preciosa exibida na exposição de 1889 era a própria cidade»[3].

Entre a pobreza espacial e arquitectónica da Praça de Moinho de Vento e esses grandes projectos mediáticos vai uma grande diferença, mas em ambos se reflecte a incapacidade de problematizar o espaço urbano e público como um agente democrático essencial de participação na vida. Mas também se reflecte a incapacidade da própria arquitectura em pensar a sua acção para além das condições de visibilidade dos objectos que produz, privilegiando um jogo formal de efeitos e ignorando a problematização crítica dos espaços onde intervém. E por isso é também cada vez mais limitada a sua acção e intervenção no espaço real do território. A extrema pressão dos mercados económicos, a profusão absurda legislativa, os processos pedagógicos massificados, não têm senão retirado poder e espaço de manobra aos arquitectos, que vêm a sua acção definida cada vez mais, não por processos e práticas próprios da sua disciplina, mas por contingências legislativas e economicistas impostas por outros – leia-se burocratas. Um processo que apesar de lento e progressivo, mas devorador, tem suscitado apenas e curiosamente alguns pequenos reparos, e que demonstra essa falta de visibilidade, mas também de reconhecimento da importância da arquitectura como disciplina social, cultural e artística. A retirada maciça da arquitectura em direcção às imagens e ao jogo de efeitos fetichistas não é suficiente e só tem reduzido o poder e a sua capacidade de intervenção no real, sendo acima de tudo necessário assumir a capacidade problematizante da arquitectura no contexto político-cultural, e a cidade e o espaço urbano como um território por excelência dessa experimentação.


Hoje que todos os dias se fala tanto de democracia e da qualidade da participação democrática, ainda não conseguimos assumir a importância e a necessidade de colocar o espaço arquitectónico e a própria arquitectura no centro dessa discussão. Talvez um dia nos possamos aperceber que a pobreza da nossa democracia é também a pobreza dos nossos espaços (urbanos e arquitectónicos): a ausência de lugares dedicados a inter-acção e à comunicação, a ausência de espaços e de projectos abertos à participação comum em objectivos comuns, que é isso que faz a cidade e a democracia. E se queremos um exemplo do estado da democracia: ele está ai, nesta pequena praça mesmo no centro do Porto.

Pedro Levi Bismarck


[1] Richard Sennet, Democratic Spaces. Conferência no Berlage Institute em 3 de Março de 2004.
[2] Alejandro Zaera Polo, The Politics of the Envelope, Volume 17 Content Management, 2008.
[3] Giorgio Agamben, Estâncias, Pre-textos, Madrid 2006.