DESTRUIÇÃO: Uma obra em processo | José Bártolo



José Manuel Bártolo
Destruição
Uma obra em processo
Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por mulheres e homens em todo o mundo, hoje. A esse conjunto de experiências podemos chamar de contemporaneidade. Talvez nós, contemporâneos, não estejamos a viver algo de substancialmente diferente do que os que vieram antes dos que vieram antes de nós – os modernos – viveram. A experiencia ambiental da contemporaneidade – no que ela tem de regresso ao moderno e de constatação da impossibilidade de tal regresso – está marcada pela crise e resistência de modelos, categorias e valores que – do político ao económico, do religioso ao artístico – nos conduzem a um confronto com formas de produção, circulação e arquivo que, ecoando Marx, nos sugerem que tudo o que é sólido se dissolve no ar.


Para os que vieram antes de nós e depois dos modernos, a dissolução não era uma sombra angustiante mas todo um programa. A redução ao conceito, levada a cabo por uma nova geração de artistas e arquitectos a partir do final da década de 1950, expressava uma preocupação programática de voltar, por via radical, à preocupação das origens do projecto moderno de construir a síntese entre arte e vida, estando esta neo-vanguarda da segunda metade do século XX ideologicamente mais próxima dos utópicos do séc. XIX do que das vanguardas históricas no início do século passado. 

A destruição do objecto foi a estratégia recorrente nesse processo de redução ao conceito que Lucy Lippard descreve bem, em pleno processo, no início dos anos 1970.[1] Os objectivos perseguidos pelo programa conceptual eram diversos mas, como bem recorda Suzi Gablik, “privar as obras de arte da sua aura ou singularidade, impedindo assim que se transformem em objectos de consumo, foi um dos principais objectivos da arte conceptual.”[2] Como expressava Robert Barry, em 1968, “o mundo está cheio de objectos e eu não pretendo acrescentar-lhe mais nenhum”. O percurso, sabe-se, revelar-nos-ia algumas perversões. A desmaterialização, mas sobretudo a destruição do objecto artístico, através de uma intervenção anti-artística sobre um objecto (objecto quotidiano ou objecto de arte) em vez de o retirar de uma cadeia comercial, eximindo-o da condição de mercadoria, gerou neles uma nova dimensão de valor (ironicamente, uma certa aura) que, rapidamente, encontrará o seu sistema de produção, circulação, comercialização e arquivo. À produção de objectos, a arte conceptual pretendia contrapor dois processos criativos alternativos: a produção de ideias e a destruição de objectos pré-existentes. Em 1969, Robert Barry apresentava a sua Telepathic Piece que consistia no esforço de “comunicar, por telepatia, uma obra de arte.”

Três anos antes da apresentação da Telephatic Piece, Gustav Metzger organizou em Londres DIAS – Destruction in Art Symposium particularmente animado por acções como as Paiting with Explosion nas quais Pro-Diaz procedia a detonações criativas ou pelas performances dos Accionistas Vienenses que visavam, também elas, uma espécie de explosão através da “súbita libertação de grandes quantidades de energia”.

O recurso à explosão foi um dos meios mais simbólicos e radicalmente actuais da arte contemporânea trabalhar com um triangulo referencial que domina a cultura da segunda metade do século XX - energia/produção/consumo. A aproximação à literalidade e ao imaginário da explosão e através dela a construção de processos criativos baseados no acto controlando e intencional da destruição construiu das primeiras e mais contundentes representações da cultura contemporânea, a que Peter Sloterdijk, já neste século, chama de fast-burn culture.

A destruição do objecto por parte da arte contemporânea, surge-nos, assim, como uma representação, entre o melancólico e o inusitado, de um processo de combustão rápida, explosão e destruição de enormes quantidades de energia que caracteriza a cultura industrial e liberal do século XX. As formas de destruição foram, como se sabe, as mais diversas, como bem enuncia Metzger no Manifesto Auto-Destructive Art de 1960: Materials and techniques used in creating auto-destructive art include: “Acid, Adhesives, Ballistics, Canvas, Clay, Combustion, Compression, Concrete, Corrosion, Cybernetics, Drop, Elasticity, Electricity, Electrolysis, Feed-Back, Glass, Heat, Human Energy, Ice, Jet, Light, Load, Mass-production, Metal, Motion Picture, Natural Forces, Nuclear Energy, Paint, Paper, Photography, Plaster, Plastics, Pressure, Radiation, Sand, Solar Energy, Sound, Steam, Stress, Terra-cotta, Vibration, Water, Welding, Wire, Wood.”

Esse “drop drop dropping of HH bombs” foi, assim, desenvolvido de diversos modos: por dissolução (como nas pinturas com ácido de Metzger ou de Mark Boyle e Joan Hills); por incineração (como nos Pyromania Projects de Ben Vautier, nos Burnt Instruments de Armand ou nas Peintures de Feu de Yves Klein); por rasgão (como no projecto Passage de Saburo Murakami); por esmagamento (como nos trabalhos de César Baldaccini ou de John Chamberlain); por desmantelamento (como na Piano Destruction de Rafael Ortiz); por corte (como nas composições de Arman); por penetração (como na anti-buch de Herbert Zangs); por estrangulamento (como nas Implosions de Ewert Hilgemann) e finalmente por explosão, recurso que das Hommage à New York (1960) de Jean Tinguely aos trabalhos recentes de Kendell Geers permanece recorrente.

Para Metzger o processo auto-destrutivo era uma via para a concepção total, sendo que a ideia, porventura paradoxal, de obra de arte-conceptual total, foi sendo gradualmente definida deste meados dos anos 1950: “Auto-destructive art is primarily a form of public art for industrial societies. Self-destructive painting, sculpture and construction is a total unity of idea, site, form, colour, method, and timing of the disintegrative process.
Auto-destructive art can be created with natural forces, traditional art techniques and technological techniques. The amplified sound of the auto-destructive process can be an element of the total conception. The artist may collaborate with scientists, engineers.
Self-destructive art can be machine produced and factory assembled.
Auto-destructive paintings, sculptures and constructions have a life time varying from a few moments to twenty years. When the disintegrative process is complete the work is to be removed from the site and scrapped.”[3]

Em 1973, depois de uma década de massiva destruição, a crise energética confronta-nos radicalmente com a crise de uma era da superabundância. Não será mera coincidência, o facto da pós-modernidade se afirmar, através de Charles Jencks, no mesmo ano em que a crise do petróleo atinge o seu auge. Um paradigma de organização do triângulo referencial energia/produção/consumo atingia um ponto de declarado esgotamento. Quase quarenta anos depois desse ponto de esgotamento, verdadeiramente não se deu ainda uma alteração de paradigma. Os processos criativos de destruição intencional e controlada foram-se, nas últimas três décadas extinguindo e tornando meramente residuais. Permanecemos dentro de uma cultura de combustão rápida mas, envolvidos na vertigem dessa combustão, talvez tenhamos perdido capacidade de a representar e potencialmente criar-lhe uma alternativa crítica.

Depois dessa experiência de destruição crítica, a nós, parece apenas restar a experiência de guardar as cinzas ou de as libertar no ar.


[1] Lucy Lippard, Six Years: The Dematerialization of the Art Object from 1966 to 1972, London, 1973.
[2] Suzy Gablik, Ha muerto el Arte Moderno?, Herman Blume, Madrid, 1987, pág. 39.
[3] Gustav Metzger, “Auto-destructive art manifesto”, 1959. Disponível em linha: http://www.391.org/manifestos/1959metzger.htm.

Imagem: Cartaz de The Destruction in Art Symposium (DIAS) Londres, 1966, organizado por Gustav Metzger.


José Manuel Bártolo (1972) desenvolve trabalho de investigação, ensino e curadoria nas áreas da arte contemporânea, arquitectura e design. É autor do blogue Reactor (www.reactor-reactor.blogspot.com), dos livros Corpo e Sentido (Livros Labcom, 2007) e Design (Relógio d’Água. 2010) e editor da revista PLI cujo primeiro número será publicado em Abril 2011.