O património e os media • António Guerreiro





O nosso tempo é o de uma patrimonialização e musealização generalizadas, ao ponto de haver quem tenha diagnosticado uma “doença patrimonial”, que não pode ser confundida com as manifestações do “culto moderno dos monumentos”, a que o historiador de arte Alois Riegl (Viena, 1858-1905) dedicou um célebre estudo com esse título, em 1903, decisivo para a concepção moderna de património e para a definição dos princípios de uma política patrimonial. Este fenómeno contemporâneo segue a par de uma hipertrofia das questões da memória, que fez da díade memória/história uma das problemáticas mais obsessivas do nosso tempo, prova de que as representações construídas na esfera subjectiva e privada passaram a ser modos de conhecimento e de retorno do passado que a ciência historiográfica teve de ter em conta. De tal modo que as questões da “memória colectiva” e dos “lugares da memória” impregnaram de maneira decisiva o trabalho dos historiadores. A memória tornou-se um dos grandes temas actuais e a atitude patrimonialista deve ser entendida como uma resposta aos deveres que ela incute.
Um dos paradoxos da patrimonialização (bem visível quando o seu objecto são os centros históricos de muitas cidades) é que ela retira do uso o que deveria fazer parte do curso normal da vida quotidiana. O que é assim classificado exibe-se como passado fossilizado e sublinha com grande relevo os anacronismos e os traços de artificialidade. Ou seja, o que traz a salvação traz também consigo sinais de morte. A propósito da hipertrofia da memória, importaria hoje, talvez, reactualizar o gesto de Nietzsche, quando o filósofo alemão, na segunda metade do século XIX, entrou em polémica com o historicismo que dominava a cultura do seu tempo e denunciou, na sua segunda “Consideração Intempestiva”, intitulada, Das Vantagens e Inconvenientes da História para a Vida, uma “doença histórica” que, segundo ele, tinha o efeito devastador de esterilizar e aniquilar as forças criativas. De certo modo, foi isso que fez o filósofo Hermann Lübbe, que diagnosticou na cultura ocidental contemporânea uma obsessão pelo passado como nunca tinha acontecido antes, bem visível na proliferação de museus e memoriais. Mesmo muitos dos monumentos do século XIX, marcados por uma enorme pobreza estética e pelo único objectivo de legitimar a política – desprezados e “demolidos” pelo modernismo e pelas vanguardas históricas – beneficiam agora da nossa intensa cultura memorial.



Mas há um profundo paradoxo nesta nova sensibilidade temporal. E esse paradoxo manifesta-se com grande intensidade nos media actuais que, parecendo muitas vezes estar sintonizados com esta lógica de celebração, monumentalização e rememoração do passado segregam uma cultura da amnésia e difundem-na em larga escala. Essa amnésia é, antes de mais, o efeito de uma aceleração do tempo que os meios de comunicação promovem. A velocidade destrói o espaço e apaga a distância temporal. A lógica totalitária dos media é o “zapping” e o que os move com mais força é a fantasmagoria do novo, mesmo que esse “novo” seja o antigo fetichizado como mercadoria e esterilizado como memória activa. Nos media, a preocupação patrimonial não é muito diferente daquela que move geralmente o turista, na sua pretensão de satisfazer o desejo de viajar pelo passado ou, até, de fazer viagens ao país dos arquétipos. Percebemos assim as condições em que florescem as fantasmagorias do novo, do inédito, do que nunca tinha sido descoberto antes, em todos os domínios (da arte, das letras, da moda, dos costumes e do património, evidentemente), e está sempre a começar ou a recomeçar, sob a forma de uma nova época, de uma nova geração, de uma nova década, de um novo ano. O escritor alemão Botho Strauss apreendeu exactamente esta situação num breve texto em que afirma que “nenhuma outra época produziu em tão pouco tempo tanto passado como a nossa”. Esta lógica, que levou um filósofo como Odo Marquard a falar da nossa época como “época das epoquizações”, conduz à identificação de unidades de tempo cada vez mais breves, até ao ponto em que o novo coincide com a efeméride e a comemoração (o fenómeno do revival a que estamos hoje tão habituados é disso uma manifestação evidente). Podemos hoje ver como os media, de um modo geral, mais não fazem do que passear pelo passado patrimonial como turistas que seguem um roteiro, e, por conseguinte, escamoteando a verdadeira dimensão histórica, homogeneizando um tempo-património que é morto, embalsamado, comemorado. E fazem-no segundo a mesma lógica com que se aplicam constantemente a fazer a lista dos novos talentos e a catalogar as formas novas e as tendências epocais nas artes e no pensamento, numa busca desenfreada pela novidade que é uma espécie de versão niilista da ideologia do progresso. Em parte, essa atitude é uma manifestação eloquente do que se passa hoje com a obsessão da memória: seja sob a forma de dever de memória ou de trabalho da memória, não se promove uma consciência mais aguda da historicidade, mas relega-se tudo o que não releva do presente imediato quer para o esquecimento quer para o museu. A museificação acaba por ter, paradoxalmente, um efeito amnésico, e o passado museificado não parece impor nenhuma outra responsabilidade que não seja apresentar-se como mercadoria turística atractiva. Em 2002, o historiador de arte italiano Salvatore Settis publicou um livro, chamado Italia S.p.A (Einaudi) onde defendia que estava em curso, em Itália, um “assalto ao património cultural”. O assalto não tem o mesmo grau de violência em todas as latitudes, mas por todo o lado descobrimos facilmente que ele se tornou uma regra.



Mas a questão não pode ser colocada apenas no modo como os media representam ou se servem do património cultural. A questão é mais funda e tem a ver com o modelo de temporalidade que os media instituem e do qual, ao mesmo tempo, são uma criação: a memória individual e colectiva é hoje afectada pela emergência de uma nova estrutura de temporalidade gerada pela aceleração da vida material, por um lado, e pela aceleração das imagens mediáticas, por outro. Chegámos ao limite máximo de uma temporalização da história que não deixa que nada se sedimente. Este fenómeno que começou com a modernidade é determinado por um aumento progressivo da velocidade de destruição do espaço e de apagamento da distância temporal. E quanto mais resgatamos a memória do fundo dos arquivos ou das ruínas de pedra, mais o passado é aspirado no nosso presente, pronto a ser projectado num ecrã. O tempo dos media é o da simultaneidade de todos os tempos, subtraído a qualquer sentido do antes e do depois, das continuidades e descontinuidades. Tudo é acessível ao presente, que é a única dimensão do tempo que prevalece, e a percepção da distância espacial e temporal é completamente apagada. O tempo dos media é o tempo do passeio turístico. E este “presentismo”, induzido pela simultaneidade das imagens, é em boa medida imaginário. É como a desrealização narcísica operada pelas selfies. Deste modo, nada é tão eficaz como os media para anular a diferença entre passado e presente e para tornar imperceptível a alteridade no tempo histórico ou na distância geográfica. Poder-se-ia dizer de um qualquer objecto ou monumento do património histórico e cultural o que Walter Benjamin disse da aura, mas invertendo os termos: em vez de ser a aparição de algo longínquo, por mais próximo que esteja (assim definiu Benjamin a aura de uma obra de arte), o património monumental – sobretudo esse – é a aparição de algo próximo por mais distante que esteja. Ora, esta excessiva proximidade é um efeito mediático. Nada escapa a esta lei do familiar que é uma característica do Kitsch. Tudo se apresenta e se representa num horizonte previsível e exaustivamente calculável. O que significa que não há lugar para uma experiência de conhecimento. Visitar hoje o centro histórico de uma cidade é seguir um roteiro que nos assegura que nenhuma verdadeira experiência pode ter lugar porque tudo é feito para que a visita seja de reconhecimento: tudo é previamente representado e representável, pelo que somos subtraídos a toda a experiência da distância; e tudo coincide consigo mesmo, está assegurada a máxima adequação imanentista. Há, em suma, uma determinação exclusiva do próximo, do reconhecível, do conforme. Isto corresponde a uma kitschificação generalizada, que vai a par da transformação do património em mercadoria. E enquanto mercadoria ele não tem outra “temporalidade” que não seja a circulação, uma circularidade temporal que é uma espécie de “eterno retorno”. A questão que se coloca hoje, quando o modelo de temporalidade é eminentemente mediático, é este: que consciência histórica nos é dada pelo património quando entrámos na lógica de um apagamento ou de uma denegação veemente da temporalidade – uma denegação que chega ao extremo da sua lógica no sistema mediático e “tele-económico” em que vivemos? Por conseguinte, o problema não é tanto as representações (verdadeiras ou falsas) ou as omissões do património cultural nos media, mas muito mais a maneira como percebemos e vivemos a nossa temporalidade, numa época em que os media visuais invadiram todos os aspectos da vida pessoal, política e cultural.


Notas de edição
Artigo publicado originalmente na Revista Património nº3, Dezembro 2015 com o título “O tempo do património e o tempo dos media”. O Artigo é publicado com autorização do seu autor. As imagens escolhidas são da responsabilidade da edição. Este texto é parte integrante do Dossier “Souvenirs de Porto \ A cidade e o turismo!

Imagens
1. Michael Nash, Varsóvia, 1946.
2. Porto Welcome Center. Quadro de eventos. Fotografia: ©ViajeComigo
3. Porto Welcome Center. Fotografia: JPN

António Guerreiro
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Português/Francês). Foi ensaísta e crítico literário do semanário "Expresso", actualmente é colaborador do Público/Ípsilon., publicou um volume de ensaios, O Acento Agudo do Presente (Cotovia, 2000). Tem colaboração dispersa em revistas e volumes colectivos e editou, com Olga Pombo e António Franco Alexandre, Enciclopédia e Hipertexto (Editora Duarte Reis, 2006). Fundou com José Gil, Silvina Rodrigues Lopes a revista Elipse. Walter Benjamin e Aby Warburg (sobre os quais tem vários artigos publicados) são os dois pontos fortes do seu trabalho nos últimos anos.

Ficha Técnica
Data de publicação: 02.11.2016

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