É urgente criticar a turistificação das cidades que amamos • Pedro Duarte





Passamos de um canal para outro, de uma moda para outra, de umas férias de três dias para as seguintes, e já não há nada que nos espante ou entusiasme.

— J. G. Ballard

Em dois debates organizados em Maio pela Casa da Achada, em Lisboa, e em Novembro pela Comissão Portuguesa do ICOMOS, no Ateneu Comercial do Porto, em que fui convidado para debater os impactos da turistificação, foi notório nas intervenções que, especialmente nos centros históricos, se estão a multiplicar os danos colaterais provocados pelo turismo. Surpreendeu-me, porém, que a generalidade dos intervenientes não estivesse interessada em atacar o fenómeno pela raiz. O que mostra o quão enraizada no senso comum está a ideia da inexistência de alternativas ao turismo.

Composto pelos serviços e mercadorias cada dia mais padronizados que competem entre si para atrair quem viaja, o turismo apresenta-se hoje como qualquer coisa que já não se pode eliminar e à qual todos nos devemos adaptar. De facto social, dependente dos comportamentos dos agentes sociais, o turismo reproduz-se assim enquanto facto natural - tão inquestionável como a presença à nossa volta dos astros e dos oceanos. No entanto, e apesar da hegemonia das indústrias turísticas na mediação do viajar, continua a ser possível inscrever a viagem fora da versão consumível do território que é oferecida por estas indústrias. Se ignorar esta versão do real, que exclui a interacção, a imaginação, a apropriação e a partilha, o viajante torna-se capaz de penetrar activamente num nível mais profundo do território e da cultura, rejeitando assim a contemplação passiva da medíocre encenação que anima o consumo turístico.

Devemos, portanto, resistir ao lema de que "todos somos turistas", que evoca o totalitário "there is no alternative" thatcheriano. Alain Badiou dizia recentemente, a propósito do neoliberalismo, que "o que define o nosso tempo é a tentativa de impor à humanidade a convicção de que só há um caminho para a história dos homens (...) sem nunca se afirmar que esse é um caminho excelente, mas apenas dizendo que não há outra solução." Nas discussões sobre a turistificação em curso, é justamente esta ideia que hoje se impõe: não existem alternativas ao turismo; poder-se-á talvez limitá-lo, com mais taxas e regulação (o que levará também a assumir a viagem turística enquanto prática exclusiva, que exclui as massas), mas jamais erradicá-lo. 

É precisamente esta visão dominante que devemos confrontar. Especialmente quando bairros residenciais dão lugar a cenários desabitados, mas repletos de um exotismo postiço, forjado para seduzir turistas. Quando centros históricos, entretanto recodificados para serem reconhecidos instantaneamente pelos turistas, se enchem de lugares substituíveis e equivalentes a quaisquer outros. Quando a reabilitação é feita menos para servir os habitantes locais do que os investidores transnacionais, que descobriram a galinha dos ovos de ouro no alojamento local e no comércio chic e gourmet que seduz a nova clientela turística. Quando os patrimónios são subtilmente adulterados, para darem lugar a imagens estandardizadas de fácil apreensão, como sucede nas Pousadas de Portugal, onde edifícios históricos são descontextualizados para se poderem tornar comunicáveis e vendáveis à nova clientela turística, ou em bairros históricos, em que as marcas de uso dos moradores se dissolvem numa nova paisagem inerte, dominada por fachadas limpas e exteriores higienizados. Quando a museificação turística das cidades cria parques temáticos de portugalidade que dão azo à reinvenção nacionalista de uma identidade anti-cosmopolita que exclui imigrantes, minorias e subculturas.

O mundo aparentemente paradisíaco e feliz do turismo é afinal um mundo cínico. Nele, os autóctones não são chamados a participar senão enquanto precários assalariados ou figurantes passivos do décor que caracteriza a encenação turística. Confrontar o turismo leva-nos por isso a confrontar, no seu âmago, o mundo da especulação e da aparência, que rejeita tudo o que não serve para multiplicar capital. Apesar de não ser uma tarefa simples, ela tornou-se vital, sob pena de nos vermos completamente excluídos das cidades que amamos e destas se tornarem simulacros pitorescos onde, como em Las Vegas, tudo é alegremente falso.


Pedro Duarte
Nasceu em Coimbra em 1979. Licenciado em história/arqueologia pela Universidade de Lisboa, com especialização avançada em antropologia pela Universidade de Coimbra. Autor regular no blog l'obéissance est morte, tem publicado os seus artigos em jornais independentes como o Le Monde Diplomatique, o Mudar de Vida ou o Mapa.

Notas da edição
O artigo “É urgente criticar a turistificação das cidades que amamos” é parte integrante do Caderno \ Souvenirs de Porto. A fotografia é do autor.

Ficha Técnica
Data de publicação: 21.02.2016
Etiquetas: Territórios \ Cidades

Imprimir