Vell Poble Nou | Tiago Lopes Dias




Tiago Lopes Dias
VELL POBLE NOU
Era difícil, para quem visitava a torre Agbar em Barcelona, há poucos anos atrás, ficar indiferente a um pequeno conjunto de construções que a rodeavam. Este fragmento, incómoda reminiscência de uma cidade obsoleta, perturbava a imagem da Barcelona moderna de início do século da qual o edifício de Jean Nouvel seria estandarte máximo. Recordei-me, numa das minhas deambulações por ali, de uma passagem do recém-publicado livro do antropólogo Manuel Delgado. Lembrava-me do sentido das palavras mas não da sua exactidão, que confirmei assim que pude: “aos pés dos volumes arquitectónicos singulares, à sua volta, estende-se a cidade indesejada mas verdadeira” [1]. Hoje, aos pés do volume arquitectónico singular já não existem os graffitis, a churreria ou o quiosque de venda de bilhetes da lotaria: tudo desapareceu para dar lugar a mais um volume arquitectónico singular.
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Era igualmente difícil, para quem percorria o bairro de Poblenou em Barcelona, há poucos anos atrás, ficar indiferente à quantidade de edifícios abandonados que ali existiam. Nenhuma catástrofe, natural ou provocada pelo homem, tinha tido lugar; apenas o Tempo, esse grande escultor (parafraseando Marguerite Yourcenar) trabalhava implacavelmente, transformando duzentos hectares de construção industrial em ruínas. Por este cenário, sugestivo como uma bucólica paisagem tardo-renascentista, podíamos vaguear como dandys, de olhar perdido no passado. O culto e as poéticas da ruína, legado do Romantismo Europeu que atingiu o seu auge no final do século XVIII, foi frequentemente confundido com simples nostalgia; no entanto, como explica Dalibor Vesely, o fragmento, para os românticos, não era uma meta, mas sim um projecto incompleto que tinha por finalidade a conclusão num elevado nível de síntese e perfeição como parte de uma totalidade e de um sistema orgânico [2]. Dando como exemplo o rocaille, Vesely afirma que a sua natureza inacabada é intencional, “pois expressa uma possibilidade de realização no futuro, da mesma forma que um organismo atinge a plenitude, a realização e a perfeição através do crescimento” [3].
Acredito que é esta ideia de significação culta, latente na ruína, que está por trás do desabafo de Juan José Lahuerta na sua carta de amor à cidade de Barcelona [4]. Mais do que um modelo de uma vida que já está acabada e morta, a ruína significa sobretudo a possibilidade de uma interpretação, de uma explanação definitiva – de uma interpretação do todo pela parte. É este desejo de plenitude que Lahuerta vê como “essência do kitsch que exige que tudo tenha solução” [5]. E a solução, neste caso, passava por redefinir o que devia ser o novo Poblenou: “um distrito de inovação que oferece espaços modernos para a concentração estratégica de actividades intensivas em conhecimento” [6]. A conservação, junto dos novos volumes arquitectónicos singulares, das chaminés industriais – cristalizadas, totemizadas – resolvia esse projecto incompleto que era a ruína da cidade produtiva.
Não será este cenário (que parece mimetizar uma pintura de Giorgio De Chirico: uma astronomia de objectos ancorados ao planeta unicamente pela fatal lei da gravidade) [7] resultado da “essência de uma política que apresenta a destruição física, a banalização e a venda da cidade como o caminho sem remédio em direcção à felicidade de viver numa loja, êxtase do escaparate, da modernidade” [8], como refere Lahuerta? Não será o novo Poblenou exemplo da relação entre destruição e desaparecimento da vida que habita a cidade e comercialização ou marketização da mesma?
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A desconfiança de Lahuerta em relação ao “caminho sem remédio em direcção à felicidade” foi-lhe transmitida, possivelmente, por quem melhor expressou o ódio contra essa (ilusória) doutrina do progresso: Charles Baudelaire. Quem, melhor do que o poeta francês, cantou, na Paris do século XIX, esse futuro onde tudo é passado, onde tudo já aconteceu e se limita a repetir?

Paris change! mais rien dans ma mélancolie
N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie [9]

A poesia de Baudelaire, como tão bem resumiu Benjamin, “fez aparecer o novo no sempre igual e o sempre igual no novo” [10]. As obras do barão Haussmann serão também, um dia, ruínas; não poderão escapar ao ciclo inexorávelde construção e destruição que caracteriza a grande cidade – e a própria vida. Não é de estranhar que Baudelaire, num pequeno ensaio, tenha escrito que lhe agradava mais o Egdar Allan Poe bêbado, pobre, perseguido e pária do que o Goethe calmo e virtuoso [11]. Sabia que, por entre a espessa cortina do ópio e do álcool, o mestre norte-americano tinha entrevisto a derradeira ruína, o fragmento que já não tem reconstrução possível: o interior do homem moderno. A greta na fachada da casa de Usher, que anuncia a derrocada iminente, não é mais do que uma metáfora da sua alma descrente e atormentada.
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Volto ao Poblenou através de uma série de fotografias que fui despreocupadamente fazendo ao longo dos últimos quatro anos. E recordo-me, desta vez, da incisiva observação de Susan Sontag sobre a relação entre fotografia e destruição: “As câmaras começaram a duplicar o mundo num momento em que a paisagem humana começava a sofrer um vertiginoso ritmo de transformação” [12] – o momento em que Baudelaire escrevia as Flores do Mal.
Alguém escreveu também, desta vez nas paredes do que outrora foi uma casa, te quiero Poblenou. Esta declaração urgente, possivelmente de quem não possuía outro meio que não um rápido graffiti, certamente já desapareceu enquanto escrevo estas breves notas. Resta-me, como consolação, a capacidade da fotografia para registar o que está a ponto de desaparecer.



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1 Manuel Delgado, La ciudad mentirosa. Fraude y miseria del ‘Modelo Barcelona’, Madrid, Los Libros de la Catarata, 2007, p.239.
2 Dalibor Vesely, Architecture in the Age of Divided Representation, the MIT Press, 2004.
3 Dalibor Vesely, op. cit., p. 330.
4 Juan José Lahuerta, Destrucción de Barcelona, Barcelona, Mudito & Co., 2005.
5 Lahuerta, op. cit., p.14.
6 www.22barcelona.com.
7 Giorgio De Chirico, On Metaphysical Art. Citado por Dalibor Vesely, op. cit.
8 Lahuerta, op. cit., p.14.
9 Charles Baudelaire, Le Cygne. In Les Fleurs du Mal. Publicado originalmente em 1857.
10 Walter Benjamin, Parque Central, In A Modernidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006 (orig. 1939).
11 Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe, Coimbra, Editora Alma Azul, 2008. Entre 1852 e 1865 Baudelaire traduziu a obra de Poe para o francês.
12 Susan Sontag, Sobre la Fotografia, Barcelona, Debolsillo Contemporánea, 2010, p.25 (orig.1977).

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Tiago Lopes Dias (Porto, 1978) É licenciado pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde foi monitor e assistente convidado na disciplina de Projecto. Trabalhou como arquitecto no Porto e em Barcelona, onde actualmente se encontra a residir e a preparar o programa de Doutoramento em Teoria e História da Arquitectura.


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