Gaza, depois de Auschwitz • Pedro Levi Bismarck




1. Foi publicada em português, no final do ano passado, uma inédita recolha de poemas de Primo Levi, sob o título A uma hora incerta (Edições do Saguão, Dezembro 2024). O momento não podia ter sido mais oportuno, porque se conhecemos bem o Primo Levi que testemunhou a «verdade» do Holocausto, conhecemos menos o Primo Levi que nunca deixou de testemunhar a «verdade» sobre Israel. É justamente essa distância de Levi relativamente a Israel aquilo que o posfácio deste livro, escrito pelo editor e tradutor Rui Miguel Ribeiro, nos dá a ver com tanta clareza.

2. Nos últimos dois anos, a ofensiva de Israel em Gaza matou pelo menos — porque os números podem ser bastante maiores — 67 mil palestinianos, entre os quais 20 mil eram crianças. Se Gaza é hoje um campo de concentração, o maior jamais construído, não é apenas porque este é um espaço onde os palestinianos estão reduzidos à condição de prisioneiros de Estado, mas porque tal como Auschwitz, também Gaza existe com o único propósito de concentrar uma população de mais de dois milhões de habitantes que foi condenada à possibilidade da sua não-existência. O extermínio absoluto não é o início, mas apenas o fim de um genocídio. Tudo isto ocorreu sob o olhar complacente de um Ocidente que foi rápido a invocar a defesa intransigente dos mais altos «valores europeus» e do direito internacional aquando da invasão da Ucrânia, mas que permanece em silêncio perante Gaza.

3. O tempo da história é sempre maior que o tempo da memória:  e essa é a especificidade, talvez a mais insidiosa, de um genocídio que ocorre na longue durée do tempo histórico há quase oitenta anos. A história de Israel foi, desde o início, um processo violento, meticuloso e sistemático de «limpeza étnica» e de constituição de um «espaço étnico puro», como escreve Ilan Pappe em A Limpeza Étnica da Palestina. O evento fundador do Estado de Israel (1948), a que os palestinianos chamam a Nakba («Catástrofe»), assentou na expulsão de mais de metade da população autóctone da Palestina (800 mil palestinianos), na destruição de metade das suas aldeias e cidades e num conjunto indeterminado de massacres como o de Deir Yassin. Qualquer discussão sobre Israel terá de começar por aqui: a Shoah (Holocausto) e a Nakba (Catástrofe) não conservam apenas uma problemática proximidade histórica, mas política e metafísica.

4. O escândalo não está em assinalar uma continuidade entre nazismo e sionismo, está no modo como Israel se apropriou do princípio da representação mítica — que o nazismo tinha já levado às últimas consequências — para forjar a unidade nacional, étnica, territorial e, definitivamente, moral de um povo reinventado como Nação. Não se trata apenas dos mitologemas mobilizados pelo sionismo para legitimar a ocupação — o «povo do exílio», a «Terra de Israel», o ethnos eterno de um povo-raça judaico, que historiadores como Shlomo Sand têm vindo pacientemente a desmontar —, mas de compreender como Israel se auto-instituiu numa dimensão propriamente e exclusivamente mítica: um Estado-mito que não só se realizou através da potência fundadora do mito, mas que se apresenta como a realização de si mesmo enquanto mito. Ao fazer isto, Israel não se limitou a conceber uma nação apartheid exclusiva para judeus, converteu o Estado num dispositivo messiânico de redenção de todo um povo. E quando a política seculariza e é absorvida pelo messianismo só há um destino possível: a catástrofe. Foi essa, aliás, a lição histórica do nazismo. Se este último, seguindo Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy (O Mito Nazi), fez do ariano o mito capaz de realizar o destino da nação alemã, isto é, nacionalizou a raça, Israel fez do judaísmo um mito de Estado, nacionalizando a crença, nacionalizando Deus, como refere Shlomo Sand, de forma a garantir a unidade indissociável entre povo, terra e Estado-Nação. Neste processo — e de forma tão paradoxal — o sionismo fez exactamente o mesmo que o nazismo já tinha feito ao «judeu»: converteu o árabe-palestiniano no «Outro», na figura que coloca em causa a realização do mito e que, por isso mesmo, ameaça o corpo místico da nação e tem de ser expulso ou exterminado.

5. Num texto recente, Giorgio Agamben sintetizava: Israel significa o fim do judaísmo. É que a realização terrena do fim do exílio na forma profana de um Estado-nação contradiz absolutamente o judaísmo enquanto forma de existir em diáspora (Galut). Israel nunca foi para o judaísmo um lugar geográfico, muito menos um lugar-nação ao qual era preciso regressar, mas um lugar espiritual e alegórico. Existir sobre a Terra é existir em exílio, seja em Jerusalém ou em Berlim. Neste sentido, como refere Shlomo Sand, a Torá é inequivocamente «anti-sionista». Para além disso, a ideia de um regresso a Israel foi sempre vista com grande desconfiança pelas comunidades judaicas, mesmo depois da Shoah.

6. Se o mitologema da «Terra de Israel» forneceu ao sionismo a reivindicação de um direito histórico-divino de propriedade sobre a Palestina («a terra sem povo»), por outro lado, o mitologema do exílio e de uma fuga em massa dos judeus durante o Império Romano, tal como aparece solenemente escrito da Declaração da Independência, permitiu ao sionismo completar o axioma do Mito de Israel, afirmando a narrativa de um povo sem terra intrinsecamente dotado de uma unidade étnica originária (um povo-raça) e um destino histórico comum a ser realizado na figura do Estado-nação. Mas se isto foi necessário é porque o problema que atravessa Israel desde a sua origem não foi apenas o de legitimar a ocupação colonial, mas o de constituir a unidade de uma identidade histórica comum que era, na verdade, inexistente — porque as várias comunidades judaicas eram historicamente e culturalmente muito distintas. Assim, na relação nacionalizada entre povo e terra foi sempre o povo aquilo que Israel nunca conseguiu pressupor e se viu obrigado a inventar — o próprio hebreu moderno foi uma língua inteiramente inventada.

7. É esta a aporia constituinte do Estado de Israel: no impulso laico — e até socialista — da sua fundação o único elemento capaz de garantir uma identidade individual e colectiva nacional mínima só podia ser a religião. Mas ao fazer do judaísmo a força de identificação do povo no seu Estado, isto é, ao nacionalizar Deus, foi o próprio Estado-nação que foi deificado, constituindo um espaço indiscernível em que tudo aquilo que é civil se torna religioso e vice-versa. O colono israelense que exorta com exasperada obsessão e deleite que as IDF aniquilem a população de Gaza, é o sujeito que exprime a condição daquele que fez da sua crença não o judaísmo, mas a própria nação: a realização do mito de Israel. E, no entanto, ele é também a mais fiel representação de um sujeito que na terra vazia da sua própria ausência de história ficou condenado a encontrar no messianismo nacionalizado de Israel a única garantia de possuir uma identidade diante de um território que permanece, mesmo assim e para si próprio, irremediavelmente estranho. Neste sentido, pode-se dizer que o colono israelense exprime tout court a figura daquele que levou tão longe a lógica exclusionária do «Outro» que se tornou outro-para-si, estranho-para-si-mesmo.

8. Ora, o Estado de Israel representa certamente um paradoxo para o judaísmo, mas também para a política ocidental no seu todo: primeiro, porque a solução encontrada para resolver o estatuto político dos judeus foi exactamente a mesma que desencadeou a judeofobia moderna, isto é, o nacionalismo, a forma-Nação; segundo, porque ao recusar a incorporação dos judeus nos Estados nacionais, mesmo depois do Holocausto, aquilo que a solução «Israel» tornou claro é que a democracia ocidental jamais foi capaz de ser fiel aos seus princípios de uma cidadania abstracta e universal, para cair nas representações míticas da identidade étnico-cultural de um povo-nação. Era esse, precisamente, o perigo que o judeu — sem raça, sem solo, sem Estado — representava para a política ocidental, um homem libertado dos mitos, nas palavras de Maurice Blanchot, que perturbava a totalidade desse dispositivo fusional de um povo auto-sonhado na verdade destinada de uma nação. Quando Primo Levi escreve «sinto-me um Centauro. Porque sou duplo, híbrido, bífido. Sou italiano e sou judeu», ele exprime bem a potência daquele que, enquanto judeu, escapava a esse regime político que encontrava a sua raison d’être no ficcionamento permanente das identidades individuais e colectivas.

9. Neste sentido, aquilo que  a concretização de um Estado judaico permitiu não foi tanto oferecer aos judeus a solução pragmática de um Estado, mas a necessidade de os incorporar na lógica política da identificação Povo-Terra-Nação da qual estavam excluídos. Em suma, dar-lhes aquilo que não tinham: um mito. E é precisamente a consumação absoluta dessa lógica aquilo que que Israel irá levar até às últimas consequências: quer na fabricação permanente da sua história como mito a realizar, quer na apropriação que é, simultaneamente, a negação da propriedade (e) da cultura palestiniana. Se o palestiniano tem de ser exterminado não é apenas porque ele é o elemento histórico que põe em causa a «verdade» do mito de Israel — já os primeiros colonos designavam o palestiniano como shela neelama («questão oculta) — mas porque é este quem de facto possui a unidade histórica da identificação entre terra e povo que Israel apenas pode realizar na forma do mito.

10. Ora, Israel é hoje, podemos dizê-lo, a shela neelama do Ocidente: a questão oculta. No entanto, o silêncio cúmplice deste não se deve a nenhum sentimento de culpa relativamente à tragédia da Shoah, mas ao facto de em Israel os sonhos da razão ocidental, forjados ao longo de séculos de domínio colonial, terem produzido monstros demasiado terríveis. Se Israel é a exposição violenta do sentido catastrófico das mobilizações totais nacionais — o trágico destino de uma comunidade paranoicamente encerrada no êxtase da defesa auto-aniquiladora de si —, ele é, igualmente, o fiel depositário de um projecto filosófico ocidental imperialista e racista, que, sob a bandeira humanista, racional e universal, de uma mission civilisatrice, ocultou e descartou todos os outros povos reduzidos à condição de «bestas» que era preciso «exterminar» em nome do progresso espiritual e material da Humanidade. Edward Said deixou isso bem claro: foi sempre a representação ocidental do árabe como «inferior», «ignóbil» e, até, «improdutivo», que legitimou toda a violência e legitima, ainda hoje, a indiferença perante o genocídio em Gaza. É essa ficção imperial de uma superioridade moral e técnica de um «Ocidente» civilizado que alimenta todo o racismo e fez da sua política uma política de morte. Não é o humanismo que define a história do Ocidente: é o extermínio.

11. Em 1940, as palavras de Joseph Weitz, director do Jewish National Land Fund, não deixavam margem para qualquer dúvida:

«Deve ser claro que não há espaço para ambos os povos neste país […]. Até agora, o empreendimento sionista, de forma a preparar o terreno e abrir caminho para a criação de um Estado Hebreu na terra de Israel, tem estado a correr bem e pode continuar com a «compra de terras» — mas isto não concretizará o Estado de Israel; isto deve acontecer ao mesmo tempo, na forma de uma Salvação (este é o segredo da ideia Messiânica); e não há outro caminho a não ser a transferência dos Árabes daqui para os países vizinhos, transferi-los todos; excepto talvez os de Belém, Nazaré e da Cidade Velha de Jerusalém, não devemos deixar uma única vila, uma única tribo».

Nenhum exercício de hermenêutica é necessário: é todo um programa e um pogrom que enuncia de forma clara aquele era e que é, para os sionistas, o único destino possível dos habitantes da Palestina. Mas é também a formulação evidente dos três eixos que marcam a fundação do Estado de Israel: o principio da racionalidade administrativo-colonial do Estado moderno («compra de terras», «transferi-los todos»), o princípio racista de uma comunidade-nação etno-biológica sobre-humanizada («não há espaço para ambos os povos neste país»), e, por fim, o princípio de nacionalização do messianismo, capaz de salvaguardar a unidade existencial do Estado, mas também de se apropriar do movimento da própria História («a Salvação»).

12. Primo Levi não foi convocado para esta reflexão por uma necessidade de autoridade moral, mas por fidelidade, isto é, para recordar que o seu testemunho nunca teve a ver com memória, mas com destino, com o reconhecimento de uma tarefa por cumprir. Escrevia algures Jacques Derrida que a «herança nunca é um dado, é sempre uma tarefa». O testemunho de Levi não é apenas sobre o Holocausto, nem apenas sobre Israel: é sobre o genocídio em Gaza. É um testemunho incansável contra a indiferença e contra o fascismo — contra o qual lutou toda a sua vida. Enfim, é um testemunho contra o cinismo daqueles que falam dos grandes e universais «valores europeus», mas fecham os olhos ao extermínio em massa dos palestinianos, chegando ao cúmulo de convidar Benjamin Netanyahu — que tem pendente sobre si um mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional — para participar na cerimónia dos oitenta anos da libertação de Auschwitz.

Ora, a relação de Levi com Israel foi-se tornando cada vez mais difícil ao longo dos anos:  denunciou o seu militarismo nacionalista e religioso e a permanente instrumentalização do Holocausto. Em 1982, Levi é muito claro: «nunca fui sionista e não o sou actualmente. Discordo das reivindicações sionistas e das acções actuais do governo israelita». E numa outra entrevista, no mesmo ano, intitulada «Se questo è un stato», defende mesmo a urgência de «deslocar» o «centro de gravidade do judaísmo (…) para fora de Israel». Palavras, sem dúvida, premonitórias diante do actual exercício retórico vergonhoso que não só converte toda a crítica ao sionismo em anti-semitismo como chega ao ponto de justificar o genocídio em nome do Holocausto. Escrevia Agamben, como vimos, que «o Judaísmo, que não tinha morrido em Auschwitz, talvez conheça hoje o seu fim». O mesmo poderia ser dito sobre Primo Levi: sobreviveu a Auschwitz, mas talvez não tenha sobrevivido a Israel.

 

 

Pedro Levi Bismarck

Editor do jornal Punkto, investigador, crítico e ensaísta, publicou o livro O Mito de Israel. O Ocidente, a Política, a Morte (Documenta, 2025).

 

Imagem

Uma criança caminha sobre as ruínas de uma casa (a sua?) em Hebron, 1989. Fotografia de Joss Dray, via The Palestinian Museum Digital Archive.

 

Nota da edição

Este artigo é uma versão ampliada e revista do artigo com o mesmo título publicado no jornal Público em  Junho de 2025. É agora publicado no Punkto a propósito do lançamento do livro O Mito de Israel. O Ocidente, a Política, a Morte, publicado em Setembro de 2025, pela Documenta.

 

Ficha técnica

Gaza, depois de Auschwitz • Pedro Levi Bismarck

Data de publicação • 09.12.2025

 Edição #44 • Verão — Outono 2025