Hillary Duterte Trump • Slavoj Žižek





O “Ensaio sobre a lucidez” de Saramago conta a história de uma estranha sucessão de eventos que ocorrem na capital desconhecida de um hipotético país democrático. Quando a manhã de um dia de eleições é assolada por chuvas torrenciais, a afluência às urnas regista valores perturbadoramente baixos, mas com a melhoria do tempo, a meio da tarde, a população dirige-se em massa para as urnas. Contudo, o alívio do governo é de curta duração quando a contagem dos votos revela que mais de 70% dos boletins foi deixado em branco. Surpreendidos por este aparente lapso cívico, o governo dá uma nova hipótese aos cidadãos e marca novo acto eleitoral uma semana mais tarde. Os resultados são ainda piores: 83% dos boletins são deixados em branco. Será isto uma conspiração organizada para derrubar não apenas o governo, mas a totalidade do sistema democrático? E, se sim, quem está por detrás disso e como se conseguiu mobilizar centenas de pessoas para um acto subversivo dessa dimensão sem que nada o fizesse prever? A cidade continua a funcionar normalmente, numa generalizável e inexplicável aceitação da situação existente, num gesto de verdadeira resistência não-violenta à imagem de Gandhi…A lição deste ensaio ficcional é clara: o perigo hoje não é a passividade, mas a pseudo-actividade, a vontade de ser “activo”, de “participar”, de maneira a mascarar a vacuidade daquilo que continua. As pessoas intervêm sempre, “fazem algo”, académicos participam em debates sem importância e etc. O que é verdadeiramente difícil é recuar, retirar-se. Aqueles que estão no poder preferem apesar de tudo uma participação “crítica”, um diálogo, para silenciar – para nos colocar em diálogo, fazer com que a nossa passividade ameaçadora seja anulada. A abstenção dos eleitores é um verdadeiro acto político: confronta-nos directamente com a vacuidade absoluta das democracias actuais.

É deste modo que os eleitores deveriam responder à escolha entre Clinton e Trump. Quando perguntaram a Estaline, nos anos 20, que desvio é pior, a direita ou a esquerdista, ele responde: “Os dois são piores!” Não podemos dizer o mesmo relativamente às escolhas que os eleitores americanos têm pela frente nas eleições presidenciais de 2016? Trump é obviamente «pior», ele promete uma viragem à direita e leva a cabo a decadência da moral pública; contudo, ele promete uma mudança enquanto Hillary é “pior” porque faz da mudança algo absolutamente indesejável. Numa tal opção, deveríamos ser capazes de pensar friamente e escolher o “pior”, que significaria mudança – mesmo sendo uma mudança perigosa, pois abre espaço para uma mudança mais autêntica. Mas a questão não está em simplesmente votar em Trump – nem ninguém deve votar em alguém desse nível, nem devíamos sequer participar nestas eleições. Devemos procurar guardar alguma distância relativamente a esta questão e perguntar: qual destas vitórias é melhor para o destino do projecto emancipatório radical, a de Clinton ou a de Trump?

Trump quer tornar América grande outra vez, enquanto Obama responde que a América já é grande. Mas será que é mesmo? Pode um país ser considerado grande, quando uma pessoa como Trump é um sério candidato à presidência? Os perigos de uma presidência de Trump são óbvios: ele não prometeu apenas nomear juízes conservadores para o Supremo Tribunal; ele mobilizou os piores círculos de supremacia branca e celebra um racismo anti-imigração; ele despreza as regras elementares de decência e simboliza a desintegração das regras éticas básicas; e enquanto demonstra preocupação pela misérias das pessoas ele efectivamente promove uma agenda neoliberal que incluí cortes de impostos para os mais ricos, mais desregulação, etc. e etc. Trump é um oportunista vulgar, mas ele é ainda um espécime vulgar da humanidade (ao contrário de entidades como Ted Cruz ou Rick Santoro, que suspeito serem extraterrestres). O que Trump não é definitivamente é um capitalista inovador e produtivo – ele aposta na sua bancarrota e depois em fazer com que os contribuintes paguem as suas dívidas.

Os liberais, desorientados por Trump, descartam a hipótese que uma vitória eventual de Trump possa iniciar um processo de onde uma verdadeira esquerda emergiria – o seu contra-argumento é a referência a Hitler. Muitos alemães comunistas receberam a tomada de poder dos nazis como uma renovada oportunidade para a esquerda radical os conseguir derrotar, mas como sabemos hoje, isso foi um erro catastrófico. A questão é: passa-se o mesmo com Trump? É Trump um perigo que deve juntar uma frente alargada, tal como se fez com Hitler, uma frente onde conservadores decentes e libertinos lutam lado a lado com liberais progressistas e com aquilo que resta da esquerda radical? Frederic Jameson tinha razão quando alertava para os perigos de chamar ao movimento de Trump um novo fascismo: «as pessoas dizem: isto é um novo fascismo e a minha resposta é – ainda não» (de facto, a palavra fascismo é hoje uma palavra vazia que se usa quando algo de perigoso aparece na cena política, mas falta-nos um entendimento cabal do que ela significa de facto – não, os populistas de hoje não são simplesmente fascistas!) E porquê, ainda não?

Primeiro, o medo que uma vitória de Trump possa tornar os EUA num Estado fascista é uma exageração ridícula. Os EUA têm uma rica textura de instituições política e civis que impedem que o “Gleichschaltung” seja simplesmente decretado. De onde vem, por isso, todo este medo? A sua função é obviamente juntar todos contra Trump e assim ofuscar as verdadeiras e reais divisões políticas que correm entre uma esquerda ressuscitada por Sanders e Hillary – que é a verdadeira candidata do sistema suportada por uma alargada coligação que incluí velhos guerreiros de Bush como Paul Wolfowitz e a Arábia Saudita. Segundo, o facto é que Trump vai buscar apoios precisamente aos mesmos quadrantes de onde Bernie Sanders mobilizou os seus partidários – ele é percebido pela maioria dos seus apoiantes como o candidato anti-sistema, e o que nunca deveremos esquecer é que a raiva popular corre ao sabor do vento e pode ser sempre redireccionada. Os liberais que temem a vitória de Trump não estão realmente com medo de uma deriva radical à direita. Aquilo que eles temem é uma verdadeira mudança social. Para repetir Robespierre, eles admitem (e estão sinceramente preocupados com isso) as injustiças da nossa vida social, mas eles querem curá-las com uma «revolução sem revolução» (num paralelismo exacto com o nosso actual consumismo que oferece café sem cafeína, chocolate sem açúcar, cerveja sem álcool, multiculturalismo sem confrontos imediatos, etc.): uma visão da mudança social sem qualquer mudança, uma mudança onde ninguém se magoe, onde liberais bem-intencionados permanecem encasulados nos seus enclaves seguros. Em 1937, George Orwell escrevia:

“Todos nós gritamos contra distinções de classe, mas muito poucos querem de facto abolir essas distinções. Aqui chegamos à importante constatação de que toda a opinião revolucionária retira parte da sua força daquela secreta convicção de que na verdade nada pode ser mudado”

O argumento de Orwell é de que os radicais invocam a necessidade de uma transformação revolucionária como uma espécie de totem que deve assegurar exactamente o oposto, isto é, prevenir precisamente a única mudança que realmente importa, a mudança daqueles que nos governam. Quem realmente quer governar o EUA? Não estamos já a ouvir os sussurros daquelas reuniões secretas onde membros das elites financeiras (e outras) estão a negociar a distribuição das posições-chave na administração Clinton? Para ter uma ideia de como essas negociações funcionam é suficiente ler os emails de John Podesta ou os discursos que Hillary Clinton fez para a Goldman Sachs. A vitória de Hillary é a vitória de um status quo ofuscado pela possibilidade de uma nova guerra mundial (e Hillary é definitivamente a típica fria guerreira democrática), o status quo de uma situação onde gradualmente, mas inevitavelmente, se desliza para uma catástrofe tanto económica como humanitária. Por isso é que considero extremamente cínica a critica esquerdista da minha posição ao reivindicar que:
para intervir numa crise a esquerda deve estar organizada, preparada, e ter o apoio da classe trabalhadora e dos oprimidos. Não podemos de maneira nenhuma apoiar o racismo e o sexismo que nos divide e que enfraquece a nossa luta. Devemos sempre permanecer do lado dos oprimidos e devemos ser independentes, lutando por uma alternativa de esquerda para sair da crise. A catástrofe de Trump para a classe governante é também a nossa catástrofe, se não se erguer as bases para a nossa própria intervenção.

Verdade, a «esquerda deve estar organizada, preparada, ter o apoio da classe trabalhadora e dos oprimidos» – mas neste caso a questão deveria ser: que candidato contribuiria mais para a organização da esquerda e para a sua expansão? Não seria lícito pensar que a vitória de Trump poderia «erguer as bases para a nossa intervenção» muito mais que a vitória de Hillary? Sim, há um grande perigo na vitória de Trump, mas a esquerda só se mobilizará através de uma tal ameaça ou catástrofe – se continuarmos nesta inércia do status quo existente não haverá certamente qualquer mobilização de esquerda. Estou tentado a citar Hölderlin: «mas onde está o perigo, também cresce aquilo que salva». Na escolha entre Clinton e Trump nenhum deles “permanece do lado dos oprimidos” e, portanto, a verdadeira escolha é: abster de votar ou escolher aquele que, independentemente de quem seja, possa desencadear uma nova dinâmica política que leve a uma radicalização massiva à esquerda.

Muitos dos eleitores pobres afirmam que Trump fala por eles – como podem eles reconhecerem-se na voz de um bilionário cujas especulações e falhanços são uma das causas da sua própria miséria? Como os caminhos de deus, os caminhos da ideologia são misteriosos. Quando os apoiantes de Trump são denunciados como «white trash», é fácil discernir nessa designação o medo pelas classes baixas que caracteriza a elite liberal. Este é o título e o subtítulo de uma reportagem que o The Guardian fez de um comício de Trump: “Dentro de um comício de Donald Trump: boas pessoas numa espiral de ódio e paranoia. A multidão de Trump está cheia de pessoas honestas e decentes – mas as invectivas do candidato Republicano têm um efeito arrepiante nos fãs deste one-man show». Mas como é que Trump se tornou a voz de tantas pessoas honestas e decentes? Trump de uma só vez arruinou o partido republicano, antagonizando tanto o antigo establishment do partido como os fundamentalistas cristãos – aquilo que, hoje, permanece como o núcleo desse suporte são os portadores da raiva populista contra o sistema, e esse núcleo é desvalorizado pelos liberais como «white trash» – mas não são estes precisamente aqueles que devem ser trazidos para a causa da esquerda radical (e isto foi o que Bernie Sanders conseguiu). Devemo-nos livrar dos falsos pânicos, temendo a vitória de Trump como um último horror que nos faz apoiar Hillary apesar de todos os seus evidentes defeitos. Embora a batalha pareça perdida para Trump, a sua vitória teria criado uma situação política totalmente nova com hipóteses para uma esquerda mais radical – ou, para citar Mao: «Há desordem debaixo do céu, por isso a situação é excelente».

Há ainda um outro aspecto do duelo Trump/Clinton que diz respeito à diferença de género. Surpreendentemente, o comunista Maoista Alain Badiou – no seu novo livro “La vraie vie” – avisa-nos acerca dos perigos de crescer numa crescente ordem niilista pós-patriarcal que se apresenta a si mesmo como o domínio das novas liberdades. Vivemos numa era extraordinária onde não existe uma tradição onde basear a nossa identidade, nenhum enquadramento para uma vida com sentido que nos permitiria viver para além de uma simples reprodução hedonista. Esta Nova Desordem Mundial, afecta exemplarmente os mais novos que oscilam entre a máxima intensidade (prazer sexual, drogas, álcool) e a procura de sucesso (estudar, ter uma carreira, ganhar dinheiro…dentro da ordem capitalista existente), sendo a única alternativa a tudo isso um retiro violento numa qualquer tradição ressuscitada artificialmente.

Badiou observa de uma forma perspicaz que estamos perante uma versão decadente e reactiva do recuo do Estado anunciado por Marx: o Estado, hoje é cada vez mais um regulador administrativo do egotismo de mercado, sem autoridade simbólica, completamente desprovido daquilo que Hegel chamava a essência do Estado (a comunidade abrangente pela qual todos nós estaríamos prontos para nos sacrificarmos). A desintegração desta Substância ética é assinalada pela abolição do recrutamento militar (universal) em muitos países desenvolvidos: a própria noção de estar preparado para pôr em risco a vida por uma causa comum é considerada insignificante senão mesmo ridícula, de modo que as forças armadas, como corpo em qual todos os cidadãos participam igualmente, estão a transformar-se em forças mercenárias.

A desintegração de uma Substância ética partilhada afecta os dois sexos de diferentes formas: os homens tornam-se gradualmente eternos adolescentes sem um momento claro de iniciação que marque a sua entrada na maturidade (o serviço militar, a profissão, mesmo a educação deixou de desempenhar este papel). Não é de admirar, então, que para suplantar esta falha, proliferem os jovens gangs pós-paternais, oferecendo uma falsa iniciação e identidade social. Ao contrário dos homens, as mulheres são hoje cada vez mais precocemente desenvolvidas, tratadas como pequenas adultas, esperando-se que tenham controlo sobre as suas vidas, sobre as suas carreiras profissionais… Nesta concepção de diferença de género os homens são adolescentes lúdicos, foras-da-lei, enquanto as mulheres são fortes, maduras, sérias, cuidadosas e punitivas. Hoje a ideologia dominante não considera as mulheres como subordinadas, mas são chamadas a ocuparem cargos como juízas, administradoras, ministras, CEOs, professoras, e até mesmo polícias ou soldados. Um cenário paradigmático que ocorre diariamente nas prisões ou instituições de correcção; é que são efectivamente professoras, juízas, psicólogas a lidarem com jovens rapazes delinquentes, anti-sociais… Uma nova figura está assim a surgir: uma agente do poder frio e competitivo, sedutora e manipuladora, confirmando o paradoxo que “na condição capitalista as mulheres podem ser melhores que os homens” (Badiou). Evidentemente isto não quer dizer que são as mulheres as agentes do capitalismo; mas demonstra sim que o capitalismo contemporâneo inventou a sua imagem ideal da mulher.

Existe uma tríade política que traduz na perfeição a categoria descrita por Badiou: Hillary – Duterte – Trump. Hillary Clinton e Donald Trump são hoje o melhor casal político: Trump é o eterno adolescente, um hedonista imprudente com tendências a brutais explosões irracionais e que afectam directamente a possibilidade de ser eleito; enquanto Hillary representa o novo ideal feminino (a primeira mulher presidente), uma manipuladora implacável e autocontrolada que explora brutalmente sua condição feminina, e se apresenta como protectora dos mais vulneráveis, dos marginais e das vítimas – a sua condição feminina potencia a eficácia da sua manipulação. Não deveríamos, por isso, ser seduzidos pela sua imagem de vítima do marido Bill a galantear-se e a consentir que mulheres lhe façam sexo oral no trabalho – ele era o verdadeiro palhaço enquanto Hillary é o “senhor” da relação – permitindo ao seu servo pequenos prazeres irrelevantes… E o que dizer de Rodrigo Duterte, o Presidente Filipino que solicita publicamente homicídios extrajudiciais a drogados e traficantes, chegando mesmo a comparar-se a Hitler? Ele apoia a decadência do sistema judicial transformando o poder do Estado numa máfia fora da lei que aplica uma justiça selvagem; desta forma, ele consegue fazer o que ainda não é publicamente permitido nos nossos “civilizados” países Ocidentais. Se condensarmos estes três num só, obtemos a imagem ideal do Politico actual: Hillary Duterte Trump.


Notas da edição
Artigo publicado em português e em exclusivo na versão integral enviada pelo próprio autor. Tradução Revista Punkto.

Slavoj Žižek
Nasceu na cidade de Liubliana, Eslovénia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efectua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos directores do centro de humanidades da University of London. Arqueóloga.

Ficha Técnica
Data de publicação: 08.11.2016
Etiqueta: Pensamento Crítico \ Política
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