1.
Foi publicada em português, no final do ano passado, uma inédita recolha de
poemas de Primo Levi, sob o título A uma hora incerta (Edições do
Saguão, Dezembro 2024). O momento não podia ter sido mais oportuno, porque se
conhecemos bem o Primo Levi que testemunhou a «verdade» do Holocausto,
conhecemos menos o Primo Levi que nunca deixou de testemunhar a «verdade» sobre
Israel. É justamente essa distância de Levi relativamente a Israel aquilo que o
posfácio deste livro, escrito pelo editor e tradutor Rui Miguel Ribeiro, nos dá
a ver com tanta clareza.
2.
Nos últimos dois anos, a ofensiva de Israel em Gaza matou pelo menos — porque
os números podem ser bastante maiores — 67 mil palestinianos, entre os quais 20
mil eram crianças. Se Gaza é hoje um campo de concentração, o maior jamais
construído, não é apenas porque este é um espaço onde os palestinianos estão
reduzidos à condição de prisioneiros de Estado, mas porque tal como Auschwitz,
também Gaza existe com o único propósito de concentrar uma população de
mais de dois milhões de habitantes que foi condenada à possibilidade da sua
não-existência. O extermínio absoluto não é o início, mas apenas o fim de um
genocídio. Tudo isto ocorreu sob o olhar complacente de um Ocidente que foi
rápido a invocar a defesa intransigente dos mais altos «valores europeus» e do
direito internacional aquando da invasão da Ucrânia, mas que permanece em
silêncio perante Gaza.
3.
O tempo da história é sempre maior que o tempo da memória: e essa é a especificidade, talvez a mais
insidiosa, de um genocídio que ocorre na longue durée do tempo histórico
há quase oitenta anos. A história de Israel foi, desde o início, um processo
violento, meticuloso e sistemático de «limpeza étnica» e de constituição de um
«espaço étnico puro», como escreve Ilan Pappe em A Limpeza Étnica da
Palestina. O evento fundador do Estado de Israel (1948), a que os
palestinianos chamam a Nakba («Catástrofe»), assentou na expulsão de
mais de metade da população autóctone da Palestina (800 mil palestinianos), na
destruição de metade das suas aldeias e cidades e num conjunto indeterminado de
massacres como o de Deir Yassin. Qualquer discussão sobre Israel terá de
começar por aqui: a Shoah (Holocausto) e a Nakba (Catástrofe) não
conservam apenas uma problemática proximidade histórica, mas política e metafísica.
4.
O escândalo não está em assinalar uma continuidade entre nazismo e
sionismo, está no modo como Israel se apropriou do princípio da representação
mítica — que o nazismo tinha já levado às últimas consequências — para forjar a
unidade nacional, étnica, territorial e, definitivamente, moral de um povo
reinventado como Nação. Não se trata apenas dos mitologemas mobilizados pelo
sionismo para legitimar a ocupação — o «povo do exílio», a «Terra de Israel», o
ethnos eterno de um povo-raça judaico, que historiadores como Shlomo
Sand têm vindo pacientemente a desmontar —, mas de compreender como Israel se
auto-instituiu numa dimensão propriamente e exclusivamente mítica: um
Estado-mito que não só se realizou através da potência fundadora do
mito, mas que se apresenta como a realização de si mesmo enquanto mito. Ao
fazer isto, Israel não se limitou a conceber uma nação apartheid exclusiva
para judeus, converteu o Estado num dispositivo messiânico de redenção de todo
um povo. E quando a política seculariza e é absorvida pelo messianismo só há um
destino possível: a catástrofe. Foi essa, aliás, a lição histórica do nazismo. Se
este último, seguindo Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy (O Mito Nazi),
fez do ariano o mito capaz de realizar o destino da nação alemã, isto é, nacionalizou
a raça, Israel fez do judaísmo um mito de Estado, nacionalizando a
crença, nacionalizando Deus, como refere Shlomo Sand, de forma a garantir a
unidade indissociável entre povo, terra e Estado-Nação. Neste processo — e de
forma tão paradoxal — o sionismo fez exactamente o mesmo que o nazismo já tinha
feito ao «judeu»: converteu o árabe-palestiniano no «Outro», na figura que
coloca em causa a realização do mito e que, por isso mesmo, ameaça o corpo
místico da nação e tem de ser expulso ou exterminado.
5.
Num texto recente, Giorgio Agamben sintetizava: Israel significa o fim do
judaísmo. É que a realização terrena do fim do exílio na forma profana de
um Estado-nação contradiz absolutamente o judaísmo enquanto forma de existir em
diáspora (Galut). Israel nunca foi para o judaísmo um lugar geográfico, muito
menos um lugar-nação ao qual era preciso regressar, mas um lugar espiritual e
alegórico. Existir sobre a Terra é existir em exílio, seja em Jerusalém ou em
Berlim. Neste sentido, como refere Shlomo Sand, a Torá é inequivocamente
«anti-sionista». Para além disso, a ideia de um regresso a Israel foi sempre
vista com grande desconfiança pelas comunidades judaicas, mesmo depois da Shoah.
6.
Se o mitologema da «Terra de Israel» forneceu ao sionismo a reivindicação de um
direito histórico-divino de propriedade sobre a Palestina («a terra sem povo»),
por outro lado, o mitologema do exílio e de uma fuga em massa dos judeus
durante o Império Romano, tal como aparece solenemente escrito da Declaração da
Independência, permitiu ao sionismo completar o axioma do Mito de Israel, afirmando
a narrativa de um povo sem terra intrinsecamente dotado de uma unidade
étnica originária (um povo-raça) e um destino histórico comum a ser realizado
na figura do Estado-nação. Mas se isto foi necessário é porque o problema que
atravessa Israel desde a sua origem não foi apenas o de legitimar a ocupação
colonial, mas o de constituir a unidade de uma identidade histórica comum que
era, na verdade, inexistente — porque as várias comunidades judaicas eram
historicamente e culturalmente muito distintas. Assim, na relação nacionalizada
entre povo e terra foi sempre o povo aquilo que Israel
nunca conseguiu pressupor e se viu obrigado a inventar — o próprio hebreu
moderno foi uma língua inteiramente inventada.
7.
É esta a aporia constituinte do Estado de Israel: no impulso laico — e até
socialista — da sua fundação o único elemento capaz de garantir uma identidade
individual e colectiva nacional mínima só podia ser a religião. Mas ao fazer do
judaísmo a força de identificação do povo no seu Estado, isto é, ao nacionalizar
Deus, foi o próprio Estado-nação que foi deificado, constituindo um
espaço indiscernível em que tudo aquilo que é civil se torna religioso e
vice-versa. O colono israelense que exorta com exasperada obsessão e deleite
que as IDF aniquilem a população de Gaza, é o sujeito que exprime a condição
daquele que fez da sua crença não o judaísmo, mas a própria nação: a realização
do mito de Israel. E, no entanto, ele é também a mais fiel representação de um
sujeito que na terra vazia da sua própria ausência de história ficou
condenado a encontrar no messianismo nacionalizado de Israel a única garantia
de possuir uma identidade diante de um território que permanece, mesmo
assim e para si próprio, irremediavelmente estranho. Neste sentido, pode-se
dizer que o colono israelense exprime tout court a figura daquele que
levou tão longe a lógica exclusionária do «Outro» que se tornou outro-para-si,
estranho-para-si-mesmo.
8.
Ora, o Estado de Israel representa certamente um paradoxo para o judaísmo, mas também
para a política ocidental no seu todo: primeiro, porque a solução encontrada
para resolver o estatuto político dos judeus foi exactamente a mesma que
desencadeou a judeofobia moderna, isto é, o nacionalismo, a forma-Nação; segundo,
porque ao recusar a incorporação dos judeus nos Estados nacionais, mesmo depois
do Holocausto, aquilo que a solução «Israel» tornou claro é que a democracia
ocidental jamais foi capaz de ser fiel aos seus princípios de uma cidadania
abstracta e universal, para cair nas representações míticas da identidade étnico-cultural
de um povo-nação. Era esse,
precisamente, o perigo que o judeu — sem raça, sem solo, sem Estado — representava
para a política ocidental, um homem libertado dos mitos, nas palavras de
Maurice Blanchot, que perturbava a totalidade desse dispositivo fusional de
um povo auto-sonhado na verdade destinada de uma nação. Quando Primo Levi escreve
«sinto-me um Centauro. Porque sou duplo, híbrido, bífido. Sou italiano e sou
judeu», ele exprime bem a potência daquele que, enquanto judeu, escapava a esse
regime político que encontrava a sua raison d’être no ficcionamento permanente
das identidades individuais e colectivas.
9.
Neste sentido, aquilo que a concretização
de um Estado judaico permitiu não foi tanto oferecer aos judeus a solução
pragmática de um Estado, mas a necessidade de os incorporar na lógica política
da identificação Povo-Terra-Nação da qual estavam excluídos. Em suma, dar-lhes
aquilo que não tinham: um mito. E é precisamente a consumação absoluta dessa
lógica aquilo que que Israel irá levar até às últimas consequências: quer na
fabricação permanente da sua história como mito a realizar, quer na apropriação
— que é,
simultaneamente, a negação —
da propriedade (e) da cultura palestiniana. Se o palestiniano tem de ser
exterminado não é apenas porque ele é o elemento histórico que põe em causa a
«verdade» do mito de Israel — já
os primeiros colonos designavam o palestiniano como shela neelama («questão
oculta) — mas porque é este quem de facto possui a unidade histórica
da identificação entre terra e povo que Israel apenas pode realizar na forma do
mito.
10.
Ora, Israel é hoje, podemos dizê-lo, a shela neelama do Ocidente: a
questão oculta. No entanto, o silêncio cúmplice deste não se deve a nenhum
sentimento de culpa relativamente à
tragédia da Shoah, mas ao facto de em Israel os sonhos da razão
ocidental, forjados ao longo de séculos de domínio colonial, terem produzido
monstros demasiado terríveis. Se Israel é a exposição violenta do sentido
catastrófico das mobilizações totais nacionais — o trágico destino de
uma comunidade paranoicamente encerrada no êxtase da defesa auto-aniquiladora de
si —, ele é, igualmente, o fiel depositário de um projecto filosófico ocidental
imperialista e racista, que,
sob a bandeira humanista, racional e universal, de uma mission civilisatrice,
ocultou e descartou todos os outros povos reduzidos à condição de «bestas» que era
preciso «exterminar» em nome do progresso espiritual e material da Humanidade. Edward
Said deixou isso bem claro: foi sempre a representação ocidental do árabe como «inferior»,
«ignóbil» e, até, «improdutivo», que legitimou toda a violência e legitima, ainda
hoje, a indiferença perante o genocídio em Gaza. É essa ficção imperial de uma
superioridade moral e técnica de um «Ocidente» civilizado que alimenta todo o
racismo e fez da sua política uma política de morte. Não é o humanismo que
define a história do Ocidente: é o extermínio.
11.
Em 1940, as palavras de Joseph Weitz, director do Jewish National Land Fund, não
deixavam margem para qualquer dúvida:
«Deve ser claro que não há espaço para ambos os povos neste
país […]. Até agora, o empreendimento sionista, de forma a preparar o terreno e
abrir caminho para a criação de um Estado Hebreu na terra de Israel, tem estado
a correr bem e pode continuar com a «compra de terras» — mas isto não
concretizará o Estado de Israel; isto deve acontecer ao mesmo tempo, na forma
de uma Salvação (este é o segredo da ideia Messiânica); e não há outro caminho
a não ser a transferência dos Árabes daqui para os países vizinhos,
transferi-los todos; excepto talvez os de Belém, Nazaré e da Cidade Velha de
Jerusalém, não devemos deixar uma única vila, uma única tribo».
Nenhum exercício de hermenêutica é
necessário: é todo um programa e um pogrom que enuncia de forma clara
aquele era e que é, para os sionistas, o único destino possível dos habitantes
da Palestina. Mas é também a formulação evidente dos três eixos que marcam a
fundação do Estado de Israel: o principio da racionalidade
administrativo-colonial do Estado moderno («compra de terras», «transferi-los
todos»), o princípio racista de uma comunidade-nação etno-biológica sobre-humanizada
(«não há espaço para ambos os povos neste país»), e, por fim, o princípio de
nacionalização do messianismo, capaz de salvaguardar a unidade existencial do
Estado, mas também de se apropriar do movimento da própria História («a Salvação»).
12.
Primo Levi não foi convocado para esta reflexão por uma necessidade de autoridade
moral, mas por fidelidade, isto é, para recordar que o seu testemunho nunca
teve a ver com memória, mas com destino, com o reconhecimento de
uma tarefa por cumprir. Escrevia algures Jacques Derrida que a «herança nunca é
um dado, é sempre uma tarefa». O testemunho de Levi não é apenas sobre o
Holocausto, nem apenas sobre Israel: é sobre o genocídio em Gaza. É um
testemunho incansável contra a indiferença e contra o fascismo — contra o qual lutou toda a sua vida.
Enfim, é um testemunho contra o cinismo daqueles que falam dos grandes e
universais «valores europeus», mas fecham os olhos ao extermínio em massa dos
palestinianos, chegando ao cúmulo de convidar Benjamin Netanyahu — que tem
pendente sobre si um mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional
— para participar na cerimónia dos oitenta anos da libertação de Auschwitz.
Ora, a relação de Levi com Israel foi-se
tornando cada vez mais difícil ao longo dos anos: denunciou o seu militarismo nacionalista e
religioso e a permanente instrumentalização do Holocausto. Em 1982, Levi é muito
claro: «nunca fui sionista e não o sou actualmente. Discordo das reivindicações
sionistas e das acções actuais do governo israelita». E numa outra entrevista, no
mesmo ano, intitulada «Se questo è un stato», defende mesmo a urgência
de «deslocar» o «centro de gravidade do judaísmo (…) para fora de Israel». Palavras,
sem dúvida, premonitórias diante do actual exercício retórico vergonhoso que
não só converte toda a crítica ao sionismo em anti-semitismo como chega ao
ponto de justificar o genocídio em nome do Holocausto. Escrevia Agamben,
como vimos, que «o Judaísmo, que não tinha morrido em Auschwitz, talvez conheça
hoje o seu fim». O mesmo poderia ser dito sobre Primo Levi: sobreviveu a
Auschwitz, mas talvez não tenha sobrevivido a Israel.
•
Pedro Levi Bismarck
Editor do jornal Punkto, investigador,
crítico e ensaísta, publicou o livro O Mito de Israel. O Ocidente, a Política,
a Morte (Documenta, 2025).
Imagem
Uma criança caminha sobre as ruínas
de uma casa (a sua?) em Hebron, 1989. Fotografia de Joss Dray, via The Palestinian Museum Digital Archive.
Nota da edição
Este artigo é uma versão ampliada
e revista do artigo com o mesmo título publicado no jornal Público em Junho de 2025. É agora publicado no Punkto a
propósito do lançamento do livro O Mito de Israel. O Ocidente, a Política, a Morte,
publicado em Setembro de 2025, pela Documenta.
Ficha técnica
Gaza, depois de Auschwitz • Pedro Levi Bismarck
Data de publicação • 09.12.2025
Edição #44 • Verão — Outono 2025


